Asmodeus - parte 1
Matias caminhava lentamente sobre a ponte nova enquanto observava a água verde-amarelada do rio Itajaí-açu. Ele aproveitava as primeiras luzes do amanhecer para caminhar calmamente após uma noite de perigos.
Suas pernas doíam depois das inumeráveis carreiras que fizera para salvar a vida. O homem apenas correra, pelo que se lembra, desde que o tudo acabou. Ele não lembrava da vida antes disso. Era mais um entre as centenas de outros perdidos que vagavam pelas cidades e estradas do mundo.
Recolhidos de noite, o mínimo som de uma respiração pesada atrairia a atenção dos carniceiros. Como enxames de moscas que buscam carne para fazer viver suas larvas, as terríveis criaturas surgiram depois de um clarão no céu.
Após aquele tumular dia, desastres naturais balançaram as grandes nações da Terra. Governos caíram e outros surgiram. Por fim, uma praga que colocava pais contra filhos e filhos contra pais dominou a mente dos homens.
Bons homens urravam enquanto comiam a carne de seus iguais. E pouco a pouco os que tinham alguma consciência permaneceram. Nem mesmo as profecias mais horripilantes poderiam prever aquela desgraça.
Se havia um inferno... a Terra era parte dele.
O pobre viajante sentia que seus músculos estavam forçados ao máximo, por maior que fosse a vontade de caminhar mais rápido, as pernas não o obedeciam. A mochila nas costas e uma submetralhadora MP5 das forças armadas brasileiras, achada com o cadáver do soldado Napoleão, eram um peso extra, mas necessário.
Matias não podia guardar a ética do velho mundo, precisou roubar e matar, vezes e vezes, para que permanecesse vivo. Quando dormia pesado, algo raro, os pesadelos o assombravam. Gritos histéricos da menina Amália que não conseguira salvar. Os monstros a destroçaram com
tanta fúria que apenas os trapos de suas roupas restaram.
Seu corpo e mente cansados pôr carregar vontade de viver. Ele não cairia como os outros.
Perto de atravessar a ponte por completo, ouviu o viajante assobios estridentes. Eram eles, os carniceiros. De peles cinzento-avermelhada, feridos, cadavéricos. Há tempos a alma deixara os corpos daqueles seres. O que restou foi apenas a matéria maligna que consumia sem parar qualquer coisa que respirasse. O primeiro surgiu, ele chamara os demais com aquela vocação maldita.
Depois chegou o segundo, o terceiro, o quarto, e um grupo de 50 carniceiros se empurravam a 300 metros de distância de Matias. No entanto, eles não atacariam até que o chefe do bando aparecesse.
As mãos tremiam, o corpo pesava. O olhar fitava aquela massa tenebrosa. As balas não abateriam todos. Afinal, quantos projéteis ainda havia? Não sabia dizer. Desde que saiu para buscar comida, há três dias, a jornada entre o refúgio e o depósito se mostrara insipidamente cheia de aventuras.
Tomou postura. Mirou. Correr não era uma opção. Os disparos acertaram um, dois, três, quatro, cinco, seis... caíram mortos. Um grito diferente como uma panela de pressão gutural preencheu o ar. Ele sabia que o chefe chegara. A criatura se mostrava diferente dos lacaios. Era maior, mais forte, a pele, apesar de cinza, era amarelada. Uma verdadeira obra da natureza inspirada num sonho infernal.
Matias assumiu a postura de tiro, tentaria acertar o chefe para que ganhasse algum tempo para fugir depois de pensar em um plano de fuga sem detalhes. Firmou o braço esquerdo no gatilho e lançou a rajada de tiros. Mais cinco carniceiros foram mortos, e o chefe sequer recebeu algum arranhão.
Do lado de cá, o grande caçador olhava sua presa que abatera seu bando nos últimos dias. Um invasor que precisa ser eliminado. O líder do bando deu ordem para que os servos se afastassem. Ele mataria Matias com as próprias mãos.
O sobrevivente percebeu quando as criaturas se afastaram para que o chefe fosse o primeiro a atacar. Era um duelo mortal entre destreza e força. O monstro correu e Matias mirou. O som surdo do gatilho revelou. As balas acabaram. E uma massa de músculos se chocou contra o corpo do viajante.
Seus olhos giraram, seu corpo girou. Ao cair sentiu que se partira uma costela. Com fios de sangue escorrendo do nariz, o sobrevivente demorou alguns segundos para entender onde estava. A pancada da cabeça contra o chão reativaram memórias guardadas. Ele se lembrou de tudo o que aconteceu. E lembrou-se de um lugar seguro.
A criatura urrava seu feito. A honra do bando estava intacta. Nenhum invasor em suas terras. Nada era capaz de fazer frente aos carniceiros.
Enquanto o monstro comemorava sua vitória, Matias girou o corpo em direção as águas. Passando entre os espaços dos acostamentos ele caiu no rio.
A última coisa que se lembra de ter visto foi o chefe esticando os braços como quem tenta apanhar algo no ar. O viajante cansara de andar, agora iria a nado para algum lugar.