A odisseia de ser sozinho III

Os pensamentos mordiam-lhe o cérebro e davam cabo da pouca razão que tinha. Descontrolado, revistou a sua bolsa à procura do maço de cigarro. Estava tão atrapalhado que mal consegui abrir os compartimentos da mesma. Foi visitado por uma enorme raiva quando viu que tudo já havia virado papa, excepto o palito de fósforo que nunca deixou ficar. Levava-o sempre consigo na boca.

Num lugar que fugia constantemente do mapa para nunca ser encontrado, debatia-se com a possibilidade de encontrar uma folha de papel e substituir os cigarros que ficaram aguados aquando da sua perseguição mórbida a alguém que ele mesmo expulsou. A ansiedade era tanta que os dedos tremiam, e a saudade, junta com o frio matinal, limpavam-lhe o sebo. Viajava sozinho à procura da Solidão, mas acompanhado de fé. Renovaram-se-lhe as forças, apesar de ter estado quase que plenamente fora de si. Só umas bafuradas e mais nada, era tudo que faltava naquele momento.

Céu cinzento, terra seca, núvens da cor do carvão, bem dispostas para o mijo. Tipo nada, um vento por aí passou e consigo um pedaço de papel ainda higiénico. Olhou para o objecto, ainda branco e com ar de guardanapo e não o deixou passar. Agarrou-se a ele forte e enfiou as mãos num cafocolo que só se revelava em emergências e puxou umas folhas verdes que, embora húmidas, eram-lhe a única salvação. Mas então pensou: <<como acender agora essa porcaria?>> Aquele vento era afinal o princípio de um furacão que, quando começou a ficar mais nervoso, já levava cozinhas consigo e, aproveitando a deixa, viu caixas de fósforo a passarem por si descoordenadas, desobedecendo a lei da gravidade. Esticou as mãos e segurou quantas pôde. Acendeu o boi e deixou-se também levar pelo vento, que por curiosidade não foi o suficiente para apagar a "bizarrê".

Enquanto levitava, com os olhos fechados e a pele irritada, lembrava as pernas da Solidão, primeiro quando pisava o chão de casa e por ele andava como que a esmerar-se numa passarela, depois quando esticadas aos seus ombros brilhavam como diamante a precisar de ser resgatado da lama. Os encontros dos lábios e os desassossegos dos corpos mistos, a fome insaciável e a morte da tesão na cama. Quando despiam-se até as peúgas e os fios de ouro, as mascotes e os brincos com os mais distintos designs, os sapatos rasgados de tanto falarem no solo do sofrimento e as camisas a transpirar sangue. De repente, tudo fica ainda mais escuro, como a noite mesmo, e vê-se então obrigado a abrir os olhos, mas ainda completamente fora da realidade.

Widralino
Enviado por Widralino em 29/04/2018
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