AMNÉSIA RARA

Lucas sofria de um tipo raro de amnésia anterógrada. De quinze em quinze minutos esquecia toda a sua vida recente e isto porque levara um tiro na cabeça durante um assalto ao banco em que trabalhava e perdera parte do cérebro. Com este tipo raro de amnésia, Lucas permanecia sempre dentro do mesmo momento, dentro da mesma divagação. Na clínica onde fora internado e para acalmá-lo, os médicos inicialmente o encaminharam para o preenchimento de jogos de palavras cruzadas. Lucas demorava um dia na resolução de uma linha. Depois os médicos perceberam que a atividade preferida de Lucas era interpretar frases de filósofos famosos. Parou em Jean Paul Sartre quando leu o conceito:

“O Inferno são os outros.”

Todos os dias Lucas escrevia em seu caderno uma interpretação sobre este juízo e, estranhamente, elas nunca se repetiram.

“Se o inferno são os outros como amar o próximo como a ti mesmo?”.

Às vezes, Lucas não escrevia nada e passava o dia examinando a frase. Outra interpretação registrada:

“Os lixeiros são homens felizes. Não se importam com a opinião alheia e jogam no caminhão, sacos de lixo e desprezo para a compactação.”

Lucas talvez se lembrasse do seu tempo de caixa do banco, quando convivia com muitos demônios por todos os lados e na sua frente apenas o pequeno calendário com a foto da praia australiana. Na época, ele pensava em fugir para a Austrália.

Lucas recordava a época e certamente esquecia de tudo diante das divagações sobre o conceito à sua frente:

“O inferno são os outros, são os olhos, são os trocos.”

Um dia Lucas decidiu que um ponto de exclamação seria melhor no final da frase. Porque era preciso mostrar a intensidade dos “outros”. A partir dali a frase ganhou uma nova dimensão: o ponto de exclamação venceu a amnésia de Lucas, permanecendo no registro.

“O inferno são os outros!”.

Pensar no conceito acalmava Lucas. Um pensamento ainda melhor do que outro de Albert Einstein:

“Existem duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Eu não estou muito seguro da primeira.”

Um dia, Lucas chamou um dos atendentes da clínica e comunicou antes de esquecer a razão da análise que fizera:

- Quando eu entrar no Paraíso, entrarei sozinho. Os outros, como você seguirão um caminho diferente.

O atendente, que era evangélico, comunicou a declaração ao médico especialista, que decidiu substituir o conceito por outro de Henry David Thoreau também muito satisfatório no tratamento de Lucas:

“Jamais encontrei companheiro que fosse mais companheiro que a solidão.”

Lucas começou rápido e diversificou:

“A solidão nunca terá um rosto.”

“Para as distensões do mundo moderno, use icebergs”.

Do meu livro:"Touros em Copacabana"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 11/04/2018
Reeditado em 23/02/2019
Código do texto: T6305633
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