Passo a Passo

Passo a Passo

Era noite e eu ouvia gemidos de choro vindos da parede ao lado da meia-água construída pelo suor de Dona Marizô e Seu Didi. Curiosamente, despertava a ideia de salvar a pobre criatura que era sovada pelas mãos covardes de Alberico.

Mãe preta era meiga e carinhosa com os seus filhos e bastardos. Os negritos colhiam amoras durante o dia e saqueavam sorrateiramente carambolas durante a noite. Ela era dona de um enorme coração e capaz de se entregar ao castigo a ver seus quatro filhotes dormirem com as couraças quentes marcadas pelas fivelas de bronze do pai. A cada dia o sofrimento de Maria vinha a cavalo, tão rápido que às vezes nem dava tempo de se recuperar dos ferimentos deixados pela surra anterior, e já vinha Alberico entusiasmado com o sangue da covardia encruado em seus olhos avermelhados abatendo as feridas de Maria. Eram novas pranchadas que a sobrepunha.

Nada se podia fazer, não existia a “Lei Maria da Penha” e os vizinhos ignoravam os gritos de Mãe Preta. Era de praxe assistir uma mulher apanhando pelas mãos machistas da época, tempo em que havia em média apenas um terço da população atual e o povo se contentava apenas com as pernas tortas de Mané e as arrancadas fulminantes de Pelé vistas somente ao vivo pelos que tinham o privilégio de ir ao Maracanã.

Durante o dia eu pulava a cerca de galhos das goiabeiras que dividiam nossas casas e filava os bolinhos de chuva feitos pela destreza de minha vizinha protetora que sempre vinha a meu favor nos momentos de desespero em que me encontrava no meio das pernas de Dona Marizô pronto para levar uma rotineira coça, mas que apenas marcava minhas habilidosas pernas, levando-me sempre a refletir que a obediência era uma grande sacada.

Meus membros inferiores ficavam quentes e ganhavam incentivos para correr atrás da pelota do Campo do Índio e colecionar pipas conquistadas com a coragem de um leão ao introduzir meu corpo no meio do Matarazzo. Retornava com cortes navalhados dos capins gigantes da beira do rio Acari que tinham em suas margens lutas constantes dos preás que tentavam sobreviver aos cercos dos cães vira-latas dos esfomeados caçadores. Seu Didi não imaginava que minhas aventuras eram tão perigosas e indagava a minha guerreira como tinha sido o dia daquele promissor arquiteto e debaixo da coberta eu ouvia:

- O menino foi à escola?

Minha mãe respondia:

- Sim e ele já tomou banho e está dormindo.

Sob a coberta, eu temia aquele homem forte de bigode aparado que não sabia como acariciar suas crias. Trazia consigo o histórico de um homem que quando menino fora alimentado pela violência urbana dos anos vinte e que para sobreviver andava léguas atrás de um prato de comida sendo salvo pelo coração de Marizô. E por incrível que pareça: “Jamais tocou em um fio de cabelo de suas crianças”.

A noite se iniciava com harmonia e logo vinha novamente o choro de Maria. Meu pai o ignorava mais uma vez e dava até para entender a ignorância dos adultos que diziam: “Não se deve se meter em briga de marido e mulher, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. O que eu não conseguia entender era o porquê de todo sofrimento daquela mulher que era fiel aos seus afazeres. Cozinhava caprichosamente para seu companheiro que apenas nesse momento parecia que ficava de bom agrado porque lambia seus grandiosos beiços a cada garfada da exclusiva feijoada inserida em sua boca silenciosa , enquanto que no canto da sala, a cadela vira-lata coçava suas feridas a lamber suas toxinas à espera do refugos dos ossos sob o olhar mirabolante da cozinheira. Até que o tempo foi passando e a negra sofredora dos maus tratos daquele covarde tutor se esmorecia. Cada vez mais se via o seu corpo definhar e a sua elegância inata perdia o seu brilho.

Mãe preta estava morrendo, deixando em mim a dor da saudade, a mesma angústia da perda de Biju, meu cãozinho peralta, massacrado pelas rodas pesadas do caminhão FNM de outro vizinho que cruelmente o pendurou no muro de minha própria escola o expondo as carniceiras aves pretas que o consumiram antes de eu poder resgatá-lo. Meus olhos repetiam a chuva de tristes lacrimas e pus-me a imaginar aquele negro forte malfeitor se saindo impune pelas ruas da cidade com o seu inseparável chapéu panamenho estando em companhia de uma ninfeta e usufruindo as noites seresteiras ao som de Simonal e incorporado no balanço dos sapateadores da Broadway.

Alberico era muito forte e apresentava uma capa de homem durão e trabalhador que com suas pistolas de arrebites subia elegantemente ereto o Morro Jardim Santo Antônio. Seu silêncio era misterioso ao ponto de especularem uma suposta relação com os ditadores homens do planalto que a pouco tinham conquistado o poder da nação. Era arriscada demais a minha imaginação e pensar em voz alta sobre esta hipótese seria suicídio e durante duas semanas após o adeus de minha generosa Mãe Preta, houve um grande espavento para todos:

“Dava entrada em um hospital público da cidade, um homem com sintomas de diarréia, classificada como crônica secretória provocada por protozoários parasitas”.

Ele tinha os olhos amarelados e encovados aparentando sinais de desidratação grave. Era Alberico, aquele que não tinha mais tempo de viver o que o seu físico privilegiado tinha programado, era agora como uma criança com uma doença de idoso e criara um verdadeiro paradoxo da vida, que contradizia a lei dos mais fiéis estudiosos da natureza humana. Suava de choro ardido e a cada secreção os seus membros enfraqueciam, os mesmos que tanto chicotearam a sua escrava e aos poucos, passo a passo, foi cedendo à shiga e ao chamado da negra Maria.

Ed Ramos
Enviado por Ed Ramos em 11/04/2018
Reeditado em 01/10/2022
Código do texto: T6305312
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