Como Chiquinho virou seu Francisco de Tal?

O Chiquinho foi um rapaz pobre, pai de família que vivia na Bahia e era vaqueiro de um coroné baiano muito rico. Morava num casarão velho que pertenceu à família do patrão, onde há muitos anos havia morado o avô daquele.

Era uma casa antiga, grande e sinistra, mal assombrada segundo o povo daquelas bandas, que contava muitas passagens de visagens fantasmagóricas ali.

– Também puderas! Lá viveram durante anos, o rico coroné com a família e escravos servindo-os.

Como naquele tempo não tinha justiça e a lei era a do mais forte e ainda os negros eram considerados animais domésticos dos ricos, sem ter nem a proteção que hoje tem os animais irracionais, com certeza, a qualquer deslize cometido, ainda que supostamente, o coroné os punia a sua maneira: arbitrariamente e com os excessos peculiares dos costumes da época. É provável que ali tivesse sido mortos escravos no tronco expostos ao sol inclemente, com fome e sede e ainda, quantas mães viram seus filhos, ainda crianças, serem negociadas e levadas iguais manadas de porcos ou de gado? Tudo isso ficou registrado no livro dos absurdos da antiguidade e da dor dos pobres injustiçados que às vezes vem manifestar seus sentimentos ao povo de agora e são mal interpretados e vistos como espíritos do mal que vem assombrar as pessoas. – Reflexão do velho Zé Baiano, descendente de escravos. – Bem, voltemos ao Chiquinho que já tinha a sua primeira filha bem novinha. Numa noite ele e a mulher levantaram para fazer um chá de poejo para a pequena, pois se encontrava febril. Mas, para ir até o fogão tinham que andar um pouco do quarto até a porta da cozinha passando por um corredor que continuava por alguns metros, dividindo vários cômodos que estavam fora de uso, e ia dar na porta do sótão. Este se encontrava abaixo do assoalho da casa, há aproximadamente uns três metros de profundidade e para ir até ele tinha que descer vários degraus. Ali, no passado eram guardados, armas, ferramentas e provimentos da fazenda. Era o depósito.

Quando o casal entrou no corredor viram uma claridade azulada passando debaixo da porta. Intrigado, Chiquinho foi até lá para conferir. Abriu a porta e viu lá embaixo, no velho salão que se encontrava completamente vazio, uma tocha de luz azul ao lado da escada. Foi até o local e notou que era um inexplicável reflexo vindo não se sabe de onde. O mais provável era que vinha de dentro da terra. Ele pegou a alparcata de couro cru que calçava no momento e a colocou sobre o reflexo que continuou ativo, agora espalhando por todo o cômodo o clarão ainda que mais fraco que o foco.

Lá Chiquinho deixou o calçado para marcar o lugar. No dia seguinte, ele voltou ao local e no lugar da alparcata fincou um grande prego. Dias depois, após se preparar, quando tudo estava calmo, com cabeça fria, a meia noite, filha bem saudável dormindo o sono dos anjos, ele e esposa foram ao local. A esposa segurava as velas de cera de abelha borá preparadas para ocasião e ele cavando vertiginosamente e, após algum tempo de trabalho duro, a um metro de profundidade, sob uma camada de carvão de aproximadamente vinte centímetros de espessura, ele encontrou um pote com capacidade para quinze litros cheio de moedas cunhadas em ouro puro, mais um crucifixo medindo vinte e cinco centímetros de comprimento e quinze de braços, todo em ouro maciço pesando quase meio quilo e, ainda uma imagem de Santo Onofre, também de ouro puro e pesando mais de trezentos gramas.

Chiquinho, matreiro que só ele, soube ficar calado, esvaziou o pote e deixou-o no buraco, aterrou-o direitinho, bateu a terra com cuidado e apagou todos os vestígios. Guardou o seu tesouro dentro de um saco de couro curtido que ele costurou para aquele fim e o colocou debaixo da sua cama, dentro de uma caixa de madeira e em silêncio esperou seis meses para a ferra¹. Fechado o ano de vaqueirice, ele acertou as contas com o patrão, vendeu-lhe os bezerros que lhe tocaram de sorte², recebeu o dinheiro e deu no pé sem levantar suspeitas. Na capital do Estado vendeu todo o ouro e hoje no interior, deixou de ser Chiquinho e é Seu Francisco de Tal. Já idoso e rico, fazendeiro próspero, com a família criada e já com netos grandes, filhos da pequena daquele tempo!