Musa
Um fato que muitos sabem sobre mim é que definitivamente eu não gosto de carnaval. Tem muitos motivos para isso, mas o principal deles é a multidão. Eu odeio multidão.
Foi tentando fugir dessa multidão que eu a conheci, tão bela quanto qualquer um possa imaginar.
Era carnaval de 2009, nem me lembro quantos anos eu tinha, e, como de costume, viajei com a minha família para Maricá. Lá era bem afastado da bagunça generalizada da cidade, tirando a praça central, que era onde todos os grandes eventos se concentram. A casa ficava a uns 10 minutos de lá, na época o caminho era bem escuro, com uma rua de terra e mato dos dois lados, tanto que tínhamos que sair com lanternas só pra não correr o risco de esbarrar com uma cobra ou outros bichos no caminho.
Era o terceiro dia do feriado de carnaval, em poucas horas as escolas começariam a desfilar e eu não aguentava mais ficar em casa olhando pra televisão. O tédio me venceu e finalmente levantei do sofá e comecei a me arrumar pra sair. Todos me olharam estranhando minha repentina empolgação pra pular o carnaval. “Você vai sair? Sério?” Essa pergunta estampava suas faces.
Sai de casa e segui andando pelo velho caminho, sujando meus sapatos de terra e lama. Metade de mim se questionava o porquê de sair de casa, enquanto a outra metade contemplava fascinado a escuridão da região dos lagos, dos sons dos animais escondidos no mato, nos pequenos brejos que ali se formavam e que hoje nem devem existir mais. Quantas histórias será que essas árvores poderiam esconder sobre esse lugar…
Ao longe o som dos blocos começava a tomar forma. Os gritos festeiros dos foliões invadia meu ouvido de maneira desconexa. Os batuques dos tambores explodiam como bombas. Eu estava chegando. Andei beirando o rio que cortava o bairro, vez ou outra pessoas fantasiadas desciam do tamanho do universo tocando as últimas tendências do axé praieiro. Acho que Maricá inteira estava espremida naquele lugar. Admito, a festa estava animada, mas de qualquer forma acabei indo pro primeiro espaço (se é que poderia chamar aquilo de espaço) que consegui encontrar. Comprei alguma coisa para beber e fiquei por lá observando a festa.
Aproximadamente uma hora se passou. O cheiro de cerveja e suor aumentava enquanto minha paciência diminuía. Acho que já tava bom pra eu fugir um pouco dali.
Me enfiei no meio das pessoas, me espremi, tropecei, e finalmente consegui um espaço para me mexer. Poderia voltar pra casa, mas optei por ir na direção da praia. Lá estava bem mais tranquilo, embora alguns eventuais carros de som passassem vez ou outra. Retirei os sapatos e senti a areia, fui até um canto onde tinham as pedras e me sentei por ali para observar o mar.
As luzes festivas refletiam nas águas, que ondulava linda e alheia a toda aquela confusão. O vento ali era fresco e calmo, relaxante, eu diria. Estava bem a vontade, então estiquei os braços e me deitei. Fechei os olhos. Apenas ouvia o vai e vem das ondas, um som quase hipnótico.
Depois de alguns minutos percebi a aproximação de alguém. Continuei de olhos fechados, sinal de que não queria ser perturbado. Os passos pararam bem perto de mim. Esperei que se afastasse, já tenso. “Oi.” falou comigo. Era uma voz suave que me causou um estranho arrepio no corpo. Me senti obrigado a abrir os olhos para responder e tive uma grata surpresa quando fiz isso.
Sua pele era morena mas brilhava como ouro, seus olhos eram da cor do oceano e seus longos cabelos pretos esvoaçavam ao vento. Estava fantasiada para o carnaval, com um vestido que não consegui identificar se era azul claro ou branco, mas que era tão longo que cobria seus pés e descia as pedras até tocar na água. Apesar disso, era enfeitado com rosas brancas e estrelas do mar. Em sua cabeça tinha uma coroa feita de pérolas e em seu centro, uma estrela do mar. Era linda.
Ela me olhava curiosa, mas ao mesmo tempo transmitia uma paz que a muito não sentia. “O-oi”, respondi me levantando.
“Você está longe da festa né?” perguntou ela se sentando do meu lado.
“Prefiro ficar aqui olhando pro mar” respondi.
“Eu também, adoro o mar.”
Ficamos ali conversando por horas, sobre várias coisas, foi impressionante como o papo fluía com naturalidade. As palavras dançavam em seus lábios com uma inteligência e pureza inimagináveis. Cheguei a perguntar de que exatamente ela estava vestida, “rainha”, respondeu ela sorrindo.
Ela não morava por lá, preferia estar sempre viajando por lugares onde a as praias se mostrassem belas.
“Olha como é lindo” falou levantando a mão. Uma onda bateu forte na pedra abaixo de nós. Era quase como se ela controlasse aquele evento.
“Sim, é lindo” respondi olhando mais pra ela do que para o mar. Em um pequeno momento, percebi sua feição se entristecer. Ela disse que por andar longe, poucas pessoas acabam lembrando dela durante o ano. Geralmente só a procuram bem no finalzinho do ano, quando precisam dela, levam presentes até ela para pedirem por sua ajuda, e apesar de tudo, ela sempre acabava estendendo a mão. Questionei o porquê disso e ela respondeu: “Quando um filho faz besteira sua mãe sempre acaba o perdoando, não é? Digamos que o sentimento seja o mesmo.” Se levantou e fitou o céu como se estivesse contemplando toda a existência. “É o que eu faço.” Falou espantando a melancolia.
Mais uma forte onda quebrou nas pedras, jorrando pesadas gotas sobre nós. A água fazia ela reluzir ainda mais, tão inocente quanto uma criança, tão bela quanto a mais linda das mulheres.
Me levantei e me pus a seu lado. “Já vai embora?” Perguntei já sabendo da resposta.
“Sim, já está na hora.” Ela retirou uma das flores de seu vestido, que nunca deixou de tocar o mar, e colocou na minha mão. “Pra você lembrar de mim”, beijou minha testa, e se afastou pulando nas pedras.Fiquei paralisado vendo ela se afastar até finalmente entrar em contato com a areia úmida. Só nesse momento consegui me mexer e finalmente falar com a voz trêmula. “Espera! Qual o seu nome?” gritei. Ela se virou pra mim, mais uma vez vi as ondas despejarem partículas brilhantes em sua pele, sem que ela se importasse. Vi seus lábios se abrirem para me responder, um momento que durou uma eternidade.
“BRUNO!” alguém me chamou da pista acima da praia. Era minha prima me procurando para pular o carnaval comigo. Depois de acenar pra ela pra mostrar onde estava, voltei para finalmente saber a resposta da musa.
Ela não estava mais lá.
Desci das pedras para tentar procurá-la melhor.
Nada.
Ela simplesmente havia sumido.
Subi para me juntar a minha prima, ainda confuso com o que havia acontecido. Ela estava com uma roupa engraçada de “índia sexy”, mas eu só conseguia pensar na mulher vestida de majestade.
Ela estava animada e já um pouco bêbada, “Vem, vamos lá pra praça”, disse ela me puxando. Cedi e me deixei ser puxado por ela. Ainda tive tempo para olhar uma última vez para a direção da praia. Bem lá no fundo, onde a luz da lua dividia seu lugar com a água, achei ter visto aquela mulher me olhando. Apenas metade de seu corpo era visível. Como uma sereia, ela me encantava com o som de suas palavras e com o encanto de seu sorriso. Ela levantou a mão e uma onda encobriu sua imagem, o brilho das pérolas de sua coroa foi a última coisa que vi.
Aquele carnaval sempre esteve guardado em minha mente, e junto com ele, a imagem daquela linda mulher. A flor que ela me deu nunca murchou, e é exatamente um buquê de flores parecidas com essa que eu levo para o mar sempre que posso e quando as jogo na água só um pensamento me vem: “Sempre vou lembrar de você, rainha das águas”.