O que está acontecendo?
Estou tremendo como uma vara verde sob o vento forte. Meu corpo inteiro não para de vibrar tentando produzir um pouco de calor e evitar que eu morra de hipotermia. A canoa sob a qual me escondo é tão pequena que não consegue evitar que o vento continue a fustigar o meu corpo. Estou cavando com minhas mãos, desesperadamente tentando criar um espaço onde eu possa entrar e me livrar deste vento ao mesmo tempo em que produzo um pouco de calor com a minha atividade. Apesar do meu esforço o frio continua forte e insuportável. O sol já desapareceu abaixo da linha do horizonte e a escuridão começa tomar conta de todos os cantos, logo estará escuro como um carvão. Se ao menos tivesse comido alguma coisa durante o dia seria mais fácil para o meu corpo produzir energia e me esquentar mas a fome é minha única companheira desde que saí de casa há uma semana. Pensei que esta noite poderia dormir um pouco melhor, mais protegida em baixo desta canoa sobre essa areia macia mas o tempo mudou, esfriou muito e agora começa a chover e me molhar. Durante o dia todo caminhei e caminhei sem parar, não sei bem o que procurava mas uma necessidade instintiva de continuar caminhando até que as minhas forças acabassem me conduziu até aqui. Mas a noite chegou e o frio me pegou de jeito. Acho que devo estar morrendo pois estou começando a perder a sensibilidade dos pés e das mãos, aquela dor aguda que atormentava a minha barriga desde que a fome apertou também parece ceder. Acho que vou fechar os meus olhos e esperar que tudo se acabe.
Uma luz branca está incomodando os meus olhos, ao abri-los percebo que o dia já amanheceu. O sol está brilhando e aquecendo o meu corpo. Só agora me dou conta que estou embaixo de alguém, seu peso é pouco mas acabou adormecendo os meus braços tento sair de baixo mas só aí percebo que provavelmente foi o calor do seu corpo que me salvou da hipotermia. Trata-se de um corpinho pequeno de um menino, talvez tenha uns doze anos, tão magrinho e subnutrido como eu e agora está dormindo como um anjo. Dorme tranquilo como se estivesse em sua cama em sua casa, seus olhos semi-abertos me lembram alguém que não consigo lembrar agora mas traz uma sensação boa de segurança. Sua pele macia queimada de sol, seus cabelos lisos caindo sobre os olhos, sua respiração ritmada de um sono profundo me aquece o coração. Quem será este garoto? Salvou a minha vida e agora dorme nos meus braços, lindo como um anjo.
Levanto os meus braços e tiro o cabelo dos seus olhos. Seu rosto me lembra alguém.
Vagarosamente ele abriu os olhos e sorri para mim.
- Você é linda, diz. O que estava fazendo embaixo desta canoa nesta noite tão fria?
- Estava procurando um lugar para dormir, respondo. E não diga que sou linda porque não sou, sei muito bem que sou uma magricela, branquela e sem graça.
- Não é nada, você tem um sorriso lindo e seus olhos brilham como as estrelas. Você está com fome? Eu tenho aqui um pedaço de pão que roubei de uma mesa de bar ontem à noite.
- Ia comer mas aí a chuva começou e eu acabei me esquecendo.
Meteu a mão no seu bolso e tirou um pão que devorei imediatamente, talvez tenha sido o pão mais saboroso que comi na minha vida. Enquanto eu comia ele ficou me observando com um sorriso nos lábios.
- É, você estava mesmo com fome, observou.
- Já faz quase uma semana que não acho nada para comer, disse.
- Venha vou te levar para um lugar onde você poderá comer a vontade, pegou na minha mão e rapidamente disparou em direção a uma cabana que havia na praia. Era uma cabana pequena mas muito bonita, havia algumas mesas cada uma com quatro cadeiras de plástico branco. De longe avistei um homem que trabalhava cabisbaixo sem prestar atenção em nossa chegada. Quando nos viu aproximar fechou a cara e perguntou: o que você quer agora, moleque?
- Nada, seu Zé, é a minha amiga aqui que está com fome e quer tomar o café da manhã.
- Isto aqui não é uma creche nem eu vivo de fazer caridade, se quiser comer alguma coisa aqui tem que pagar.
- Eu tenho dinheiro, disse o menino, e rapidamente mostrou uma nota de vinte reais abanando como se fosse um troféu. O homem grunhiu alguma coisa e em seguida apontou para uma das mesas dizendo, senta aí.
Como ainda era cedo não havia ninguém na cabana e nem na praia.
Sentei numa das cadeiras ao lado do garoto e imediatamente tudo que se passou nos dias anteriores invadiu minha cabeça. Eu estava em casa quando tudo começou. No começo era um simples gato mas de repente virou um monstro horrível e mostrava seus dentes enormes para mim e urrava como um leão. Passou a me ameaçar arregalando seus olhos e brandindo suas garras. Foi nesse momento que eu percebi sua verdadeira intenção, ele queria me estuprar, escondido sob seus pelos espessos vislumbrei um enorme pênis ereto vibrando ameaçador. Sem pensar duas vezes disparei rua abaixo sentindo sua respiração no meu pescoço. Não sei por quanto tempo corri mas quando parei estava completamente esgotada. Não reconheci onde estava e não saberia mais voltar mas mesmo que eu soubesse jamais voltaria. Desde então venho andando por lugares estranhos até que encontrei esta praia, esta canoa e agora este garoto e esta barraca.
Não demorou muito e o homem retornou com uma bandeja contendo banana cozida, pedaços de bolo, café e leite fumegantes. Comi como uma desesperada, a banana estava divina e o café aqueceu minha alma.
Quando terminei o garoto havia desaparecido e também o homem da barraca. Eu estava só com uma bandeja vazia sobre a mesa. Mas estava satisfeita com a barriga cheia. O tempo havia mudado e um sol maravilhoso despontava no horizonte, levantei-me e me pus a andar. Andei por horas e horas sem pensar, só vim a perceber quando a barriga voltou a queixar-se da fome. Onde estou? O que faço aqui? Olhei em torno de mim e alguns coisa chamou minha atenção, não sabia o que era mas alguma coisa estava errada, muito errada. Estava na beira do mar, escutava as ondas e o vento mas cadê a água? E esse sol estava diferente muito maior, brilhava muito mas não esquentava, era um brilho frio como a luz do hospital, e onde estavam todas as pessoas? De repente o sol começou a crescer, cresceu, cresceu e se aproximou de mim, no começo vagarosamente e aos poucos aumentou sua velocidade. Foi chegando, chegando se encostou em mim e me engoliu.
Uma lua branca brilhava no céu também branco. Esfreguei os olhos e vejo que não se trata de uma lua e o que vejo não é o céu, eu estou deitado sob um teto branco e aquela luz não é uma lua é uma lâmpada. As paredes também são brancas e há uma janela pequena no alto, na outra parede há uma porta, está fechada. Estou deitado numa cama sobre um colchão macio. Não, não é uma cama, é uma maca de hospital, o que estou fazendo num hospital? Tento me levantar e não consigo, tento levantar os meus braços e percebo que estão amarrados, também estão amarrados os meus pés e a cintura. O que está acontecendo?