Incidente no Morro dos Cavalos
Quem conhece a região litorânea do estado de Santa Catarina sabe das belas paisagens que vemos quando trafegamos pela BR 101 que corta o estado de norte a sul.
Ao sair da Ilha de Santa Catarina onde fica a cidade de Florianópolis, a capital do Estado, no sentido oeste, passamos pela ponte e chegamos ao continente, mais propriamente na cidade de São José e no trevo de acesso a rodovia BR 101.
Entrando na BR-101 e seguindo o rumo sul, passamos pela cidade de Palhoça, pelo sopé do majestoso maciço que os nativos guaranis batizaram de Cambirela com seus mil e quarenta e três metros de altura.
Antes de chegar na pequena, mas bela e agitada cidade praiana de Garopaba passamos pelo túnel na região do denominado Morro dos Cavalos onde aconteceu esse incidente.
Para aqueles que não conhecem esse trecho é bom explicar que no Morro dos Cavalos a antiga rodovia passa apertada na encosta do Morro, o que dificultava a sua duplicação. Para evitar maiores danos a natureza, já que essa região faz parte da área de preservação do Parque estadual da Serra do Tabuleiro, foi feito uma segunda rodovia e um túnel na outra encosta do Morro.
Dessa forma, a antiga rodovia existente que vem no sentido norte é hoje usada só para a descida e a nova rodovia que segue no sentido sul só é utilizada para a subida. Assim, uma pista desce pelo lado leste da encosta e a outra sobe pela encosta oeste do Morro.
Já que estamos falando do Morro dos Cavalos é bom também dizer que essa região é, ainda hoje, palco de velhos conflitos entre os nativos indígenas guaranis, posseiros e as autoridades que nunca concluíram a demarcação das propriedades. Como terra sem dono, não raro por ali bandidos traficantes e marginais se escondem, acampam ou fazem seus bivaques.
Para quem sobe, a meio quilômetro antes da entrada do túnel e do lado direito da rodovia, existe um despenhadeiro ou um perau de mais de quarenta metros de profundidade, local este que foi parcialmente aterrado para dar sustentação a rodovia quando fizeram o túnel e que quando ocorre muita chuva é palco de seguidos deslizamentos de terra.
Roberto Castanheda, um rico jovem argentino de vinte e três anos que estuda engenharia civil na Universidade Federal de Santa Catarina e seu colega catarinense Paulo Molina de vinte e dois anos, também estudante na mesma universidade, onde faz administração, resolveram curtir a ultima noite do ano, nas concorridas baladas noturnas, na cidade balneário de Garopaba.
Por volta das dezesseis horas do dia trinta e um de dezembro, ainda cedo no horário de verão, Roberto dirigindo seu camaro vermelho passa na casa do Paulo no bairro de Coqueiros, onde beberam alguns goles, e ambos pegam a BR 101 rumo as festas que prometiam grandes lances e emoções, como de fato aconteceu.
Enquanto saiam da cidade acenderam um baseado, para aguentar o trampo, e o potente motor fazia o camaro flutuar na pista. No inicio da subida do Morro dos cavalos com tempo fechando pelas escuras nuvens da tempestade que ameaçava cair os carros reduziram a velocidade no que foram acompanhados por Roberto e pelos demais motoristas.
Agora em marcha lenta os veículos estavam a mais ou menos a quinhentos metros da entrada do túnel quando de repente as lanternas vermelhas dos freios dos carros que seguiam na frente se acenderam e todos pararam bruscamente. Os veículos que vinham logo atrás do camaro, inclusive uma carreta, também frearam .
A uns dois veículos afrente três marginais sob a mira de armas obrigavam os motoristas a pararem, ordenavam abrir os vidros e a entregar tudo o que tinham de valor.
Em meio ao pânico generalizado, alguns motoristas já tentavam dar marcha a ré para escapar do cerco, quando diversos disparos, não sabidos de onde partiram, atingiram dois marginais. Mais dois estampidos e o terceiro bandido, que tentava fugir, também caiu morto no asfalto.
Imediatamente, um motorista musculoso, de boné, com cara de poucos amigos, vestindo uma bermuda e uma surrada regata vermelha, desceu da carreta que estava logo atrás do camaro, e disse em tom firme. Muito bem pessoal, não aconteceu nada, vamos limpar a pista e dar o fora daqui.
Ainda abalados e meio trêmulos Roberto e Paulo desceram do camaro e sob as ordens do Carreteiro, auxiliados pelo próprio e por outros motoristas pegaram um a um os corpos dos marginais e foram jogando-os ribanceira abaixo no perau, o mesmo fizeram com as armas do três meliantes.
Terminado o macabro serviço, os rapazes e os outros motoristas voltaram para seus carros. Assim que se puseram em marcha, entre trovoadas e relâmpagos, caiu um aguaceiro. A chuva era tanta que a pista parecia um rio que descia da montanha. Os veículos entraram no túnel e quando saíram do outro lado o sol dava seus derradeiros raios se despedindo do ultimo dia do ano.
Durante o restante do percurso os dois amigos não conversaram sobre o incidente. Ao chegarem em Garopaba, já quase noite, foram para o hotel, de frente para o mar, deixaram o camaro na garagem e cada um foi para a sua suíte. Mais tarde depois do banho tomado e trocado de roupa, como se nada tivesse acontecido, os rapazes saíram para a beira mar comemorar a virada do ano que se aproximava.
No agitado movimento de pessoas que iam e vinham, ao passarem por num quiosque armado na calçada encontraram alguns amigos e garotas de Florianópolis, Biguaçu, Camboriú e de Lages. Juntaram algumas mesas para acomodar todos e enquanto jogavam conversa fora, bebericaram uns goles e saborearam um camarãozinho na maior animação. A meia noite a queima de fogos iluminou, por um tempo, toda a orla.
Entre beijos e abraços de felicitações de Ano Novo, o grupo se dirigiu para a danceteria Chevalier, que a essa altura já estava lotada. Ao som alto da boa musica, moças e rapazes, de mulheres e homens balançavam o corpo no vai e vem das coloridas luzes de neon. Uma bebida aqui e um baseado ali empolgou o grupo que dançou até de madrugada.
O sol alto acordou garotas e rapazes que seminus amanheceram deitados na praia. Ao redor deles muitas garrafas vazias e tocos de baseados e alguns papelotes contavam como foi o réveillon do grupo.
Depois de se despedirem dos amigos os dois jovens sonolentos caminhavam de volta para o hotel, quando ainda meio tonto, Paulo disse para Roberto, pô cara, acho que bebi demais e por causa da bebida tive um sonho horrível e Roberto confirmou que também teve um sonho horrível.
Na viagem de volta, como a rodovia desce pelo outro lado do Morro, os rapazes nem se lembraram do que ocorreu naquela região no ano passado. O camaro sempre obediente aos comandos do experiente Roberto, rodava tão macio que Paulo puxou um ronco e só acordou quando o veículo parou na frente a sua casa.
Na manhã de segunda feira, Roberto se encontrou com Paulo no Shopping Itaguaçu, disse seus pais estavam reclamando a sua presença e que ele havia decidido voltar para a Argentina e lá concluir o ultimo ano de engenharia.
Meio contrariado com a perda do amigo de estudos e de tantas farras, Paulo voltou para casa. A noite, assistindo o noticiário, soube que um violento temporal havia caído no Morro dos Cavalos, no final da tarde do ultimo dia do ano, ocasionando um grande desmoronamento e que um lado da rodovia, próxima ao túnel, rolou perau abaixo soterrando boa parte do abismo.
Paulo se esticou no sofá e comentou para si mesmo, “que sonho mais louco cara”