Saí de Astorga bem cedo. Havia o prenúncio de um lindo dia de sol, mas o frio era terrível àquela hora da manhã. Calculei algo em torno de 1 grau centígrado.
Deixei a cidade atravessando sua muralha romana do século I e me detive na ermida conhecida como “Ecce Homo” poucos antes de cruzar a antiga ponte igualmente romana, sobre o riacho ou Arroyo de La Vega.
Essa ermida, ou pequena igreja, nos faz lembrar o episódio em que Jesus Cristo foi trazido à presença de Poncio Pilatos pelo Conselho de Líderes Judeus, ou “Sinédrio”, quando então teria sido dito: “EIS O HOMEM” ou "ECCE HOMO" em latim.
Parei ali e pedi pelos meus. Resolvi fazer também uma prece em intenção de todos os injustiçados do planeta, que não são poucos. Jesus talvez tenha sido o maior deles.
Astorga é a última cidade do Caminho com aquelas características que nos fazem imediatamente saber que estamos na Espanha, tais como as construções em amarelo escuro, marrom claro e cor de tijolo.
A partir dessa cidade porém, você perderá totalmente essas referências e entrará em um cenário completamente diferente daquele a que estava acostumado. Casas com paredes de pedras reforçadas por toras de madeira começarão a compor o cenário. Outras em alvenaria, mas pintadas de branco e com janelas retangulares como aquelas a que estamos familiarizados, também substituirão as construções espanholas mais tradicionais.
Passei pela pequenina Murias de Rechivaldo. Ela ainda dormia.
Mais à frente me detive em Santa Catalina de Somoza, não mais que um povoado de 50 habitantes. Enquanto tomava ali meu café, fiquei contemplando o famoso Monte Teleno de 2188 metros completamente nevado. Por isso fazia tanto frio.
Os romanos o consideravam sagrado, mantendo a tradição do povo que ali habitava, mas adotando o nome de divindades já conhecidas na antiga Roma como seus novos guardiões e protetores.
Cerca de 5 km à frente está outro vilarejo que mais lembra uma cidade do antigo faroeste americano: El Ganso - com suas construções em pedra e apenas 35 habitantes. É um primor de lugar. Não resisti e acabei entrando num simpático bar de nome Cowboy (nada mais sugestivo e acertado) para tomar meu canecão de cerveja do qual já estava sentindo falta.
Sempre subindo cheguei finalmente a Rabanal Del Camino, outro lugarejo de apenas 60 habitantes. Dirigi-me ao Albergue "Nuestra Señora Del Pilar" bastante cansado pela subida e por ter caminhado 20 quilômetros até ali. Para minha total surpresa, fui informado de que não havia mais lugares disponíveis.
- Mas como? Não é possível!!!! Tenho certeza de que fui um dos primeiros peregrinos a sair de Astorga, disse.
- É que todos os leitos já foram reservados por telefone, respondeu-me a administradora.
Manifestei prontamente minha indignação e inconformismo. Como era possível num lugar esquecido no tempo, que mal figurava nos mapas, em meio ao nada, um albergue aceitar reservas por telefone? Não estávamos em Madri ou em Nova York. Achei aquilo um absurdo e uma injustiça, pois eu tinha acordado cedo e agora teria que ver outros peregrinos chegando tarde e passando a minha frente.
Meu inconformismo de nada adiantou, pois o albergue era particular e tinha suas próprias regras. Tive que aguardar pacientemente a abertura do Albergue Municipal de Rabanal del Camino, logo ao lado. Lá pelas tantas chegou o administrador com as chaves e fui o primeiro a ser atendido. Escolhi minha cama e apressei-me em tomar uma ducha quente, mas reparei que o banheiro dos homens ainda estava com a porta trancada. Não pensei muito e como era o único ali, fui diretamente para o das mulheres. Ouvi um barulho de gente chegando e comecei a cantar debaixo do chuveiro em voz alta para que soubessem que eu estava ali. Quando saí, vi duas senhoras sentadas em seus respectivos beliches me olhando de cara amarrada.
Desculpei-me dizendo que o espaço destinado aos homens estava fechado e que não me havia restado alternativa. As duas deram um sorrisinho amarelo e foram também tomar seus respectivos banhos, enquanto eu saia para dar uma volta no lugarejo, jantar e depois voltar para dormir.
Na manhã seguinte retomei minha marcha. Queria chegar cedo a Molinaseca, 25 quilômetros à frente. Aquele também seria um dia muito importante, pois eu passaria por Foncebadón, um povoado amaldiçoado por um cigano que foi espancado e queimado vivo na fogueira por seus moradores, simplesmente porque ousara pedir abrigo ali por uma noite durante a sua caminhada. Em sua agonia e em meio às chamas, o cigano vociferou com os olhos carregados de ódio: “Esta vila morrerá aos poucos. Aqui nenhuma mulher dará mais à luz. As que já estiverem grávidas abortarão. O demônio estará sempre ao vosso lado, atento e presente, incorporado em cães ferozes e selvagens”.
Fato é que a outrora próspera Foncebadón entrou em declínio após esse episódio. Realmente a maldição do pobre cigano se confirmou. Não houve mais qualquer nascimento no lugar e as mulheres já grávidas abortaram espontaneamente. À noite ninguém tinha coragem de sair de suas casas, pois dois enormes cães negros patrulhavam suas vielas. Os peregrinos passaram a evitá-la. Até hoje alguns deles preferem desviar pela estrada quase deserta que circunda o vilarejo do que passar ao lado de suas casas em ruínas, onde o telhado de algumas delas encosta literalmente no chão.
O dia também seria especial porque eu passaria pela famosa Cruz de Ferro, o ponto emblemático mais alto do Caminho com seus 1504 metros logo depois de Foncebadón, onde os peregrinos há séculos atiram pedras em sua base fazendo antes um pedido. Esse pequeno monte onde se encontra hoje esta cruz, era outrora chamado de “Monte de Mercúrio”, sendo utilizado pelos romanos para marcar a divisão entre as províncias de El Bierzo e da Maragateria. Era muita emoção para um só dia!! Resolvi passar logo por Foncebadón enquanto alguns peregrinos receosos tomavam o desvio para a estrada, evitando-a. Imagine se eu iria perder uma oportunidade dessas.
Por via das dúvidas, segurei fortemente meu cajado da Navarra que tem um bico pontiagudo de ferro. Se o capeta em forma de cachorro viesse me atacar ele iria levar uma boa bordoada.
O lugar é realmente lúgubre e decadente – melhor dizendo, fantasmagórico. Em meio às ruínas ainda sobrevivem alguns poucos bares e albergues. Tomei café em um deles e prossegui meu caminho. Nenhum cachorro se atreveu a enfrentar a fúria do meu fiel cajado.
Eu estava com as mãos cortadas pelo frio. A esquerda eu ainda conseguia enfiar no bolso do meu casaco, mas a direita não tinha jeito, pois tinha que segurar o cajado com ela. Que bom se eu tivesse ao menos uma luva para essa mão, pensei.
Sei que ninguém vai acreditar, mas assim que deixei Foncebadón vi algo bem no meio da trilha: era uma luva marrom de lã e exatamente para a mão direita. Não pude deixar de sentir uma forte emoção nesse momento. Coincidência ou não, este fato me impactou fortemente, fazendo-me ficar com os olhos úmidos. Agradeci pelo ocorrido sem saber exatamente a quem. Até hoje tenho essa luva em meu escritório, com lugar de destaque entre outros objetos que trouxe do Caminho.
Logo em seguida avistei a mística Cruz de Ferro, onde fiz minhas preces e depositei minhas pedrinhas colhidas pouco antes no caminho. Onde estaria aquela da jovem holandesa que encontrara dias atrás a caminho de Navarrete? Teria ela realmente colocado ali a sua pedra?
Continuei andando e depois de ter passado por Manjarín, um lugar despovoado onde existe apenas um refúgio místico para peregrinos, cheguei ao cume do “Collado de las Antenas”, uma destacada elevação com 1515 metros. A partir dali comecei uma frenética descida, passando por El Acebo e Riego de Ambrós até chegar finalmente a Molinaseca, uma linda e simpática cidadezinha de 800 habitantes onde entrei após cruzar uma antiga ponte romana ali existente sobre o rio Meruelo.
Para minha surpresa, embora tivesse saído cedo de Rabanal del Camino, não havia mais vagas disponíveis. Não tardei em descobrir que ali também aceitavam reservas por telefone, feitas normalmente por peregrinos europeus e americanos. Em alguns anos se as coisas continuarem assim vai ter gente fazendo reservas e chegando nos albergues trazidas por helicópteros, pensei comigo mesmo.
Eu já havia caminhado 25 quilômetros, mas tive que buscar refúgio em Ponferrada, 8 km adiante. A vida de peregrino é dura, mas ninguém havia me convidado. Eu estava ali porque queria, portanto não havia o que reclamar. Assim pensando cheguei a Ponferrada, alquebrado e extenuado, mas com a sensação do dever cumprido. Tinha vencido mais uma etapa.
Deixei a cidade atravessando sua muralha romana do século I e me detive na ermida conhecida como “Ecce Homo” poucos antes de cruzar a antiga ponte igualmente romana, sobre o riacho ou Arroyo de La Vega.
Essa ermida, ou pequena igreja, nos faz lembrar o episódio em que Jesus Cristo foi trazido à presença de Poncio Pilatos pelo Conselho de Líderes Judeus, ou “Sinédrio”, quando então teria sido dito: “EIS O HOMEM” ou "ECCE HOMO" em latim.
Parei ali e pedi pelos meus. Resolvi fazer também uma prece em intenção de todos os injustiçados do planeta, que não são poucos. Jesus talvez tenha sido o maior deles.
Astorga é a última cidade do Caminho com aquelas características que nos fazem imediatamente saber que estamos na Espanha, tais como as construções em amarelo escuro, marrom claro e cor de tijolo.
A partir dessa cidade porém, você perderá totalmente essas referências e entrará em um cenário completamente diferente daquele a que estava acostumado. Casas com paredes de pedras reforçadas por toras de madeira começarão a compor o cenário. Outras em alvenaria, mas pintadas de branco e com janelas retangulares como aquelas a que estamos familiarizados, também substituirão as construções espanholas mais tradicionais.
Passei pela pequenina Murias de Rechivaldo. Ela ainda dormia.
Mais à frente me detive em Santa Catalina de Somoza, não mais que um povoado de 50 habitantes. Enquanto tomava ali meu café, fiquei contemplando o famoso Monte Teleno de 2188 metros completamente nevado. Por isso fazia tanto frio.
Os romanos o consideravam sagrado, mantendo a tradição do povo que ali habitava, mas adotando o nome de divindades já conhecidas na antiga Roma como seus novos guardiões e protetores.
Cerca de 5 km à frente está outro vilarejo que mais lembra uma cidade do antigo faroeste americano: El Ganso - com suas construções em pedra e apenas 35 habitantes. É um primor de lugar. Não resisti e acabei entrando num simpático bar de nome Cowboy (nada mais sugestivo e acertado) para tomar meu canecão de cerveja do qual já estava sentindo falta.
Sempre subindo cheguei finalmente a Rabanal Del Camino, outro lugarejo de apenas 60 habitantes. Dirigi-me ao Albergue "Nuestra Señora Del Pilar" bastante cansado pela subida e por ter caminhado 20 quilômetros até ali. Para minha total surpresa, fui informado de que não havia mais lugares disponíveis.
- Mas como? Não é possível!!!! Tenho certeza de que fui um dos primeiros peregrinos a sair de Astorga, disse.
- É que todos os leitos já foram reservados por telefone, respondeu-me a administradora.
Manifestei prontamente minha indignação e inconformismo. Como era possível num lugar esquecido no tempo, que mal figurava nos mapas, em meio ao nada, um albergue aceitar reservas por telefone? Não estávamos em Madri ou em Nova York. Achei aquilo um absurdo e uma injustiça, pois eu tinha acordado cedo e agora teria que ver outros peregrinos chegando tarde e passando a minha frente.
Meu inconformismo de nada adiantou, pois o albergue era particular e tinha suas próprias regras. Tive que aguardar pacientemente a abertura do Albergue Municipal de Rabanal del Camino, logo ao lado. Lá pelas tantas chegou o administrador com as chaves e fui o primeiro a ser atendido. Escolhi minha cama e apressei-me em tomar uma ducha quente, mas reparei que o banheiro dos homens ainda estava com a porta trancada. Não pensei muito e como era o único ali, fui diretamente para o das mulheres. Ouvi um barulho de gente chegando e comecei a cantar debaixo do chuveiro em voz alta para que soubessem que eu estava ali. Quando saí, vi duas senhoras sentadas em seus respectivos beliches me olhando de cara amarrada.
Desculpei-me dizendo que o espaço destinado aos homens estava fechado e que não me havia restado alternativa. As duas deram um sorrisinho amarelo e foram também tomar seus respectivos banhos, enquanto eu saia para dar uma volta no lugarejo, jantar e depois voltar para dormir.
Na manhã seguinte retomei minha marcha. Queria chegar cedo a Molinaseca, 25 quilômetros à frente. Aquele também seria um dia muito importante, pois eu passaria por Foncebadón, um povoado amaldiçoado por um cigano que foi espancado e queimado vivo na fogueira por seus moradores, simplesmente porque ousara pedir abrigo ali por uma noite durante a sua caminhada. Em sua agonia e em meio às chamas, o cigano vociferou com os olhos carregados de ódio: “Esta vila morrerá aos poucos. Aqui nenhuma mulher dará mais à luz. As que já estiverem grávidas abortarão. O demônio estará sempre ao vosso lado, atento e presente, incorporado em cães ferozes e selvagens”.
Fato é que a outrora próspera Foncebadón entrou em declínio após esse episódio. Realmente a maldição do pobre cigano se confirmou. Não houve mais qualquer nascimento no lugar e as mulheres já grávidas abortaram espontaneamente. À noite ninguém tinha coragem de sair de suas casas, pois dois enormes cães negros patrulhavam suas vielas. Os peregrinos passaram a evitá-la. Até hoje alguns deles preferem desviar pela estrada quase deserta que circunda o vilarejo do que passar ao lado de suas casas em ruínas, onde o telhado de algumas delas encosta literalmente no chão.
O dia também seria especial porque eu passaria pela famosa Cruz de Ferro, o ponto emblemático mais alto do Caminho com seus 1504 metros logo depois de Foncebadón, onde os peregrinos há séculos atiram pedras em sua base fazendo antes um pedido. Esse pequeno monte onde se encontra hoje esta cruz, era outrora chamado de “Monte de Mercúrio”, sendo utilizado pelos romanos para marcar a divisão entre as províncias de El Bierzo e da Maragateria. Era muita emoção para um só dia!! Resolvi passar logo por Foncebadón enquanto alguns peregrinos receosos tomavam o desvio para a estrada, evitando-a. Imagine se eu iria perder uma oportunidade dessas.
Por via das dúvidas, segurei fortemente meu cajado da Navarra que tem um bico pontiagudo de ferro. Se o capeta em forma de cachorro viesse me atacar ele iria levar uma boa bordoada.
O lugar é realmente lúgubre e decadente – melhor dizendo, fantasmagórico. Em meio às ruínas ainda sobrevivem alguns poucos bares e albergues. Tomei café em um deles e prossegui meu caminho. Nenhum cachorro se atreveu a enfrentar a fúria do meu fiel cajado.
Eu estava com as mãos cortadas pelo frio. A esquerda eu ainda conseguia enfiar no bolso do meu casaco, mas a direita não tinha jeito, pois tinha que segurar o cajado com ela. Que bom se eu tivesse ao menos uma luva para essa mão, pensei.
Sei que ninguém vai acreditar, mas assim que deixei Foncebadón vi algo bem no meio da trilha: era uma luva marrom de lã e exatamente para a mão direita. Não pude deixar de sentir uma forte emoção nesse momento. Coincidência ou não, este fato me impactou fortemente, fazendo-me ficar com os olhos úmidos. Agradeci pelo ocorrido sem saber exatamente a quem. Até hoje tenho essa luva em meu escritório, com lugar de destaque entre outros objetos que trouxe do Caminho.
Logo em seguida avistei a mística Cruz de Ferro, onde fiz minhas preces e depositei minhas pedrinhas colhidas pouco antes no caminho. Onde estaria aquela da jovem holandesa que encontrara dias atrás a caminho de Navarrete? Teria ela realmente colocado ali a sua pedra?
Continuei andando e depois de ter passado por Manjarín, um lugar despovoado onde existe apenas um refúgio místico para peregrinos, cheguei ao cume do “Collado de las Antenas”, uma destacada elevação com 1515 metros. A partir dali comecei uma frenética descida, passando por El Acebo e Riego de Ambrós até chegar finalmente a Molinaseca, uma linda e simpática cidadezinha de 800 habitantes onde entrei após cruzar uma antiga ponte romana ali existente sobre o rio Meruelo.
Para minha surpresa, embora tivesse saído cedo de Rabanal del Camino, não havia mais vagas disponíveis. Não tardei em descobrir que ali também aceitavam reservas por telefone, feitas normalmente por peregrinos europeus e americanos. Em alguns anos se as coisas continuarem assim vai ter gente fazendo reservas e chegando nos albergues trazidas por helicópteros, pensei comigo mesmo.
Eu já havia caminhado 25 quilômetros, mas tive que buscar refúgio em Ponferrada, 8 km adiante. A vida de peregrino é dura, mas ninguém havia me convidado. Eu estava ali porque queria, portanto não havia o que reclamar. Assim pensando cheguei a Ponferrada, alquebrado e extenuado, mas com a sensação do dever cumprido. Tinha vencido mais uma etapa.