O QUARTO DE PENSÃO
O QUARTO DE PENSÃO
Foi à noitinha que as coisas começaram a aparecer. Ou melhor, a desaparecer.
Uma imagem antiga latejava situações que se embaralhavam. Sorrateiramente. Insinuava-se sensual a ponto de se sobressair às figuras reais. E dores guardadas na memória voltavam. Forçavam-na a criar mecanismos para se defender. Mas em vão.
“Inferno! Basta disso!” Luíza esbravejava. Não mais suportava a enxurrada de imagens aleatórias. Jorrando de todos os lados. Estava com medo.
De repente tudo ficou quieto. Muito quieto. Um silêncio implacável anunciava um esquecimento. Pausadamente. Mas ela sabia que aquilo iria voltar.
Então, Luíza viu. E o que viu tomou-a por completo.
Havia uma vida que se desenrolava além do seu quarto de pensão. Na Zona Leste. E nesta vida estava ela.
Não se lembrava de quando era um bebezinho. Sentia apenas que naquela época seu corpo era tocado com carinho. Por mãos quentes. Macias. Não sabia como e nem por quê seu corpo havia mudado tanto. Era como se aquelas mãos, ao longo dos anos, tivessem se tornado lixas. Que raspavam sua pele. De um jeito vigoroso. Arrancando carne e sangue. Criando cicatrizes horizontais e verticais. Ranhuras que evitavam derrapagens na intenção de escoar suas emoções.
Olhou para trás. A porta do quarto estava trancada. Virou as costas e se pôs a descer as escadas. Andou a rua Tuiuti inteira. Parou na Praça Silvio Romero. O lugar estava vazio. Sentou-se no único banco no meio da praça. Estava exausta. Com pés magoados de tantos passos tropeçando pedras. Tocando brasas. Fogo. E fumaça.
Luíza descansa.
As horas passam por ela feito poeira dançando à luz de uma vela. Um vento fininho raspou rente no topo de sua cabeça. Quase desarrumou seu cabelo penteado do mesmo jeito desde sempre. E para sempre.
Aquele vento era quase lamento. Meio sussurro de soluço. Meio frio. Meio longo. Sombrio.
“Por que não tem ninguém na praça?” Luíza não tem resposta. Nem ela mesma sabe o que está acontecendo. Aquele estava longe de ser um cenário normal.
Seu corpo estava leve. Parecia flutuar entre a grama e o vento. Sentia sob a sola dos pés a massa do vácuo. Vivia um momento de apagão de si mesma.
As lembranças surgiam num efeito cascata. Aceleradamente.
Diante dela algo antinatural virava tragédia. Sempre e sempre.
Perdera Laércio. O companheiro. De vinte e cinco anos. Uma convivência harmoniosa. Que terminou em 17 de julho de 2007. No voo JJ 3054 operado pelo Airbus A320-233 de prefixo PR-MBK com 187 pessoas a bordo.
As palavras do copiloto Henrique Di Sacco, não saíam de sua cabeça: “Desacelera, desacelera”. A resposta do comandante Lima foi decisiva: “Não dá, não dá”.
Luíza não consegue desacelerar.
O voo de Porto Alegre a São Paulo, antes denominado JJ3054, agora é designado como JJ 3046. Ela precisa voltar para o seu quarto de pensão.
Não passa um dia sem que Luíza se lembre. De como abraçou Laércio pela última vez. Faz isto há dez anos.
E nesta noite. Não há sonhos. Onde possa beijá-lo. Não há chão para que ela possa voltar.
Mírian Cerqueira Leite