O AFIADOR DE FACAS
O AFIADOR DE FACAS
Era de madrugada. Quando todas as casas estavam quietas. E as camas rangiam pesadelos leves.
Madrugada quente. Quase impiedosa perante o repouso dos corpos diariamente exaustos.
Um vira pra cá, vira pra lá trazia, nesta noite, uma teimosia pegajosa. De não entrar no reino dos sonhos.
Amanhã é quase hoje. Maria Dalva repetia feito ladainha, para si mesma. Uma dor enviesava sua barriga. Nascia de dentro e rasgava por fora. E ela sabia que não ia parar.
Fazia as contas, não de carneirinhos pulando a cerca, mas da última vez que comeu alguma coisa. Não se lembrava muito bem. A fome embaralhava sua memória.
Quando trabalhava no restaurante do shopping comia bem. Antes de ir embora, seu colega preparava uma quentinha. E jantava gostoso. Aí sim, o sono batia fundo. Ficou por lá bem uns dois anos. Perdeu o emprego e não conseguia arrumar outro. Fazia tempo que voltava pra casa de mãos e barriga vazias. Assim que foi mandada embora, não conseguia mais dormir. A fome mantinha seu corpo em alerta. Os olhos faziam vigília constante. As pálpebras esticavam secura. E doíam ao piscar.
Sabia que precisava ao menos beber água. Mas ela caía no estômago vazio como cascata resvalando as pedras. E doía. Dor por dor, menos uma que podia evitar. Então, não se hidratava. E não dormia.
De manhãzinha o afiador de facas assobiava sua passagem. A vizinha conhecia aquela cantarola. Levava seus alicates de unha e suas tesouras para amolar. A cabeleireira Lucinda era sua cliente assídua. Colocavam as novidades em dia. Enquanto ele trabalhava, ela fazia o café. Servia com uns bons pedaços de bolo de laranja. Enquanto ele saboreava a guloseima, ela tricotava conversas. Ali mesmo na calçada.
Nada escapava. Tudo sabiam e ainda trocavam informações mais recentes. Toda quarta-feira a rotina matinal era esta.
A cabeleireira Lucinda pouco ou quase nada sabia sobre Maria Dalva. Mas uma coisa era certa. Se fazia sol, Maria Dalva abria a janela do seu quartinho. Se chovia, abaixava a vidraça.
Janela tosca e emperrada. Mas naquele dia ensolarado a janela permaneceu fechada.
Mírian Cerqueira Leite