A FERA DA AVENIDA NOVE DE JULHO
Eliseu estava com o pai dentro do ônibus Santo Amaro-Centro quando o túnel da avenida Nove de Julho, correu a sua escuridão de túnel .
O menino apavorou-se com a extensão do breu. Saltou os olhos pela janela e cheirou fundo o gás carbônico exalado pelos carros. Troço imenso, o interior daquela caverna. O fedor, uma garganta. Certamente algum bicho sanguinário já dormira ali. Isso antes dos veículos, antes da construção da cidade de São Paulo.
No retorno para casa, pai e filho encontraram novamente o túnel. O trânsito vinha devagar. Arrastava a lataria dos automóveis que pareciam paralisados de medo. Entraram na toca. Eliseu lembrou -se da ida e concluiu que a antiga fera ainda habitava aqueles subterrâneos. Sim, morava ali e certamente caçava para comer.
O coletivo parou. Eliseu observou os ladrilhos oleosos que revestiam as paredes da gruta. O felino provavelmente raspara ali a gordura do seu lombo, do corpo nutrido.
O menino percebeu que em qualquer lugar, no fim do engarrafamento ou do meio da escuridão, a fera surgiria. Dos bueiros, viria para morder pneus do ônibus. Agora mesmo poderia estar triturando a borracha, mastigando as calotas. A carne de uma criança de cinco anos valeria um tira-gosto. Precisava fugir.
O lotação decidiu sair da fila, buscou a segunda pista, fez a curva e, no fim do túnel, acelerou em fuga, descendo a ladeira, rumo à zona sul da cidade. Escapara milagrosamente.
No sábado seguinte, novo passeio. O pai trouxe o filho para comprar sapatos no centro da cidade. O centro caminhava lotado de pés, pernas e rostos intactos. Vendiam-se sapatos, bengalas e chapéus.
Na ida, antes do centro, Eliseu encontrou a caverna da Nove de Julho e dessa vez buscou as pegadas do bicho. Procurou as vítimas. Leões ou tigres sempre deixam restos da caça. Juntam montanhas de esqueletos.
O ônibus vinha lentamente e não se via o rastro do animal mas, de repente, ouviu-se um som que se debateu nas paredes. Multiplicou-se. Não era o acionar das buzinas, nem o estouro dos escapamentos. Foi um urro amplificado de fera. Um rugido que envolveu o ambiente. Eliseu soube que a garganta do monstro vibrava. Os caninos seriam vistos em instantes. O menino apertou os ferros do assento. Chegaria a hora do bote. Fechou os olhos.
E o ônibus novamente manobrou, disparou os pneus, e um berro imenso soltou-se no espaço.
Mais uma vez fugira por pouco. O ninho do carnívoro ficara para trás. Eliseu saíra do túnel, mas escapara somente para assistir o terror do lado de fora. Ver cabeças petrificadas jorrarem água pelas bocas. Serem restos de uma refeição do monstro e ele, decerto, encostava a língua naqueles lagos. Ainda bebia o suco das vítimas.
Os delegados, a polícia, os bombeiros poderiam proibir tantos devoramentos.
Na volta do passeio, sentou-se nos bancos da frente. Calçava sapatos novos e enfrentaria o felino. Não queria lutar com o bicho. Amarrar suas patas. Não queria matá-lo, enforcando-o (no jeito Tarzan de matar o leão). Queria encará-lo.
Quando o ônibus Centro-Santo Amaro alcançou a entrada da escuridão, o menino vinha pronto para o embate visual – seu olho no olho do lince – contudo, nessa hora, reparou que havia dois acessos, duas cavernas de ida e vinda. Entendeu o mistério. Jamais encontrou o animal, pois o gato imenso sempre esteve do outro lado.
O ônibus passou sem pressa, e Eliseu alertou-se para as sobras arrotadas pela besta-fera. O bicho arrotara uma hélice de avião (alguém pregou no teto) e havia papéis e galhos e calotas e pedaços do asfalto cuspidos.
As marcas de pneus freados atestavam a aparição da fera.
Eliseu não avistou o felino e jamais o veria nitidamente, pois, mesmo à noite – quando os caçadores viessem – as luzes dos carros camuflariam o olhar do carnívoro. Ele seria o Aero-Willys de garras retráteis. O Dodge- Dart que abocanha as zebras
“O felino dorme de madrugada”, pensou. Por isso há tantos cachorros andando à noite pela cidade.
O ônibus afastou-se. Os sapatos passaram no teste de coragem.
No domingo seguinte, quando esquecera a história do túnel, Eliseu foi ao cinema. O pai o levara para assistir a um documentário sobre o mundo animal. O filme mostrava a intrincada sociedade dos animais, onde os machos marcavam territórios através da urina. Chamavam as fêmeas pelo cheiro.
Eliseu viu e não viu o filme, porque a maior aberração foi o lance entre a caranguejeira e o besouro. Filmaram a cena. O pequeno cascudo matava a aranha, introduzia o corpo do animal em um buraco e injetava nas entranhas da bicha dezenas e dezenas de ovos, futuras larvas, novos besouros.
O menino apavorou-se. Estremeceu. Sentiu um frio cortante entre as pernas e o medo vinha da caranguejeira, a peluda venenosa que tomara conta do cinema. O besouro não a matara. Muitas patas não morrem. A aranha conhecia os seus próprios disfarces e sua saliva.
Na hora Eliseu recolheu os pés na poltrona. Sentiu-se acuado e, quando chegou em casa, passou a catar pelos em sua cama.
Veio então a semana calorenta. Nem tinha sentido sair de casa. Chatear-se na escola. Ali somente desenhava o polvo, a barata, o rato dentro do foguete. E foi na quarta-feira, no meio do recreio, as meninas gritaram que tem uma aranha debaixo do escorregador, professora!
O menino não acreditou. Assistira ao filme. E as imagens saltaram da tela.
Caminhou até a área dos brinquedos. Bichos estranhos poderiam vazar pela areia grossa ali acumulada. Aproximou-se e viu. Ela, quase parada, desafiando o sol. A mesma caranguejeira do filme. A carcaça esticava as pernas. Lentamente, pinças peludas catavam grãos. As pontas escuras das pernas pareciam soltar pequenos crânios. A aranha não tinha sentido e alguém a chamara.
Eliseu percebeu que o seu medo foi o chamariz. Ele expelira a peçonhenta da areia. Ela estava ali para conferir o medroso.
Essa divagação grudava no menino, quando a professora surgiu. Fez careta, gritou, buscou a diretora para tirar uma coisa horrível do parquinho das crianças. A diretora ordenou ao zelador a captura do bicho. O sujeito cumpriu a ordem e mostrou o aracnídeo dentro de um vidro de biscoitos. O nojo das crianças foi geral.
Eliseu confirmou então a suspeita. Ele, um guri de cinco anos, e também o seu xixi de cinco anos, chamaram a venenosa.
Voltou apreensivo para casa. Lembrou-se da fera do túnel e de como pensara nela com um pavor tão grande a ponto de congelar-se sob o assento do ônibus.
O medo de Eliseu cumprirá sua maldição. Ele convocou a besta do túnel.
Sim. O felino escapou da caverna. Ele ruge e morde o ar. Cheira na brisa o fedor do couro de sapatos novos.
O bicho corre. Não respeita os faróis. (Os monstros apenas conhecem o sinal verde.) Ninguém multará a fera. Seu focinho quente logo chegará à rua Dom Pedro II. O menino procurou não pensar. Não urinar.
Ligou a TV e sintonizou o rugido. O túnel corria em sua cabeça. E chegava o cheiro de óleo. Na África, as leoas caçavam e injetavam veneno através da saliva. Os leões pastavam mais pacíficos. A fera da avenida seria outro animal, uma deformação, o “basferonte”!
A tevê mostrou um comercial do Posto Esso. Repetiam o slogan: “Ponha um tigre no seu carro!”.
O tigre no seu carro! Eliseu percebeu - o slogan agourento informava o inevitável - ele seria a próxima vítima.
DO LIVRO: "AS CRIANÇAS DO GENERAL MÉDICI e outras histórias"