O CHALÉ DOS ESPÍRITOS.

O CHALÉ DOS ESPÍRITOS

Estive clinicamente morto. Nada do tipo que os entendidos chamam de EQM. Não me vi flutuando, observando o meu corpo sendo socorrido por médicos, assim como nenhum parente falecido veio ao meu encontro. Também não subi aos céus ou desci aos infernos. Simplesmente apaguei e ressuscitei ao terceiro dia. E, incrível, sem nenhuma dor ou seqüela. Estava novinho em folha, para surpresa de todo corpo clínico da UTI.

- Só pode ser milagre! Não tem outra explicação! – dizia a freira enfermeira.

O médico intensivista contestou: - Não acredito em milagres, tem que haver alguma explicação.

Eu tinha sido imprudente. Sem capacete, pilotava a possante moto, imprimindo velocidade embriagante. Não deu outra. No acidente, caí de cabeça no asfalto. Morte cerebral, foi o diagnóstico. A família reunida para decidir sobre a doação de órgãos. Sorte que resolveram esperar mais um pouco.

Estava sendo objeto de estudos. Até mesmo veio padre para saber se eu era devoto de algum santo.

Religioso somente fui até a adolescência. Teve época que queria ir para terras estranhas, ser missionário e morrer mártir, para ser canonizado e ganhar o reino dos céus. Depois, na fase universitária, dei uma guinada para a esquerda, era admirador de Mao, Che e Lênin. Aposentado com mordomia do serviço público e divorciado, virei um play boy cinqüentão. Tudo pelo divertimento. A vida é breve.

Ainda fiquei quinze dias no hospital, a despeito de minhas reclamações. Os facultativos relutavam em me dar alta.

Voltei para casa. E, aí, começaram os fenômenos.

***

A casa é um chalé antigo, pertencente à família desde os fins do século XIX., adquirida por meus bisavós. Ali nasceram minha avó e seus irmãos, minha mãe e tias, eu e meus irmãos. Por motivos sentimentais, nunca foi colocada à venda e a sua posse coube a mim na última partilha.

Os médicos me aconselharam a deitar e acordar cedo, pelo menos por alguns dias. E assim o fiz.

Na primeira noite acordei com estalos de madeira. Não tive dúvidas: era apenas a variação climática dilatando a escrivaninha. Depois, luzes se acendendo nos corredores e escadaria. Chamei o eletricista. Não havia nada de errado. Até que senti um cheiro que me fez voltar aos seis anos de idade. O cheiro do meu tio avô pitando o seu cigarro de palha. Só podia ser sonho, mas não era. Levantei-me e fui para o quarto que era dele e onde morreu. Além do cheiro inconfundível, o som de sua tosse seca. Acendi a luz e tudo sumiu. Alucinação? Chamei: - Tio! Tio Mamed! – como resposta apenas outro estalo de madeira.

***

- Bom dia, doutor! Aqui tá o seu cafezinho. Do jeito que o senhor gosta.

- Obrigado, Marta. Não sei o que faria sem você.

- Ontem eu escutei o senhor saindo do seu quarto e indo lá para os fundos. Perdeu o sono?

Não respondi. Mas indaguei: - Marta, você acredita em fantasmas?

- Credito sim! Sou espírita.

- Tem fantasmas nesta casa?

- Credo! Claro que não. Tô aqui com o senhor há um tempão. Nunca senti nada.

***

Passou uma semana sem nenhum outro fenômeno. Apenas o estalar de madeira. Resolvi fazer uma experiência. Mentalmente, indaguei: - tem alguém aqui? Se tiver, dê três estalos na madeira. E logo: - plec, plec, plec.

Arregalei os olhos. Seria coincidência? Levantei e acendi a luz. Nada.

Voltei para a cama. Entre o sono e a vigília, vi, vestida com seu robe favorito, a irmã mais velha de minha mãe, a tia Margarida. Depois a minha avó e o avô que só conheci por fotografias. Sons de patas de cavalo. Eram os bisavós e seus outros filhos. Acordei suando. No ar, o cheiro de alfazema, perfume favorito da tia Margarida.

Consultar quem? Médium, psiquiatra, psicólogo, padre ou pastor? Sei lá! Optei pelo padre, talvez pela minha formação de infância. Também o padre Celso era meu amigo. Companheiro de um bom vinho, de uma caninha ou de uma cerveja. Bom de papo. Convidei-o para vir em casa. Contei-lhe os fatos.

- Você tem bebido muito?

- Depois do acidente, nada.

- Então vamos começar hoje.

Abri um tinto chileno e lascas de parmesão. Ele se dispôs a ficar para dormir. Se acontecesse alguma coisa, saberia o que fazer. E, nessa noite, aumentaram os estalos. Ele não teve dúvida: - é apenas a dilatação da madeira! Você está é impressionado. Amanhã eu volto para benzer a casa. E assim o fez. Não adiantou nada.

***

Os primeiros que apareceram materializados foram dois amigos, quase irmãos, do tempo de faculdade. Eu estava frente ao aparelho de TV assistindo o noticiário, quando eles chegaram. O Carlito, vítima de acidente automobilístico logo após a nossa formatura e o Bastião, enfartado aos trinta e oito anos. Após o susto inicial, nos abraçamos, eles sentaram ao meu lado e contaram sobre suas novas vidas. Conversamos a noite inteira, lembrando os bons tempos. O Carlito prometeu voltar, o Bastião não deu certeza, pois iria ter muito trabalho nos próximos dias. Teria que receber uma pessoa.

Coincidência ou não, uma semana depois fiquei sabendo pelo jornal do falecimento de seu irmão.

***

- Doutor! O senhor não vai levantar? Já está na hora do almoço!

Levantei sonolento. Devo ter dormido ao amanhecer.

- Que houve, doutor? O senhor nunca levanta tarde!

- Perdi o sono, Marta. Vou só comer um pouquinho e vou voltar para a cama.

***

Nas noites que se sucederam, mais amigos que estavam em outro plano vieram me visitar. Um deles foi o doutor Epaminondas, antigo juiz de direito e intelectual. Apesar da grande diferença de nossas idades, fomos bons camaradas. Deixou o corpo aos oitenta e seis anos. Eu era uma espécie de pupilo seu. Aprendi muito com ele. Chegou de cabeça baixa, aparentando tristeza. Confidenciou: - sempre tentei fazer justiça, era a minha religião. Sempre procurei dar o seu a cada qual. Muitas vezes errei, mas de forma involuntária. Estudei muito, valeu a pena. Mas não aprendi a amar. Nunca amei ninguém.

- Ora, doutor, o senhor não amou a sua mulher?

- Sim. Mas não é esse tipo de amor que falo. Não tive filhos e nunca quis ter. Nunca suportei crianças. Também não me importava com a miséria alheia. Fui justo, mas não fui caridoso. Visitava a cadeia pública apenas por obrigação. Eram-me indiferentes os sofrimentos daqueles seres marginalizados e de suas famílias. Aliás, eu era indiferente a tudo e a todos em minha torre de marfim.

- E tem jeito de remediar isso do outro lado?

- Sim, mas primeiro preciso aprender a amar.

***

Nas noites seguintes, outros espíritos vieram me visitar. Com eles, aprendia muito. Já não saia de casa. A Marta preocupadíssima:

- Doutor, o senhor está doente. Só levanta tarde, depois volta a dormir. Nem tá fazendo mais a barba.

- Estou bem, Marta. É que estou estudando à noite.

- E quase não come. Dorme o dia inteiro. Acho bom o senhor ir ao médico.

- Fica tranqüila. Estou muito bem.

***

O doutor Epaminondas voltou a me visitar. Desta vez chegou todo alegre, de mãos dadas com uma menininha de uns quatro ou cinco anos de idade, cabelos negros e curtos, muito branquinha e faces rosadas.

- Esta é a Marcela. Os pais dela são franceses. Estavam trabalhando na Nigéria quando ela deixou a Terra. Chegou sozinha e sem ninguém para recebê-la na nova morada. Eu me ofereci. Me apaixonei pela menina. É o meu xodó. Aprendi a amar. E ficamos a noite toda conversando sobre a importância de saber amar.

***

Há quanto tempo ela havia nos deixado? Fiz as contas: trinta e um anos. Já nem me recordava dela. Continuava corada e com aquele sorriso de Papai Noel. A dona Benedita, mãe de um amigo de juventude, que há muito não vejo. Ela me disse que o filho estava muito bem. Era sócio de uma empresa que prosperava. Fiquei contente com a notícia. Fez careta ao saber que eu estava divorciado: - esses homens! Você ainda não criou juízo! É igualzinho ao meu filho. – ficou a noite toda me dando conselhos.

***

- Alô?

- Pai! Sou eu! A Marta me telefonou. Disse que o senhor está doente.

- Estou bem, filho. A Marta deve estar maluca. Estou ótimo.

- Mas ela me disse que o senhor não sai mais de casa. Que dorme o dia inteiro e passa as noites acordado. Quase não come...

- Mudei a rotina. É que estou trabalhando à noite.

- Trabalhando? Fazendo o que?

- Estudando... escrevendo... essas coisas.

- Assim que tiver um tempo, vou passar aí.

- Não se preocupe, filho.

***

Eu não queria mais ver ninguém. Queria apenas ficar com os meus espíritos. Estava me dando muito bem com eles.

À tia Margarida perguntei: - mas e minha mãe, meu pai... já vieram tantos amigos, por que eles ainda não?

- Não seria bom para você, nem para eles. Um dia vocês se encontrarão, mas não aqui. Eles pediram para dizer que amam você e seus filhos.

- Mas eu gostaria tanto de vê-los!

- É por isso mesmo. Se eles vierem à casa, você poderia querer ir com eles. Ainda não é a sua hora. Mas pode ficar sossegado, quando você tiver que partir, eles estarão ao seu lado.

***

A filha chegou na hora do almoço.

- Pai! O senhor está péssimo!

- Oi, filha!

- Vou levar o senhor ao médico.

- Para que? Estou muito bem!

- Está pálido! Barbudo...

- Tá bem! Vou fazer a barba. Mas não se preocupe com minha saúde. Estou muito bem. Não vou em médico nenhum.

Fui para o banheiro e me olhei no espelho. Realmente estava feio com aquela barba branca. Lembrei que há tempos também não tomava banho. Aqueci a água e mergulhei na banheira. Depois, raspei a barba e me perfumei.

Na sala, encontrei a filha conversando com a Marta. Fizeram silêncio com a minha presença.

- Tá vendo, filha? Que acha agora?

- Melhorou... mas ainda acho que devia ir ao médico.

Voltou à noite, junto com o irmão. Fui obrigado a sair do quarto para recebê-los.

- Pai! O que está acontecendo? Você nunca foi assim... nunca foi caseiro...

- Meninos! Fico contente com a preocupação de vocês, mas não tenho nada. É que tenho muitas coisas para fazer.

- Conta essa pra outro, pai. O que pode estar fazendo em seu quarto?

A Marta entrou na conversa: - fica no quarto falando sozinho.

- Pai! Vamos ao médico.

- De jeito nenhum! Nem amarrado. E, se me dão licença, preciso voltar para o quarto. Tenho compromissos. Fiquei muito contente em ver vocês, mas agora estou ocupado. Tchau!

***

Nessa noite e nas que se seguiram, não recebi nenhuma visita de meus espíritos. Rezei, chamei, gritei por eles e nada. Por que me abandonaram?

***

Não fui amarrado. Fui em camisa de força. Chegaram dois homens de branco, foram se aproximando e, de repente, lá estava eu todo imobilizado.

***

O psiquiatra não acredita. Diz que foi conseqüência da pancada na cabeça. Pouco me importa. Não vou ficar a vida toda nesta casa de repouso. Assim que tiver alta, volto para o chalé. Tenho certeza que meus amigos também voltarão.

a.l.fontela

antonio luiz fontela
Enviado por antonio luiz fontela em 25/05/2017
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