Ela fez um recorte no final da última página e foi dormir. No dia seguinte... bem, no outro dia restavam poucas linhas.
Chorou muito. Naquela semana, tinha feito  enxugamento três vezes repetidas, da primeira à última página. Escreveu até tarde da noite ou dormiu cedo da madrugada. Sob o impulso da inspiração, escrevia... escrevia... Acrescentava, excluía... Foi  na última exclusão que perdeu seu  tesouro.
— Acordado? São três horas da manhã!
— Sim, acordado. Não me vem nenhum sonho maravilhoso dos momentos lindos que não tive. Só me vem agitação e desassossego da alma. Então, acordo e me ponho a conversar com os personagens, como se a vida real fosse uma ficção que se escreve em livros.
— O senhor fala como se lesse as páginas de uma história de vida.
—  É assim que as coisas funcionam. O cérebro é uma caverna venosa, como teia de aranha de uma gruta nunca penetrada por exploradores. Nele há uma biblioteca enorme de todas as páginas folheadas, durante a existência, algumas cobertas de cinzas, por falta de manuseio.
Rolou a tela do computador, escreveu alguma coisa, e vasculhou mensagens instantâneas,  procurando em algum lugar o sorriso perdido.
— Como reencontrar um tesouro?
— Sequer entendes por que uma concha reproduz o som do mar, e queres entender o cérebro humano?
— É  mais fácil  decifrar o barulho da maré guardado numa concha abandonada do que encontrar palavras, uma vez lançada nos ares. Para onde vão as palavras depois de proferidas?
— É só impressão, Bobinho! A concha não reproduz o marejar das águas. Ela apenas concentra os sons, produzidos em seu derredor  como a reverberação do eco numa caverna.
—Como reencontrar palavras espalhadas nos ares. Só as conchas sabem fazer isso.
—Invente um aparelho e podes captar o que foi dito na oralidade há mil, dois mil ou mais anos.
Sentiu-se  um caranguejo ermitão arrastando nas costas a casa alheia. Não descansou. Caminhou  nas dobras do mar, procurando  seus anseios e medos, numa luta vã contra o rochedo. Estava  só. Sozinho na praia. Mas não havia praia. O mar cobriu toda a areia de suas lembranças e o sorriso chega cauteloso, escondendo lágrimas entre o rochedo de muitas interrogações: 'Como desvendar o misterioso labirinto do coração?' 
Tribulações surgem registradas nos diálogos aflitivos:
— Bata à porta! Chame a tia para ver se ela está viva!...
— Estava bem aqui, agorinha. Conversando.
As sobrinhas acham que não é nada grave. A tia deve ter feito a imagem, sem querer. Está  aprendendo a lidar com whats.
—Tirou foto dos pés ou caiu da escada?
— Não sei.  Ela disse que perguntou às pernas, e à cabeça, se poderia com 84 anos subir na laje por uma escada externa.
Alaíde tremeu e amarelou.
— Há uma idade em que não devemos obedecer nem às pernas, nem à cabeça, porque elas há muito, não nos obedecem.
Cai uma chuva amena, e os rostos antes aflitos, voltam a sorrir.
— Neozinha fez uma imagem dos pés e enviou, sem querer.
— Também acordada, Tânia?
— Estou por aqui, tio. Meu pequeno ainda acorda uma vez na madrugada, sempre por  esse horário... Que pena a perda do seu livro... Com certeza, um tesouro!!! Não seria bom ouvir uma segunda opinião? Meu computador sofreu pane, perda total e consegui recuperar fotos (minhas preciosidades).
— Creio que posso usar uma personagem que diz ser capaz de regurgitar tudo que leu. Há muitos e-mails trocados com Ravenala, contendo anexos do livro, embora defasados pelas alterações sofridas no decorrer de meses de enxugamento.
— Confira a lixeira!
— Não é tão difícil assim. Não está na lixeira.
 Robert   encontrou o arquivo salvo como: ‘Livro em construção, acrescido dos dizeres: ‘não presta’. Examinou cuidadosamente o achado. Não prestava mesmo! De tanto lapidar a pedra bruta, pouco restava do que tinha antes. 
Adalberto Lima, trecfho de Estrada sem fim..