A voz narrativa calou-se extasiada. Cessaram os sinos que batiam, enquanto reescrevia  as últimas  páginas do enredo. Refazia cenas e cenários, quando deslizou o mouse sobre duas ou três linhas no  final do último capítulo. Não conferiu o que selecionara e clicou em recortar. Salvou, e desligou a máquina. No dia seguinte, ao retomar o enxugamento, seu livro tinha sumido, das 256 páginas, restavam apenas 23 palavras.
Chorou.
Passava as mãos nos olhos, limpava as lágrimas, mas não conseguia estancar o choro. Acabara de perder dez anos de trabalho. Precisava encontrar-se com Robert   e lamentar a perda de todo o trabalho produzido a quatro mãos.
O sol se punha sobre suas lembranças. Era hora acordada para  tomar a rodovia Rio—Petrópolis.
— Hoje não teremos ‘sarau’ no sítio  de Alice.
— Pelo visto, a amiga precisa dos serviços de um encanador. Há um rompimento no canal da graça, e todo teu rosto está banhado de sofrimento.
— Mesmo sob o peso da dor, é impossível segurar o riso, quando se tem diante dos olhos um humorista que faz do vale de lágrimas um cântico de louvor. Aceita um vinho?
— Só meia taça...
Ela precisava de estímulos externos para libertar o pomo de Adão preso na garganta. Serviu vinho para Robert  , e tomou suco de maracujá.
— Veja! Consegui reduzir ‘Tranças Congeladas’ numa só página.
Robert   não entendeu. Pensou que fosse uma resposta a sua insistente ideia de enxugar, enxugar sempre o livro, excluir personagens, eliminar capítulos...
— Jogou na lixeira?
— Se estivesse na lixeira, meu amigo! Seria fácil recuperar. Já consultei um técnico em informática. ‘Quando se recorta e salva, todo o texto selecionado, desaparece. Exala. Não há tábua de salvação. Perdemos o livro.
— Posso dar uma olhada nos arquivos?
— Ganhará um beijo se trouxeres de volta a família Generoso.
— Muitas vezes tropecei na tecnologia! Mas nem tanto assim, maninha. Meu Deus, Meus Deus! restaram apenas 23 palavras!
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Adalberto Lima: Fragmento de Estrada sem fim (obra em construção)