Alucinações de Uma Sombra.
 

Capítulo III
 
 
 A polícia militar foi embora por volta das 00:47 da quinta feira. Chalev Dhror da Silva não dormiu, nem sequer pregou os olhos por um minuto. Andava pela casa como uma assombração, ia de um lado ao outro da casa. As vezes, descia para o quintal, olhava a cara do cavalo cravejada de balas, depois voltava a perambular no interior da residência.

As oito horas da manhã, Chalev foi até a padaria. Procurou pelo dono do estabelecimento. O atendente, um sujeito baixinho, usando chinelas havaianas, apontou indicando onde e quem era o dono, mas perguntou:

 -- Se o senhor quiser eu posso ir chamá-lo.

 Chalev achou melhor não chamar, foi até onde estava o proprietário do estabelecimento.

 -- Bom dia, sou da polícia, preciso conversar com o senhor a respeito do roubo. O senhor tem um lugar para conversarmos sem sermos ouvidos ou interrompidos por terceiros?

 -- Perfeitamente. Meu nome é Manoel Vasco Pitanga, vou colocar o senhor a parte de tudo. Por favor, vamos até o escritório.

 Na realidade não era propriamente um escritório, mas um quarto que guardava a farinha de trigo. No canto esquerdo da porta, tinha uma mesinha de madeira com uma calculadora e uma pasta sanfonada de A-Z.

 -- Senhor policial, o que roubaram foi uma encomenda de um cliente muito especial.  Assim como ele ficou em uma situação muito delicada com seus convidados, eu também estou em maus lençõis com ele, afinal ele me tem muito em conta. Achar os larápios é uma questão de honra para ele. Mas me perdoe, qual é o nome do senhor?

 Dhror nunca informava seu nome verdadeiro para as pessoas envolvidas nas investigações ou para estranhos. Regra número um, assim pensava. Dhror tinha três regras fundamentais, essa era a primeira.

 -- Senhor Manoel, meu nome é Kern Schlaff, preciso que o senhor seja bastante preciso e tente se lembrar de qualquer detalhe, mesmo que não seja importante para o senhor. Estamos combinados?

-- Perfeitamente detetive, o que era a mercadoria: vinte e três sonhos, sendo dez com recheios amarelo e treze com recheios vermelho claro. Doze sonhos tinham coberturas, onze tinham uma calda de caramelo. Cinco roscas grandes com recheio amarelo com cobertura, açúcar refinado. Dez broas grandes, um pão de milho e três garrafas de coca cola de dois litros e meio.

-- Senhor Vasco Pitanga, quem fez as quitandas e quem foi fazer a entrega?

 -- Foram dois rapazes, que por sinal são irmãos, Severino Virgulino D'almeidinha e Virgulino Severino D'almeidinha, assim que ficou pronto, pedi a eles pra entregar.  Já havia combinado com eles no final da tarde do dia anterior: eles iriam fazer, entregar e depois estariam dispensados, poderiam ir pra casa.

Logo que as quitandas ficaram prontas, eles embalaram em papel alumínio, colocaram tudo dentro de uma caixa de papelão grande, de cor marrom, fecharam bem com fita adesiva, daquelas bem largas e partiram. Eles saíram da padaria por volta das quatro horas da tarde, meu cliente queria tudo na casa dele antes das cinco.

-- Senhor Pitanga, qual o nome do seu cliente e onde ele mora?  Perguntou Chalev.

-- Lamento senhor Kern Schlaff, mas não posso lhe informar o nome e o endereço. É confidencial.

Pouco tempo depois que o padeiro negou informar o nome e o endereço do cliente, Chalev começou a ter palpitações aceleradas. Disfarçou bem, treinava meditação há muito tempo. As palpitações começaram a chacoalhar seu corpo por dentro e sua mente começou e ficar meio turva, meio embotada, uma névoa começou a tomar conta de sua consciência, era o prenúncio de um surto.

Um ódio pelo senhor Pitanga começou a tomar proporções estapafúrdias, as palpitações começaram a se misturar com o embotamento da mente de Dhror. Uns leves repuxões abaixo do olho direito de Chalev indicava situação crítica para ele, tentou controlar o embaçamento, as palpitações e os repuxões. Chalev começava a virar passageiro de sua própria mente perturbada!

Usando de todas as forças que dispunha naquele momento, conseguiu manter um braço preso ao corpo, mas o outro ficou esticado para frente com o dedo polegar e o indicador colados. Equilibrando apenas no salto do sapato e com o bico do seu sapato apontado para o teto, Chalev, conseguiu fechar o olho que não repuxava e falou com senhor Manoel:

-- Vá até onde está Sêeeeverino e Vêeeergulino, os irmãaaos, traga-os aqui. Gesticulava balbuciando. Agora, mantendo os dentes de cima tampados pelo lábio superior, todavia os dentes frontais da arcada de baixo ficaram expostos. O lábio inferior retraiu ao máximo para baixo.

Senhor Vasco Pitanga entrou no quartinho acompanhado dos irmãos D'almeidinha.

Chalev Dhror estava virado para a parede, de costa para a porta de entrada. Pediu para o senhor Manoel deixar o quarto e fechasse a porta.

Logo que a porta foi fechada, Dhror se virou para os dois funcionários, nas pontas dos calcanhares e com o rosto todo retorcido, com um olho fechado e o outro se repuxando por conta própria.

Chalev retirou sua Pistola Taurus PT838 - .380 ACP do coldre feito de couro de canguru australiano, destravou a arma e disparou dezoito tiros consecutivos na junção de duas paredes com o teto. Ao deflagrar o décimo oitavo tiro, Chalev Dhror recarregou a sua Pistola Taurus PT838 - .380 ACP com outro pente já carregado e deflagrou mais dezoito tiros.

Quando descarregou o segundo pente, Chalev já estava com o corpo sob controle. Recarregou a sua Pistola Taurus PT838 - .380 ACP com um terceiro pente e colocou-a no coldre. Olhou para os dois funcionários calmamente e apontou para eles olharem para onde ele atirou.

Virgulino estava perplexo e Severino estarrecido, mas quando olharam para o local e se olharam, estavam apavorados, havia apenas um buraco na parede com o teto! Como pode? Uma pessoa dar dezoito tiros com a mão esquerda, dezoito tiros com a mão direita e acertar todos no mesmo lugar?

-- Vou perguntar só uma vez para vocês dois! Certo? Para quem vocês foram entregar as quitandas, qual é o endereço e quem furtou?

-- Doutor, não consigo falar o nome do proprietário da casa, é muito difícil, mas ele mora naquele bairro chic, perto do rio Marajoara. A casa fica na rua Grito de Alerta número trinta e oito. Virgulino falou com os olhos arregalados, língua seca e com dor de barriga.

-- Nós saimos da padaria mais ou menos as quatro horas, quando entramos no bairro Bom Retiro, a gente viu um fusca cor verde e amarelo, rodas com faixa branca, com um ursinho rosa amarrado no retrovisor interno. Nesse momento, eu e meu irmão demos uma gargalhada apontando para o ursinho e olhando para o motorista.

-- Haviam dois caras dentro do fusca.  Esses caras que malham demais, o senhor sabe né? Eles eram muito musculosos e tinham bigodes e cavanhaques. Pararam o carro e um deles, o mais forte, nos perguntou:
-- Estão rindo do que palhaços?

-- Agente ficou calado né! Aí os caras nos colocaram dentro do fusca e foram para uma casa no bairro Boa Esperança. Levaram nós para dentro da casa e nos obrigaram a comer todas as quitandas e os refrigerantes. Foi isso que aconteceu, concluiu Virgulino.

Chalev dhror estava vidrado nos dois irmãos. Durante o depoimento de Virgulino, emitindo um som pela garganta, igualzinho de um gato ronronando, salivava uma espuma branca em abundância pelos cantos da boca.

-- Severino e Virgulino, vamos agora na casa em que vocês foram obrigados a comer todos os sonhos e etc. Mas antes olhe esse nome, Anouck Batista Arkadiy, é o dono da encomenda?

-- Sim senhor, é esse nome esquisito, respondeu Virgulino.

Chalev e os irmãos saíram em disparada para a casa onde os brutamontes haviam torturados os padeiros.
Quando chegaram em frente a casa, Chalev viu o carro na garagem. Dispensou os dois e se preparou para entrar na casa.

Tentava se concentrar ao máximo.  A todo momento, lembrava que as quitandas foram encomendadas pelo chefe. Essa informação deixava Chalev a cada momento mais irracional.

Dhror entrou devagarinho na garagem e fechou o portão. Quando passou, se virou para continuar, viu um dos grandalhões perto do carro com uma espingarda.

Dezoito tiros foram deflagrados de uma Pistola Taurus PT838 - .380 ACP. Todos os tiros foram de encontro ao capô do fusca. Os tiros ficaram dentro de um círculo imaginário de vinte centímetros de raio.

Logo após uns vinte minutos, vários policiais militares e da polícia civil estavam dentro da casa. O murmurinho do lado de fora da casa era estrondoso. Os comentários eram variados: uns diziam que o policial não deu direito de defesa à vítima, outros diziam que o agente civil estava certo, mas a maioria era unanime! Pô! Atirar numa pessoa que estava segurando um cabo de vassoura! “É pra acabar com o pequi do Goiás”!

Chalev estava tão acabrunhado com si mesmo, que ficou sentado no sofá da casa por um longo tempo.

Rodeado por policiais e pelas pessoas, todos olhavam como se ele fosse um extraterrestre, uma aberração, afinal de contas o que ele fez era de uma irresponsabilidade bovina.

Alexey Shotonov Pereira, seu parceiro, conversou com o comandante da patrulha, explicou tudo a respeito do fusca roubado, dos caras que obrigaram os quitandeiros a comer toda a encomenda. Diante das explicações, Chalev foi liberado, o boletim de ocorrência seria terminado na delegacia.

Alexey Shotonov sentou ao lado de Chalev e orientou o a sair da casa com ele. Chalev estava prostrado de tanto pensar, seus pensamentos pesavam toneladas, não conseguia erguer a cabeça um centímetro do peito.

Shotonov ajudou Dhror entrar no carro.  Alexey havia colocado a sua viatura dentro da garagem da casa para evitar o pior quando Dhror saísse na rua e tivesse contato, mesmo visual, com os moradores, que estavam em polvorosa.  Levou-o pra casa.

Durante a jornada até a casa, Alexey deu algumas orientações básicas para o colega que tinha se comportado como um tresvariado:

-- Amigo, surtou de novo? Você precisa de uma namorada.  Essa sua obsessão, essa ideia fixa pelo trabalho, vai deixar você um psicopata! Você vai ter surtos psicóticos que no final, você será afastado do trabalho. Pense bem, em menos de dez dias você disparou tiros o suficiente para abater um exército!

Chalev saiu do carro como entrou. Deu apenas um aceno de agradecimento ao colega e entrou em casa pela porta dos fundos.

Dhror foi direto para o quarto, se despiu e vestiu seu pijama de listras verticais pretas e brancas. Vestiu uma meia branca limpa e deitou. Não passava das sete horas da noite.

Acordou num repelão as duas horas da tarde e saltou da cama decidido. Ligou para Aleksei Throbolov, seu amigo de confiança, assim que o amigo atendeu o telefone, Dhror falou:

-- Amigo, preciso sair para arejar os miolos e o juízo,  estou com saudades de você e das nossas amigas. Vamos encontrar hoje à noite no Confessionários Bar? Vou chamar Anastasya, você poderia chamar Elizaveta? O que acha Throbolov! Posso contar com você?

-- Claro amigo, combinadíssimo! Throbolov estava a par dos três últimos surtos do amigo. Então nos encontremos as oito e meia, certo?

As oito e meia da noite, todos estavam no Confessionários Bar. As dez e meia, enquanto Anastasya foi na toalete, Chalev Dhror confidenciou para Throbolov e Elizaveta:

-- Já decidi, vou chamar Anastasya para namorar! Com um baita de um sorriso no rosto, deixando todos os dentes expostos.

Elizaveta olhou cabreira para os dois.  Em seguida, Throbolov olhou para Elizaveta apreensivo. Por fim Throbolov falou com os lábios trêmulos e de boca seca:

-- Ela tem um problema!

-- É.  Ela tem um problema! Confirmou Elizaveta hesitante!