Acidentes Acontecem.
 
Naquela manhã Terebentino acordou bem mais cedo. Estava acostumado a acordar as sete, mas a partir dessa manhã passou a acordar às 5 horas. Acordou com uma decisão tomada, todavia, como executar?

Durante a madrugada chovera muito, quando o dia clareou o céu estava absurdamente limpo, não havia um pozinho de poeira ou poluição no firmamento. Dava a impressão de que foi lavado, polido e encerado. A transparência era cem por cento. Não haviam nuvens, uma abóbada azul que lembrava uma bola azul.

Sorrateiramente Terebentino perpassou por cima do corpo da esposa, não lhe tocou nem a acordou, tudo calculado, pensado e revisado a noite toda. Poderia sair da cama pela retaguarda, mas não: repetiu o movimento. Durante várias semanas praticou: precisava estar certo que tal movimento não a acordaria.

Logo que saiu da cama acendeu a lâmpada de propósito. A mulher num movimento brusco e expressando contrariedade acordou, levando uma mão aos olhos e com a outra puxando a coberta para proteger-se da luz que lhe agredira os olhos. Interpelou o marido, não com raiva, mas sentida e com indignação:

-- Por favor! Desligue a luz.

Com indiferença ele desligou. Ela não acordara quando ele a perpassou por cima, era tudo que precisava saber. Continuou praticando durante semanas, apenas não acendia a lâmpada.

A lembrança do quarto, desse primeiro dia de treinamento, nunca mais saiu de sua mente.

Paredes verdes bem clarinho, teto branco neve, a porta da suíte era Salmão, a porta do quarto era branco gelo, piso em granito andorinha cinza, janela branco gelo. No teto um lustre com várias lâmpadas coloridas.

Na cabeceira um interruptor para regular a intensidade das luzes, ao lado desse interruptor mais três botões para selecionar as lâmpadas; amarelo, azul e vermelho. Eram dezoito lâmpadas divididas em partes iguais, mas em posições alternadas, dessa forma, quando todas acessas as paredes eram alumiadas por cores secundárias.

Após algumas semanas, a primeira parte do plano estava completado. Sairia e chegaria enquanto a patroa estivesse dormindo.  Ele teria duas horas para executar o plano final.

A segunda etapa era ficar de guarda na porta da casa para ver quem passava, a que horas e o ritmo da pessoa para andar.

Terebentino anotou os detalhes de cada cidadão que passava na porta de sua casa entre as cinco e seis e meia da manhã.

No final do décimo quinto dia, ele percebeu que havia uma mulher nova e um homem de meia idade que tinham horários diferentes.  Descobriu que era devido a acordar atrasado.

Percebeu que sempre havia um sujeito na esquina as terças e quintas entre as cinco e quinze e cinco e trinta. Com as anotações na mesa e combinando várias possibilidades e variáveis, chegou a conclusão: teria 25 minutos para atravessar a rua e chegar ao objetivo.

A terceira fase do plano foi executar as duas primeiras fases: sair do quarto e da casa sem acordar a esposa, percorrer todo o trajeto, simular o plano e retornar para o quarto com a esposa ainda dormindo.

Foram quinze dias de treinamento, tudo correndo conforme o planejado. Agora passou a se ocupar com o plano “b”. Caso alguma coisa saísse errado, quais seriam as alternativas?  O homem de meia idade e a moça eram os que mais lhe deixavam encafifado. A única saída que encontrou foi usar roupas pretas, luvas pretas, passar uma maquiagem que deixasse seu rosto escuro. A maquiagem teria que ser de fácil remoção e usaria uma peruca que fosse o oposto do seu cabelo.

Estava tudo pronto para o grande dia. O plano seria colocado em prática na quarta-feira. Já tinha a roupa preta, a maquiagem, a peruca, tudo conferido, tudo em mãos.

Segunda feira à noite na hora do jantar, Oscarina informou seu marido que a sua irmã Marihalva chegaria na terça à tarde e passaria uma semana com eles. Na outra segunda iria embora.

Terebentino é um homem calmo, muito tranquilo, um sujeito de um metro e noventa e cinco, cabelos encaracolados, pele clara, olhos castanhos esverdeados, boca pequena, de tão pequena, o pessoal lhe chama de boca-miúda. Nariz esborrachado, as ventas do nariz eram bem largas.

Com suas pernas longas e finas, braços fortes, contorceu o corpo todo quando Oscarina lhe deu a notícia com um sorriso de menina. Se esticou tanto que as juntas dos joelhos estalaram.  Uma câimbra repuxava o bíceps esquerdo e direito. Lentamente após destravar a musculatura do corpo, virou para a esposa e lhe perguntou:

 -- Amor! Por que você não me avisou antes?

-- Uhai Tino, esqueci! Você também esquece de vez em quanto de me dizer coisas que deveriam ser ditas antes né, qual o problema?

O marido de Oscarina tinha só um pequeno defeito, defeitinho: era ansioso demais. Decidiu cumprir a risca o plano, mesmo correndo sérios riscos na execução do plano.

Logo após o jantar ele foi direto ao banheiro, tomou banho, escovou os dentes e foi direto para a cama. Deitado de barriga para cima e abraçado a um travesseiro, ficou remoendo as ideias. As onze horas engatou um sono legal. Já tinha a solução para driblar a âncora da cunhada.

Terça feira à tarde a cunhada chegou. Oscarina de tão feliz ligou para o marido e disse que a irmã havia chegado e estava tudo bem com ela, apenas muito cansada, afinal, viajou trinta e seis horas de ónibus, aja corpo para aquentar um rojão desse!

O marido atrasou a chegada em casa só um pouco, de propósito, afinal, precisava manter a irmã da esposa o mais tempo possível acordada. Chegou as nove e meia. Já na entrada da casa, começou a falar mal do chefe do setor que lhe obrigou a fazer um serviço extra, pois um colega de trabalho havia faltado.

A esposa relevou devido a felicidade da irmã ter chegado, mas Marihalva deu um sorrisinho pelo canto da boca. Bateu a pontinha do pé direito como se estivesse seguindo o ritmo de uma música, abriu os braços e abraçou o cunhado.

Terebentino tomou um banho rapidão. Colocou uma bermuda, camiseta cavada e chinelo Rider, foi até a cozinha e juntou-se a elas. Elas estavam tomando um vinho para comemorar. Ele resolveu acompanha-las, geralmente tomava cachaça.

Na primeira oportunidade que teve, quando Oscarina e a irmã se levantaram para tirar a focaccia com alecrim e sal grosso do forno, Terebentino jogou um comprimidinho dentro da taça de vinho de Marihalva. Pronto! Noventa por cento do plano já estava em andamento, os outros dez por cento seria completado na saída da casa.

Uma hora da madrugada, todos foram dormir e dormiram rapidinho. Dez para cinco da manhã Terebentino começou a levar o plano ao objetivo final.

Perpassou pela esposa dormindo, se vestiu, passou para o corredor, trancou a porta do quarto da cunhada com chave, passou pela porta da sala e ganhou a rua. Pronto, agora só preciso caminhar cinco minutos e...

Um grande grito cortou a rua. Gritos de socorro, gritos de uma mulher, de repente são duas vozes de mulheres gritando com todas as forças que os pulmões lhes ofereciam.

   Terebentino identificou na hora: o primeiro grito foi da cunhada, o outro da esposa. Saiu correndo o mais rápido possível para casa, entrementes, durante a corrida pegou a maquiagem e esfregou no rosto, colocou a luva e improvisou: no lugar da peruca colocou uma balaclava, era parte do plano "c".

Entrou na casa e foi até o corredor. As luzes estavam apagadas, mas assustou ao perceber que a cunhada conseguira abrir a porta do quarto. Esposa e irmã, estavam no corredor. Quando viram o vulto de uma pessoa, partiram para cima, pensavam que poderia ser um malvado.

As duas pularam em cima dele. Terebentino se defendia como podia e tentava não ser identificado. Com muito custo, se livrou delas: num repelão, deu uma cotovelada no estômago de uma, um pontapé na perna da outra e saiu correndo para a rua.

Ao ganhar a rua, não teve dúvidas: correu para a casa do seu melhor amigo, Pelota! Um amigo até debaixo d’água. Correu dois quarteirões sentido sul, virou sentido leste, correu mais três quadras e chegou em frente à casa do amigão. Tocou a campainha uma, duas, três, só na quarta vez o amigo apareceu.

Pelota, mesmo meio sonolento, reconheceu o amigo e abriu a porta de imediato.

-- Venha para dentro!   Me diga, o que traz você aqui em casa antes das seis da manhã?

Terebentino estava aos frangalhos, sua balaclava toda rasgada, assim como sua camiseta preta. A parte de traz estava toda rasgada, a maquiagem toda borrada, sentia uma dor latejante nas costas.

-- Pelota, por favor, olhe as minhas costas, está doendo demais!  Tirou os trapos da camiseta, sentou num tamborete e se curvou para o amigo lhe socorrer.

Pelota ficou estupefato com o que viu: as costas do amigo estavam toda riscada, vários riscos fundos e longos.

-- Amigo! Quem fez isso em você? Você tomou uma surra de arame farpado? Você está todo retalhado, nem Jesus Cristo foi tão açoitado antes da crucificação como você!

Terebentino lembrou de tudo, mas não falou nada para o amigo. Uma delas lhe unhava dos ombros para a cintura e a outra lhe unhava da cintura para os ombros.

-- Pelota, só me ajuda, por favor!

Pelota é um superamigo, ajuda em tudo e nunca bisbilhota a vida de ninguém. Jamais comentaria o acontecido com ninguém e jamais tocaria no assunto se o amigo não tocasse.

Foi até o banheiro e pegou seu estojo de primeiros socorros. Pelota é um amigão, mas tem suas sacanagens, pegou o álcool e embebeu um chumaço de algodão, disse ao amigo que iria limpar as costas e depois passar um remédio.

Quando pelota levou o algodão embebido em álcool nas costas do colega, um urro foi abafado, em seguida um uivo. Pelota levou uma mão à boca, tampando-a com três dedos: polegar e indicador se encontraram formando um círculo. Pelota se divertia esfolando o amigo.

-- Terebentino, vou passar o remédio, aguenta aí tá!  Vai ser rapidin. Pegou o merthiolate, daqueles antigos que ardiam para chuchu e estava proibido a venda já a uns dez anos.

Pegou um tufo de algodão, encheu de merthiolate e deslizou o chumaço pelas costas do amigo.      Terebentino conseguiu segurar o berro, mas as comportas foram rompidas e as lágrimas desceram em abundância.

Logo que o curativo foi feito,     Terebentino pediu o telefone fixo emprestado. Pelota tirou o telefone sem fio da base e entregou ao amigo:

-- Alô! Oscarina, amor! Desculpa, mas posso lhe explicar porque tive que sair de madrugada sem te avisar. Logo que deitamos o Pelota me ligou, estava passando muito mal e iria ser levado para o hospital. Ele me pediu para acompanhá-lo. Ele não tem nenhum parente aqui né, você sabe! E nós somos muito amigos, ok? Já voltamos do hospital. Estou na casa dele, logo que puder eu volto, tá! Um beijo.

Terebentino se virou para o amigo e implorou para ele o ajudar. Como fazer Oscarina não perceber e muito menos ver todos aqueles aranhões nas costas?

-- Oh amigo! Só tem um jeito: você vai falar para a dona onça que está com uma infecção urinária, das brabas, entende!      Vamos fazer o seguinte: vamos lá no postinho de saúde do bairro dos Enfartados.  Conheço um enfermeiro lá que prescreve receita com o carimbo do médico. Aí você mostra para tua patroa e controla ela longe dessa tragédia que está aí atrás das suas costas.

Os dois amigos se despediram e o amigo esfolado seguiu para casa. Ao entrar em casa, foi direto para a cozinha e sentou bem no canto, ninguém passaria pelas costas dele. Esposa e cunhada vieram ao encontro dele esbaforidas e as pressas.

A esposa contou tudo que aconteceu a respeito do invasor, com todos os detalhes, como ela unhara as costas do sem vergonha dos ombros até a cintura e sua irmã da cintura até os ombros. As bifas que deram na cara do vagabundo que tinha uma coisa parecida com uma touca, mas cobria o rosto também. Disseram que  infelizmente o patife escapou dando um pontapé na irmã e uma cotovelada na esposa.

Marihalva não falava nada, só olhava o cunhado de soslaio, tamborilando os quatro dedos da mão na mesa. Estudava o marido da irmã e às vezes contorcia a boca um pouquinho, bem pouquinho, e levantava o canto da boca do lado direito, pensando possibilidades que comprometeria o cunhado.

Chegou à conclusão que havia algo de errado na história do amigo dele, mas que em questões conjugais o melhor é manter a maior distância possível. Afinal! Aquilo era problema do casal.

Ouviu tudo se fazendo de assustado e ao mesmo tempo simulando estar se sentido culpado por não estar em casa para proteger a amada e a cunhada.

-- Amor, hoje preciso ir ao postinho de saúde, estou com muita dor quando vou fazer xixi. Então, como o atendimento demora muito, já estou indo para lá, assim que puder eu volto pra casa.

Terebentino foi direto no enfermeiro amigo do Pelota, pegou a receita, agradeceu imensamente o favor e na saída disse: fico lhe devendo uma, qualquer coisa me procure.  Inté e um abraço.

   Passou na farmácia, comprou várias caixas de remédio para infecção urinária, passeou pela cidade e tomou um café reforçado depois das dez horas da manhã.

Caminhou mais um pouco pelo bairro dos aflitos, dos enfartados para depois seguir para casa. Chegou as duas horas da tarde.

   Logo que entrou foi direto para o quarto, chamou sua amada, foi falando e trancando a porta:

-- Amor! Você não vai acreditar, estou com uma inflamação adiantadíssima na bexiga. Tenho que tomar um balaio de caixas de remédio para melhorar, mas o pior não é isso: temos que ficar sem relação no mínimo por dois meses!

     Oscarina olhou para o chão, levou o pé direito para frente um pouco e recolheu para traz duas vezes.  Em seguida, levou o pé esquerdo bem mais a frente e retornou para traz uma vez só fazendo um meio círculo, cruzou os braços, descansou as costas na parede.

Passou a língua bem devagar nos lábios, primeiro no superior, descansando a língua por algum tempo no canto da boca, para logo em seguida, umedecer o lábio de baixo. Cerrou os olhos e mirou-os nos olhos do marido e disse:

-- Olha aqui meu bem! Essa história de Pelota, hospital, sair no meio da madruga sem avisar e agora com infecção urinária? Olha aqui! Me explica direitinho, ou você acha que eu sou ingênua, tonta ou o quê?

-- Amor, eu juro que é tudo verdade, meu telefone fica no modo mudo, eu programei para não te incomodar!  Se ele tocar de madrugada eu sinto a vibração porque ele fica bem próximo de mim aqui na escrivaninha. O Pelota falou rápido e eu corri lá. Eu já vinha sentido dor para urinar, aí como eu estava acompanhando o Pelota no hospital, eu aproveitei e troquei umas ideias com o médico plantonista que atendia o Pelota.

O médico me garantiu: é infecção, procure um médico. Então fui até o postinho de atendimento. Amorzinho é a pura verdade! Você sabe, eu não minto, jamais mentiria para você!

Terebentino apoiou as costas na cabeceira da cama, a dor era quase insuportável, mas aguentou bem para manter a mulher longe de achegar perto de suas costas.

Oscarina sabia que tinha alguma coisa a mais. O marido estava escondendo algo. Pensou olhando para Terebentino: se eu descobrir eu mato esse safado!  Pra ela, o marido estava envolvido com o Pelota. Esse aí não é coisa boa, eu odeio esse calhorda do Pelota!

As semanas passaram, Terebentino sempre de camisa com gola alta, dormia sempre com as costas para o colchão. Na primeira semana foi lancinante, dormia muito tarde devido a dor.  As dores foram superadas, as feridas cicatrizaram e no final do primeiro mês, quase tudo tinha voltado a rotina, menos as relações mais intimas, afinal, era prescrição médica. Sexo, nem pensar! A infecção era transmissível.

No final do segundo mês, esposo e esposa já viviam às mil maravilhas. O marido fazia todos os mimos da patroa, saia do trabalho e ia direto para casa. A amada já tinha esquecido as possibilidades de o marido ter feito algo de errado ou as escondidas.

Terebentino voltou a carga toda para a execução do plano. Agora menos ansioso, durante duas semanas voltou a fazer exatamente o que fazia antes: treinou, treinou, treinou, chegou a caminhar até o objetivo.

Levou exatamente cinco minutos a passos largos, parou em frente e memorizou os detalhes da entrada, zerou o cronômetro e retornou no mesmo ritmo, cinco minutos cravados. Tudo certo!

Nos três últimos dias antes de executar o plano, Terebentino se concentrou no vai e vem das pessoas, conferiu, reconferiu, estava tudo perfeito.

Domingo, véspera do grande dia, acordou exatamente as cinco da manhã, mas não passou por cima da esposa, saiu pela traseira da cama. Foi até o banheiro, escovou os dentes, mirou os olhos no espelho:

por um momento olhou além da imagem que refletia no espelho, pelas janelas da alma, contemplou algo que só vemos em momentos que nós nos entregamos verdadeiramente para nós mesmos, quando revelamos nossos mais íntimos desejos.

Terebentino num repelão, pegou toalha, sabonete, bucha e shampoo. Entrou no box para tomar banho num prazer contagiante. Abriu a torneira do chuveiro, uma torrente de água gelada escorreu pelo corpo. Num lapso de tempo, Terebentino bebeu folego como uma criança, a água estava gelada, estupidamente gelada. Ensaboou todo o corpo, levou o sabonete à cabeça, deslizando as mãos em movimentos circulares.

Com o corpo coberto de espuma, Terebentino resolveu virar a chave do chuveiro para inverno, já não suportava aquele frio, chegou até a falar em voz alta, pra que sofrer tanto se tenho água quente ao alcance das mãos! Levou uma mão até o cano do chuveiro, a outra até a chave. Ao olhar para cima, a espuma que estava no cabelo escorreu pela testa, superou a sobrancelha, deslizou pelos cílios e entrou nos olhos.

Num movimento exacerbado, tirou uma mão do chuveiro, ao tirar a outra mão do cano do chuveiro, roçou um dedo num fio desencapado. Tal foi o susto que Terebentino se contorceu com tal violência que escorregou na espuma que o cercava no chão do box. O tombo foi inevitável: uma queda direta com o corpo oblíquo.  Esborrachou no chão!

-- Ai, ai ai ai, socorro! Oscarina! Pelo-amor-de-Deus! Me ajude! Oh Oscarina! Oh Oscarina? Corre aqui, tenha dó de mim. Oh meu Deus amado, por que isto veio a acontecer comigo? Justamente hoje?

Deitado numa maca, desolado, acabrunhado, ouviu do médico o diagnóstico: estava com o antebraço e mão direita quebrada, apesar da fratura, a recuperação seria rápida. Exercícios específicos de fisioterapia, em pouco tempo tudo voltaria como dantes.

Terebentino passou dois dias sem sair do quarto. Não falava, não reclamava, não manifestava a menor raiva ou indignação. Apoiava a cabeça em dois travesseiros e olhava para a televisão, mas a mente estava em entender como tudo tinha acontecido deste o primeiro acidente até o segundo no banheiro.

Sempre via o lado bom nos incidentes.     Acreditava que os ‘ditos fatos ruins’ é que deveriam ser vistos como algo de bom, assim a vida se tornava melhor a cada fato desagradável que acontecesse, pois isto teria algo de bom e um novo aprendizado.

Terebentino só ficou preocupado por ter quebrado a mão direita, pois ele dependia cem por cento da mão. O plano exigia uma mão tão boa quanto a de um médico cirurgião: até mais sensível e firme do que a mão de um médico neurocirurgião!

O tempo passou, passou, recuperou os movimentos delicados da mão direita, fortaleceu bem os braços, voltou a ter a auto estima nas nuvens, estava pronto. Olhou para esposa deitada na cama, que estava meio sonolenta, se mexia muito. Deveria estar sonhando meio acordada, pensou Terebentino.

Oscarina passou a prestar mais atenção no marido, passou a achar que o marido precisava de mais atenção, estava mais solidária com o companheiro.  

Devido a essas ideias, ela passou a dormir menos, o sono mais leve, preocupava por onde ele passava ou poderia passar. Recomendou ao marido tomar banho com uma chinela de borracha e ligar o chuveiro antes de ligar o registro da água. O marido atendeu prontamente e dava beijinhos na testa dela com frequência.

Quarta feira quando Terebentino deitou, deitou de barriga para baixo, abraçou o travesseiro com todas as forças, afundou o rosto no travesseiro, esticou as penas e falou consigo: meu plano começa agora! Virou o rosto, olhou para a direita, a esposa lhe espreitava. Piscou quatro vezes com os dois olhos ao mesmo tempo, virou se para a esquerda e dormiu.

Acordou exatamente as quatro e cinquenta da manhã, passou o braço direito por cima da esposa sem tocá-la. Fez a mesma coisa com a perna direita, ergueu o máximo o tronco e foi lentamente perpassando pela esposa. Oscarina abriu os olhos, numa fração de segundo e teve a sensação que tinha um morcego gigante a lhe possuir. Ao mesmo tempo em que meteu o pé no peito do suposto morcegão, soltou um grito apavorante:

-- O que que é isso? Jesus amado! Me livrai desse demônio! peloamordeuDeus!

Oscarina acertou o pé bem no peito do marido. Ele, coitado, não assustou ou sentiu o pontapé, mas se descontrolou com o estridente grito da esposa. Caiu da cama e foi com a cabeça direto para o chão. Um som oco reverberou pelo quarto.

O silêncio dominou o espaço todo por alguns minutos. Oscarina sussurrando baixinho, rezava e chorava. Tomou coragem, ao perceber que o esposo não estava na cama, levantou devagarinho, pé ante pé, foi até o interruptor e ligou a luz. Assim que o quarto estava todo alumiado, a esposa viu o marido desmaiado no chão.

Os médicos acalmaram a esposa, explicaram que em pouco tempo ele voltaria a acordar, ele tia sofrido uma concussão cerebral.

Terebentino passou cinco dias desacordado. Quando acordou, chamou a primeira pessoa que estava ao seu lado e perguntou:

-- Moça!  O que eu estou fazendo aqui?

A moça era a esposa. Com muita paciência Oscarina lhe explicou tudo que havia acontecido: tinha caído da cama e ficou desacordado por cinco dias. No segundo dia após ele acordar, o médico deu alta para ele e explicou que em breve a memória dele estaria de volta.

Passado um mês, Terebentino já lembrava de tudo: da esposa, do trabalho, dos amigos.  Oscarina chegou a pedir para Deus que Pelota não fosse lembrado, mas ele foi um dos primeiros a ser lembrado, se não foi a primeiro!

Oscarina passou a ter um abajur no quarto ligado, a escuridão não era total, mas não atrapalhava ela ou ele a dormir. No segundo mês a esposa percebeu, mas ficou quieta.  

O marido, todos os dias, as cinco da manhã exatamente, acordava, passava por cima dela sem lhe tocar, se vestia rapidamente e ia até o portão. Ele tentava destrambelhar o portão, mas aí ele olhava para a direita da rua, trancava o portão e voltava para a cama. Oscarina passou a desligar o abajur e não se preocupava mais com a atitude do marido.

Terebentino, todos os dias, as cinco da manhã ia até o portão. Ao chegar lá, se perguntava; por que estou aqui?  A partir da quinta vez, ele já não se perguntava nada, olhava para a direita, dava um leve sorriso e voltava para a cama, afinal! Ele tinha mais uma hora e meia para dormir antes de seguir para o trabalho.

Terebentino fez o caminho da cama as cinco da manhã, até o portão durante todos os dias de sua vida.  Acordava ao pé do portão olhando para a direita da rua.