Cenas do Armagedom desfilaram em sua mente.
‘Viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia: ‘É chegada a hora!’ Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras’.
O primeiro anjo apocalíptico  tocou a trombeta. Saraivada de fogo percorreu o interior da nave.  O anjo abriu o sétimo selo e em vez de silêncio, ouviam-se gritos, alaridos e pedido de socorro. Muitos fizeram o que não podia ser feito: levantaram-se, tentaram arrumar a bagagem que caia sobre suas cabeças e foram atirados contra a fuselagem. Fernão viu-se sentado a uma mesa no panteão da memória com o livro da vida aberto no colo. Diante de seus olhos páginas amarrotadas e o rascunho de sua vida que esperava ser reescrito.  Pesava-lhe a dor de ver tantas páginas em branco... Quantas vezes virara o rosto para esposa e maculara pureza dela com infâmias e desdéns!... Quanta vezes ele teve a oportunidade de refazer a própria história... Desejou abraçar Vanini e sentiu-se na pele de Melenau viajando no mesmo barco com Páris.
Casados que há tempos não conversavam, mantinham agora as cabeças coladas uma à outra e balbuciavam alguma coisa ininteligível. Irmã Paola tentou debulhar um terço, em voz alta, e não conseguiu. No meio do corredor, um homem ergueu a voz: ‘Sou padre Davi!’ — E traçou no ar o sinal da cruz — ‘Pelo poder que me concede a Santa Madre Igreja, eu perdoou todos os vossos pecados inconfessos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo’. Alguns responderam: “Amém!” Muitos  balbuciaram palavras quase inaudíveis, outros, apenas moviam os lábios.  Fernão entrou na cena de seu batismo, viu os pais e padrinhos na Igreja da Consolação. Viu a pia batismal com água e pessoas da comunidade que acendiam velas no Círio Pascal. Com um crucifixo no peito, e outro bem na mão, o sacerdote ungia-lhe a testa e o peito com o óleo dos catecúmenos. Viu ainda um animal asqueroso levantar-se do mar. A Fera tinha dez chifres, sete cabeças e muito poder sobre a Terra. Soprava na mente dos cristão bombas de pensamentos infladas de ganância, vaidade e orgulho.
Houve um clarão, seguido do ribombar de trovões. ‘Abriram-se livros, e ainda outro livro, que é o livro da vida. Miríades de anjos entoaram um coro diante do trono do Cordeiro. ‘Mostrou-lhe então o anjo um rio de água viva que brotava da pia batismal.
A mãe traçou uma cruz na testa do filho. Houve uma explosão que só o menino ouviu. E chorou. O animal desapareceu numa nuvem de fumaça negra. Fernão viu também Moisés no monte Nebo jogar seu manto para Josué: ‘O que está oculto pertence ao Senhor, nosso Deus; o que foi revelado é para nós e para nossos filhos. Nada temas’. Passou em seguida o manto para Josué e Josué passou o manto sobre a cabeça do menino. Veio uma nuvem luminosa e o envolveu. Extático, desprendeu-se do sobrenatural e lentamente, retornava ao mundo dos mortais. Não muito bem desenhadas, traçou uma cruz na testa, uma na boca e outra no peito.  Objetos, poltronas e bagagens voavam em todas as direções e se chocavam, ora contra a fuselagem, ora contra os passageiros e tripulantes. Gravemente ferido, o corpo do padre estava estendido, a fio comprido, no corredor da aeronave.
Chanana gritou. Pediu socorro.
—Tem algum médico a bordo? — perguntou um comissário de bordo.
 André conseguiu, com dificuldade, pegar sua maleta. Em seguida, doutora,  Lopes também apanhou a dela. Algum metal pesado os atingiu e suas maletas foram sugadas pela janela quebrada. Também foi foram sugados muitos passageiros e lançados para fora da nave. Vanini evitou o choque com um notebook que passava voando. Abaixou-se e sentou numa poltrona ao lado de uma velhinha morta. Arrependeu-se de ter avisado a Hemor que Fernão estava a bordo. ‘E... se ao invés de desviar dos nimbos, o piloto resolvesse entrar em rota de colisão com eles? Fernão é ‘esquizo’, Hemor também. E se Fernão invadir a cabine de comando? E se os dois entrarem em luta corporal em pleno voo?...’
 Levantou-se segurando em uma poltrona sobre a qual um  corpo curvado deixava livre o encosto. Morto ou vivo... Desmaiado, talvez. Não havia como socorrer a ninguém. Cada um tentava salvar a própria pele como podia. ‘Será que Deus escolheu para morrer todas aquelas pessoas no mesmo dia?’ Será que desde o primeiro momento, até o último instante, está escrito no livro da vida?
Robert acompanhava a leitura, por meio de uma cópia do rascunho que lhe fora dado a avaliar. E se aquela fosse hora de fazer humor, ele teria dito: “Era o dia do piloto. Os outros, eram passageiros que estavam no lugar errado, na hora errada.”
— Brevê vencido, Ravenala? Acaso brevê vencido é causa mortis?.... Explique melhor!... Ninguém confere se o brevê está vencido, embarca-se numa viagem para a vida ou para a morte. Todos confiam no homem, mas às vezes as pessoas não têm essa mesma confiança em Deus. Haverá sobreviventes? Como vais explicar a sobrevivência de um passageiro, em acidente aéreo desta gravidade?
— Bruxo! Você é um bruxo, Robert. Essa parte não contei ainda.  Os poetas são adivinhos, às vezes profetas, porque sondam muitos corações.
— Onde apanhaste esta frase, Ravenala?
— No ‘lixo de Jê’ como dizia minha mãe.
— Por certo, tua mãe não conheceu o que há de mais lindo na alma humana —  a poesia — que como as lágrimas, é suor da alma.
***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...