Giga

Acho que ela sempre existiu ali, nunca, em toda minha infância, passei por aquele endereço, sem que ela estivesse plantada, observando a rua, os transeuntes; fez-se confidente, informante, e amiga de todos que estavam acostumados com ela na varanda.

Giga, desde sempre Giga, eu acredito que ela tenha nascido, como dela me recordo, e foi plantada, como um obelisco, ou como uma estátua, que virava páginas, lia emoções, e contava o mundo. Mundo que ela amava, até aqueles que não se sabiam amados, ela amava.

Giga tinha medo da escuridão, e quando a noite vinha, ela postava-se dentro de casa, de onde continuava a observar todos que passavam pela rua, sem que fosse vista por ninguém; quase que um voyeurismo, mas puro, sem conotações sexuais, ou mórbidas, só um jeito terno de ler o interior de quem passava... um caleidoscópio, com as mais intrincadas vivências.

Naquela noite Giga chorou, de seu inocente espionário, viu, sem ser vista, uma jovem, que por tantas vezes, com carinho, seguiu com o olhar, ser abordada, e violentamente molestada, por um jovem, que também, por tantas vezes seguiu com o olhar. Ela conhecia a ambos, e a ambos amava, ternamente, com o mesmo carinho de uma mãe adotiva, e sofreu duas vezes: pela menina, por ter sido molestada, e pelo garoto, do qual nunca poderia esperar por aquela agressividade.

Uma cidade pequena, onde, por vezes, o silêncio, e o sigilo mantêm a paz, o convívio e, sobretudo, o conceito; e tudo se fez sigiloso, segredo guardado pela menina, pelos seus pais, pelo garoto, causador de tudo, e pela Giga, que a tudo assistiu, sem ser notada.

Um velho provérbio chinês diz que carregamos, em nosso interior, dois lobos em luta, um do bem, outro do mal, e sai vitorioso nesse conflito, aquele a que alimentamos. Dentro daquela sentinela, que fez de sua varanda guarita, para cuidar do mundo, dois sentimentos antagônicos se botaram a lutar... a vontade de amar o mundo, contra a vontade de vingar o mundo. Desolada, Giga se descobriu odiando.

Deu sequência à sua vida, aos seus hábitos, diurnos e noturnos, porém agora com um objetivo específico, esperar a oportunidade; e foi quando o agressor passou, de madrugada, por aquele posto de anônima observação, teve seu corpo varado por uma afiada e pontiaguda lâmina

Mistério: a vítima nunca teve inimigos, Giga nunc foi aventada como uma suspeita, até foi chamada para testemunhar.

De onde Giga “espionava” o mundo, foi coberto por uma cortina; chegou ao fim seu amor de coruja, chegaram ao fim...suas noites de vigílía.

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 11/01/2017
Reeditado em 11/01/2017
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