Meristo e um equívoco
A lua brilhava resplandecente -como era todos os dias – mas sombria, expondo em seu brilho maquiavélico corpo mulato, debilitado. Suor escorrendo pela face, depois pescoço, mais tarde chão, porém, suor tomado de mãos. Olhos semifechados e andar ora quase parando, ora parado. Mas face serena, sorriso de lado. E andava e acompanhava sendo acompanhado: visto e detido.
- Que temos aqui? Meristo, teu nome?- Guardou em silêncio...
Um quarto requintado, janelas espelhadas com vista deslumbrante ao jardim, tapete púrpura, parede branqueada com detalhes amarelados, mas enegrecida, sombria. Um pássaro da noite soa, olha-se para ele, arranca a mão do bolso, agarra a ave, degola-o e lança ao chão. Olhares...silêncio...
-Quem és? -Mudo ficou...
Olhos fixados no cara maltrapilho, ajoelhado, de 33 anos. Olhar mais profundo...ver-se a conversar com uma mulher, sozinhos. Vermelho...cada vez mais vermelho. Olha para o braço, visualiza um canivete sobre a mesa, pensa: mão, canivete, peito, dor, adeus...Mas na ação, apenas mão, canivete, orelha, cor vermelha.
- Sabes que posso lhe tirar a vida, por teres feito o que não devias, ter encantado a quem não podias...
Quebrou o som não dito.
- Tu só podes fazer o que queres, se...
Voltou no tempo: passou pelos braços que lhe carregavam ao brilho da lua, pela reunião acabada por visita, pela noite solitária desfeita por companhias indecentes, por colegas falsos, por sorrisos, por conversas, por brincadeiras, por possível choro de bebê. Sorriu... Lembrou que o pássaro antes de estar no chão, havia vivido, voado, amado, correspondido e libertado. Lentamente foi erguendo sua cabeça fixando no olhar do outro.
- Mesmo que queira matar-me, não matas as sementes que plantei em terra boa.
- Já matei um pássaro com vista para o jardim. Sou ave que come sementes deixadas no chão...
Um túnel futurístico expande as janelas das memórias do povir: um sonho de mancebo, de asas voando; livre a correr pelos ventos mais solidários. Pensou no que poderia ser, no ser que seria para outro. Pensou...pensou...pensou...Poderia ser a última oportunidade para tal. Viu uma estrada, uma mulher de vestido negro, sozinha, todavia, não por muito tempo...águas saíram de seus olhos, abaixou a cabeça, ouviu um sussurro:
- Encantador tuas lágrimas- passou a mão sobre seu rosto, pegou um lenço do bolso, enxugou os gotejos e contradizendo sua ação pacífica, cerrou o punho e fez beijar a face com a mão rústica e nervosa. Ergueu-se uma cabeça, e como quem não tivesse acusação fez brilhar o seu olhar.
- Muito feliz é o meu chorar!
Uma mulher correndo, olhando para traz, como que desesperada. Pernas rápidas seguidas de mais pernas, porém, mais fortes, mais ásperas, mais cabeludas. Um crime terminal: outra cama, outro lençol – quem fora?- imagens construídas...
- Meristo...Teu nome é Meristo...- um olhar de vingança com sabores sarcásticos, dentro de um quarto cada vez mais frio, dentro de um quarto cada vez mais vermelhado. Dentro de um quarto...
E uma jovem mulher com olhar cabisbaixo, corpo trêmulo, perdida, perdendo seu segredo feminino aos olhos de vários. Desejo aberto, pensamentos opacos: extermínio de uma das partes. Um possuir constante, prisioneira, mas com problema: cônjuge! Ele veria, descobriria e libertaria...
-Matemo-los – uma conclusão coletiva.
Passos audíveis para fora do quarto...alguns minutos...pedras na mão...
- Veremos se és rocha, se és mais petrificado que as pedrinhas que possuo- Gritos. Corpo marcado..Quarto cada vez mais sombrio, cada vez mais vermelhado. Dentro do quarto...
Na coletividade obscena, alguns poucos rastros: duas pernas, duas mãos, um corpo, olhando para o episódio. Lembrou do sonho de ver pássaros voando livremente...correu, interrompeu. Ergueu o corpo feminino com vestes sujas de mãos grosseiras, mas sabia das consequências: um contra vários.
Nas quatro paredes branqueadas com detalhes amarelados, agora, contudo, também vermelhados, cada vez suspiros mais intensivos, curtos e ofegantes...
- Cortarei logo suas asas- o canivete outrora atingido pela orelha, vê-se novamente em mãos erradas, cada vez mais próxima do peitoral...
Outro vulto perante a coletividade, mas um par de olhos, vendo equivocado: uma mulher com roupas seminuas nos braços de um homem. Vermelho...cada vez mais vermelho...Um equívoco, um julgamento errado, uma condenação descabível... E mãos masculinas ao redor planejando a morte do mais novo par de olhos. No entanto, um grito ecoado com pedido:
- Tragam ao meu quarto, por favor, o homem da minha tristeza- e foram e levaram, e deixaram de lado o plano que sucumbia...
O canivete toca o peito. Um gosto de vingança pela boca...um ultrapassar a pele, um tocar o coração.Pulsar cada vez mais lento, mais frágil, paralisando...Um sorriso, uma tristeza...sangue...coração parado...corpo estirado no chão. Uma porta se abre rapidamente, vê-se cabelos longos e uma frase em seus lábios trementes:
- Morreu por nós!