Dona Milica

A tarde era amena. E o ano, difícil de precisar agora, mas "havera" de ser 1956 ou 1957 quando, sentados no piso, ainda de tijolinhos de nossa sala, no povoado de São Gonçalo do Brumado, fomos surpreendidos por aquela voz tonitruante que vinha da janela:

- Esmola pra Santa Luzia!!!

Mais aterradora, ainda, foi a imagem, que parecia querer nos devorar:

E tudo não passava da pia Dona Milica, de Pitangui, na inda mais piedosa tarefa de arrecadar fundos para a padroeira que nada via, mas tudo sentia.

Quando nos recompusemos, foi para dizer que nem papai nem mamãe achavam-se em casa e que não tínhamos como satisfazer aquele clamoroso candor.

Quando voltamos a ver Dona Milica, o ano já era 1958, em plena igreja matriz de Pitangui, a sede municipal, ali então compungida a rezar e, naturalmente sem meios de se lembrar do susto que nos pregara. E as vistas a partir dali amiudaram. Fossem na própria matriz ou pelas ruas e vielas da cidade.

E já não era mais Milica para nós. Acompanhando o sentimento pouco pio dos concidadãos menos sensíveis à sua condição, Milica virara Milicão. Razões para a mudança, no entanto, abundavam:

de feminino em Dona Milica só o nome de batismo, Emília, e o traje. Todo o resto do conjunto - até onde podíamos especular - era o puro varão: traços, pêlos, caminhar, a calva pronunciada, o rosto quadrado, diariamente escanhoado, dionisíaco quadro.

Milica, então aparentemente sessentona, vivia da caridade alheia e da prestação de serviços domésticos que estivessem ao seu alcance. Filiação, irmandade, onde e se com alguém morava, nada disso pudemos identificar nos anos que se seguiram. Sua família era a igreja.

A curiosidade sobre aquela singular figura foi parcialmente satisfeita quando, no ginásio de buliçosa juventude, o Waldemar, médico de formação e professor, de vocação, inquirido por algum colega de turma - seria o Matias Gato? - explicou-nos que se tratava de um caso de criança, obviamente do sexo masculino, que nascera sem a exposição da genitália e que, na dúvida, ou ignorância, fora criada como menina. Obra da Criação.

Waldemar, homem iluminado e compassivo teria sugerido ao vigário de então a autorização para encaminhar o desafortunado indivíduo a exames e possível tratamento na capital do estado, Belo Horizonte. Permissão negada. Sob que arrazoado, nunca me foi possível conhecer. E tampouco mais especulei.

Dona Milica é referência, simpática de hábito, em várias obras de cronistas e memorialistas da cidade que a conheceram. Santa Luzia há de tê-la acolhido.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 21/09/2016
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