924-A BRUXA DE MONTE VERMELHO

A primeira vez que ouvi falar de Zefa das Ervas foi quando o guarda noturno Tião Mocalé me contou a história da mula sem cabeça. Ainda me lembro bem de suas palavras:

—Ah, a Zefa das Ervas, ela é sabe de tudo de prantas do mato e coisas de mistério...

E me explicou direitinho como era a Mula Sem cabeça. Naquela ocasião, as aparições das do estranho ser eram o assunto do dia e principalmente das noites frias e enevoadas da pequena cidade de Monte Vermelho.

O guarda noturno estava com razão em não contar para ninguém o que via nas noites de sextas-feiras, pois achava que iria cair na gozação do povo. Por isso só a mim, num ato de muita confiança é que contou a história. (1)

Mas tal não foi o comportamento de Zefa das Ervas.

Antes tenho de falar sobre a estranha mulher: era uma velha dessas que se parece com as bruxas de histórias infantis. Magérrima, andava encorcovada, um nariz grande, adunco, verrugas na face. Cabelo fino, branco e ralo. Usava um vestido que lhe ia até os pés, mangas compridas e chinelas velhas nos pés. No pescoço, uma dúzia de cordões, terços, fitas de cores com estranhos amuletos.

Apesar da estranha figura, era até benquista por muitas pessoas, a quem fornecia ervas que ela colhia e que curavam as doenças, conforme ela indicava:

- Chá de picão pro fígado - lá vinha o feixinho de picão que ela dava a quem se queixava.

- Saião é bão pra machucado. Maceta as foinhas e põe na ferida. – E já trazia um punhado de folhas carnudas e tenras.

Nada cobrava, mas vivia do que lhe era dado, às vezes dinheiro, às vezes roupa, gêneros ou ate mesmo um prato de comida, se calhasse a sua visita ser na hora da refeição.

Quando as aparições da mula na frente do orfanato, onde árvores frondosas se agrupavam como num pequeno bosque, ela falou para quem quisesse ouvir a história de como surgia à mula:

—Ela aparece em casa onde ajunta mais de três mulher com nome de Maria. Se num lugar tiver dormindo três Marias, uma tem de dormir amarrada, senão elas ajunta tudo em uma só e vira a Mula Sem cabeça.

Em cidade pequena — e Monte Vermelho era pouco mais que uma vila — o que se diz num canto se ouve no outro. Ora, no orfanato havia duas meninas, a Maria Conceição e a Jerusa Maria, meninas abrigadas pela instituição. E uma das irmãs era a Irmã Maria. Houve quem ajuntou dois mais um e inventou que a bruxa vivia no orfanato por causa das três Marias.

O boato ganhou corpo e chegou aos ouvidos da Madre Superiora do orfanato. Indignada, foi se queixar ao pároco, o exaltado Padre Tobias.

Na missa de domingo, Padre Tobias desancou quem estava espalhando os boatos, ameaçando de excomunhão não só os boateiros como a BRUXA (palavra dele) que vendia ervas na cidade. E terminou o sermão com as clássicas palavras:

— VADE RETRO SATANÁS VENDEDOR DE ERVAS DIABÓLICAS!

Zefa das Ervas nem tomou conhecimento das palavras do padre. Não ia à igreja católica nem à batista, aliás, parecia que não acreditava em nada de igrejas. Mas a população logo se ouriçou e, como sempre acontece nessas situações extremas, logo duas facções se formaram: a dos que acreditavam no poder das ervas fornecidas por Zefa, e a dos tomaram as palavras do Padre Tobias ao pé da letra.

Boatos e zuns-zuns em cidade pequena correm como fogo em mata rala de cerrado. Zefa das Ervas foi logo transformada pelos partidários do padre em bruxa, enquanto que as pessoas que já haviam atestado o beneficio das ervas, eram pró-Zefa.

Até o Doutor Marcos foi envolvido pela trama e teve que condenar a prática da velha, pois não “havia prova cientifica dos conselhos de Zefa e das aplicações de ervas do mato como remédios”.

Ela continuou sua vida, pois não eram poucos os que nela acreditavam. Colhendo ervas, secando-as, amarrando em feixes e distribuindo a quem aceitasse.

Mas um boato, cercado de mistério ou magia, encorpa-se e acaba virando as cabeças das pessoas.

Ainda mais uma vez é o guarda Tião Mocalé que me narrou, falando baixo e meio que escondendo o rosto, não fosse alguém desconfiar de que ele sabia muito mais do que pensavam.

— Pois é, dotô, naquela noite vi um muvimento engraçado na praça. Tarde da noite, já de madrugada, tarveis umas três da manhã, vi quando o fio do comendador Viridiano, um moço que ajuda o padre a rezar missa, encostar o carro do pai, um fordinho vinte e nove, e nele entraram outros treis. Foram prás banda do Rio Turvo, que é onde fica a grota seca onde mora Sinhá Zefa das Erva. Num é muito longe não, tarveis uns treis quilometro da vila. Fiquei fazendo a ronda quando vi o crarão vermeio de fogo, justo na direção de onde os moço tinha ido no fordinho. Daí bem uma meia hora, o automove chegou, trazendo os quatro moço. Fiquei de oio atrás daquela figueira ali, de tronco grosso, e eles num me viram. Num sei purque, achei que ele tinha aprontado arguma coisa. O jeito deles, sei lá. O crarão já tinha acabado, mas a fumaça ainda levantava bem arto na noite crara. No outro dia, bem de manhã, chegou o Neca Barbosa, na sua charretinha ligera, anunciando:

— Gente, aconteceu uma desgraça! A palhoça da Nhá Zefa das Ervas pegou fogo de madrugada.

O guarda deu uma tragada no cigarro de palha e continuou:

— Corri com o pessoar prá vê se ainda podia sarvá arguma coisa. Qual o quê! Onde era a paioça da veia só tinha um monte de carvão e cinza. No meio a gente podia ver o corpo preto da Zefa. Queimadim, queimadim.

[1] – ver conto 715

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 3 de outubro de 2015.

Conto # 924 da Série Milistórias.

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/08/2016
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