Acomode-se

A névoa cobria os rastros de emoção e o pessoalismo da fala garantia a entrega de toda dor acobertada por um riso alto e forte, ela era disfarce, camuflagem que escondia a tríade do sentimento de mão tripla ou dupla, ela ainda não sabia. Os sapatos de segunda-feira ainda continuam na mesma posição, rejeitados e com uma sujeira grossa e esquecida na sola, ela sabia, só fingia não notar.

O fingimento de tal poeta já era mais que perspicaz, uma mimese de sentimento atrelada a um falso moralismo que de culhões se contorce na tentativa de julgar. Agora, havia meias que com odor desagradável e em conjunto com um teor elevado do álcool da garrafa que fora despejada ao lado da lixeira embriagavam o ar. Ela era vítima dessa sucessão de alucinações.

O rádio se encontrava ligado na mesma estação por volta de quatro dias, as músicas eram reproduzidas quase na mesma ordem do dia anterior, o paradigma da sensação do poder midiático, a consequente fala rápida e enérgica do locutor ecoava na sala que vibrava com as ondas sonoras, era possível perceber as representações gráficas do som, talvez, mas só talvez, pelo fato da garrafa do parágrafo acima ter sido extinguida em um embalo desenfreado.

Ela por sua vez, já cheirava carne podre e de aparência quase igualada ao odor, se encontrava desfalecida naquele sofá extremamente grande a tempo necessário para que a ideia de eutanásia passasse pela sua cabeça. O brilho natural dos cabelos castanhos já não estava mais ali, a boca asperenta e de aspecto esbranquiçado de sede era muito mais visível, as olheiras tinham vida própria de tamanha magnitude, porém tornavam-se minimizadas pelas pupilas dilatadas e fixadas no final da estante daquela mesma sala.

A estante era extensa e se agarrava de forma forte e concreta a parede que a sustentava, “medo de ceder”, pensava ela. Era contemplada por uma televisão de tamanho tão gigante ocupava pelo menos 60% de todo o espaço, sobrando lugar só para alguns livros bem distribuídos e alguns porta-retratos, que de tamanho diferenciado se caracterizavam pela importância, ou seja, quanto maior mais importante. O olhar da mulher ainda se fixava para o mesmo lugar, uma reta sem nenhum desvio possível, o local em que ela se encontrava no sofá havia sido escolhido milimetricamente.

A noite chegava e o cenário pouco transformava, já que a luz do dia não atravessava as grossas cortinas espalhadas por toda a casa, o que tornava mais difícil identificar a imagem representada no porta-retrato ao pé da estante. O fato é, que de tão turva a imagem, turvo se tornou os dias e as sensações, os olhos foram tomados por uma escuridão que refletia a alma. O buraco no sofá era só mais uma consequência desse acomodar-se do coração, por fim ela tremia e mais uma vez desfalecia.