O conto das áreas abissais
Era um menino comum, como vem há ser todos os meninos de sua idade. Danilo tinha 17 anos, de estatura mediana, magro, porém com um físico atlético, tinha cabelos castanhos meio encaracolados e olhos verdes. Estava finalizando seu segundo grau do colegial. Era um dos alunos mais brilhantes de onde estudava. Embora comum como todos os meninos contemporâneos à sua época, ele tinha um diferencial que o distinguia de todos. Tinha uma mente brilhante e profunda. Não que os outros não tivessem, mas ele era mais, ele era além de sua própria compreensão. Danilo tinha tantos amigos que achava que nenhum deles de fato era lhe irmão (amigos são irmãos de outro pai e outra mãe). Tinha um fascínio pelo que lhe forçava pensar, ele sonhava em ser um diplomata brasileiro erradicado num país de alto IDH. Se preparava para fazer sua faculdade de direito, não que ele quisesse advogar, mas se formaria apenas para poder exercer seu papel de diplomata com maior facilidade.
Ele não sabia se era feliz, tinha conflitos internos absurdos, ao mesmo tempo que dizia, com certeza, que sua relação interpessoal era perfeita e impenetrável, dizia também em dados momentos, que não se compreendia bem. Ele só queria ser feliz e pleno. Isso ele não conseguia.
Era moderno em sua estética pessoal mas era abusado e arrogante em sua forma de criar e pensar, amava animais, amava a vida de forma livre e imparável. Ele achava que não cabia na sociedade atual. Mas ele tinha uma coisa boa que a maioria das pessoas não tem e nunca terá: Ele não deixava chances para que sua cabeça desabrochasse em sua volta, ele protegia seu ser interno como uma leoa defende sua prole. Ele sabia que nunca iria poder se fazer entendido e por isso tinha medo e acabava fazendo graça como se fosse um palhaço para os outros rirem enquanto dentro dele se estava em erupção. Ele viverá toda a vida em áreas abissais.
Áreas abissais são as áreas mais profundas do oceano, tão profundas que a luz do sol nem sequer alcança, áreas negras, quase inóspitas se não fossem as vidas que habitam lá. Vidas estranhas, diferentes, esquisitas, seres parecidos com extra terrestres, seres monstruosos, seres que na verdade são tudo isso porque tiveram que se adaptar a tal condição morta e passaram por esse processo de mutação. Onde não há luz, há morte.
A cabeça de Danilo era assim, uma área abissal de um lindo oceano azul cor de anil. Seu corpo se comparava ao oceano belo e tão frequentado, um corpo bonito, desejado, cheio de vaidades, assim como o mar. E seu coração equiparada de forma totalmente simétrica as tais áreas abissais marinhas.
¬¬¬¬¬¬¬¬¬-Danilo, acordado a essa hora da manhã filho? Hoje é domingo, porque não aproveita para dormir um pouco mais?
Disse sua mãe afagando seus quase cachos alourados de cabelo.
-Tive um sonho estranho mãe, perdi o sono. Vou aproveitar para fazer algumas tarefas da escola acumuladas.
Respondeu ele com um olhar parado como se observasse o próprio sonho revisitado em plena realidade.
-Quer me contar que sonho foi esse que conseguiu te arrancar da cama às 5:30 da manhã?
Perguntou sua mãe com um ar preocupado. A mãe de Danilo sempre percebera que ele era viajante de si mesmo, mas nunca quisera invadir essa intimidade do filho, ela sabia que aquilo era importante pra ele enquanto pessoa. Ela sabia de tudo!
-Nada de mais mãe, na verdade eu nem me lembro exatamente o que foi, só sei que foi bom.
Ele se lembrava bem qual era o sonho, mas não queria prolongar aquela arguição desnecessária.
Danilo tomou o café da manhã como sempre fazia, comia como se fosse um ritual uma tigela de cereal, um copo de suco de uma fruta qualquer e um pedaço despretensioso de bolo. Comeu e foi pro quarto, tomou um banho morno, era inverno, estava uma manhã clara com um sol brilhante, porém fazia frio, afinal ele morava no Paraná na cidade de Cascavel onde o frio foge da permissão nacional. Olhou-se no espelho e paralisou. Começou a lembra do sonho...
Ele sonhara que teve uma conversa com o mais incomum de se mesmo. Com o seu próprio reflexo no espelho. Sonhou que o seu reflexo se comunicava com ele independente de seus movimentos voluntários. Eis o sonho...
Reflexo: Danilo Champoudry, enfim nós, enfim eu sai de você e me revelo.
Danilo: Você sou eu, você é meu reflexo, como isso pode acontecer?
Reflexo: Eu não sou você Danilo, e ao mesmo tempo sou. Eu sou seu alter ego. (alter: outro) e (ego: eu). O outro eu. Eu sou seu outro eu, eu sou o outro você que sofre, sou o que geme, sou o que recebe seus dissabores, sou o que vive cinza, sem cor, esfumaçando dor e tristeza constantemente. Não aguento mais! Por 17 anos eu vivi em você e hoje resolvi sair e trocar em miúdos nossa vida incomum.
Danilo: Você é meu alter ego? Não compreendo o que temos a trocar em miúdos, o que eu teria que ajustar comigo mesmo? Você sou eu e acabou! Seja de que lado você esteja, faz parte de mim.
Reflexo: Sou o Danilo que não se compreende, o Danilo infalso, o Danilo que não sabe esvaziar sua vida das impurezas guardadas à sete chaves. Vim com a missão dada pelo seu subconsciente de te salvar de si mesmo, e consequentemente nos salvar também. Vim fazer compreender o que nem sei se tem compreensão, mas devo tentar. Você é um algoz insuportável para mim, não vou morrer junto com você!
Danilo: Então você perdeu seu tempo Senhor alter ego, não há o que salvar em mim, eu vivo perfeitamente bem e sei que você não passa de um estranho delírio meu.
Reflexo: Tem razão Danilo, sou um mero delírio seu, e se não fosse esse delírio não poderia estar aqui, quando o SER delira então relaxa corpo, alma e espírito. Seu delírio foi a forma que seu subconsciente encontrou para me fazer ser visível a você. Com olhos orgânicos e senso de realidade você jamais poderia me ver. Nenhum ser se comunica com o mais profundo de si mesmo com racionalismo.
Danilo: Muito obrigado pela sua visita mais realmente eu não tenho o que falar com você. Se estou delirando então não levo nada disso à frente. Me faça voltar a realidade agora!
Danilo sabia que estava sonhando, mas ao mesmo tempo não compreendia como em sonho ele poderia saber que estava sonhando, e não compreendia como tudo aquilo era tão real. Ele não conseguia acordar. Começara a achar que estava de fato vivendo uma situação inusitada e louca e sentiu medo, mas não medo do reflexo afrontador. Sentia medo do desfecho daquilo, era tudo que ele sempre fugiu toda a vida.
Reflexo: Eu tenho um tempo limite para estar com você Danilo, por isso serei breve. O que falta para você viver em paz e me deixar viver em paz também? Qual a lacuna aberta dentro de você?
Resignado e entregue para aquela experiência Danilo responde: Se você é meu alter ego então deveria saber. Você não é o mais íntimo de mim? Você não é o que habita onde nem eu mesmo posso controlar?
Reflexo: Não Danilo, eu vivo em sua cabeça, e não em seu coração. A raiz do seu mal esta nos seus sentimentos. Coração é a fonte deles, lá esta o seu mal, só isso eu sei, a partir dai você terá que se revelar.
Danilo: Você deve pelo menos saber dos meus temores, dos meus bloqueios, do meu trauma. Você esta querendo se vingar de mim me fazendo reviver aquilo que não quero reviver. Aquilo que fujo desesperadamente. Te peço! Não faça isso comigo, não me torture assim.
Reflexo: Claro que eu sei deles todos minha metade, eu sou golpeado a todo momento por tudo isso e reflito em você. Você passa para o mundo aquilo que eu sinto e vivo. Chegou a hora de acabar esse martírio. Você é tão jovem, tão iluminado, tão do bem. Sua aura é tão brilhante. Brilha como o sol ao meio dia. Preciso te fazer superar você mesmo.
Eis o motivo de tudo...
Danilo ficara sem pai quando tinha 7 anos de idade. Um caso dramático para ele. Seu pai morreu na tentativa desesperada de salvá-lo de um incêndio que destruiu a casa onde moravam junto com a mãe.
Num final de tarde tudo aconteceu. O pai estava trabalhando, a mãe saíra para comprar pão na padaria e Danilo ficou em casa dormindo. De repente um curto circuito se faz na fiação exposta e velha do abajur da cabeceira da cama misteriosamente e se faz num estalar de dedo um grande fogaréu que atingira as cortinas, móveis, colchões em questão de segundos. Fora da casa já se faz o desespero! Sua mãe de longe em pavor amparada pelos vizinhos que não permitem que ela invada o lugar na tentativa de salvar o pequeno Danilo. Eis que chega o pai e toma tino da situação, recebera a notícia que seu filho esta lá dentro. Sem pensar duas vezes corre para salvá-lo. Entra na casa já totalmente dominada pelo fogo e vislumbra o pequeno Danilo apavorado embaixo da escada que leva ao piso de cima da casa, o menino quase sem sentido é resgatado pelo pai que salta os escombros como se estivesse atravessando um vulcão em erupção. Ambos salvos, que dizer... Danilo salvo. O pai inalara muita fumaça, ele sofrera de graves problemas respiratórios e não suportara e morrera. Eis a tal raiz dos males de Danilo. A sua área abissal.
Voltando ao ajuste consigo mesmo.
Danilo: Se eu pudesse dominar essa dor certamente tudo seria fácil para mim, tudo teria mais sentido e você não estaria aqui hoje.
Reflexo: Tem razão meu rapaz, mas o caso não seria bem esse. Se nós pudéssemos alterar a ordem das coisas em nossas vidas certamente todos viveríamos um lindo mar de rosas. Você não é, nunca foi e nunca será o único a passar por situações e perdas catastróficas e irreversíveis como essa. Você se martiriza de algo que nunca esteve na sua competência decidir se sim ou se não. Tudo que aconteceu com você foi um decisão de uma patente muito maior com uma razão muito mais profunda do que sua compreensão poderia entender e aguentar.
Danilo: Você esta falando de Deus né?
Reflexo: Eu estou falando do imaterial, eu estou falando do que tem que acontecer naturalmente. O fato é que seu pai teve que sacrificar a vida dele por um plano maior, não me pergunte qual é esse plano porque eu não sei, mas acredito que esse plano seja você. Você é a continuação sacrificada dele, você é a emenda de sua vida. Deus é a tradução da própria justiça, ele não é Senhor perverso e imperdoável que constrói e destrói e brinca com vidas como tantas pessoas pensam. Ele vê o futuro, vê o que a gente não consegue enxergar. Ele é autor da Vida e não da morte. (isso é lindo)
Danilo: Eu nunca culpei Deus pelo que aconteceu, nem tampouco me culpo. A minha dor é saber que eu fui a ferramenta que a vida usou pra tirar meu pai de mim. Eu fui cobaia do destino. Eu fui enveredado numa trama infeliz e impiedosa onde as tragédias não acabariam ali. A tragédia continua no enfoque das coisas. A tragédia sou eu, a tragédia perene sou eu. Eu fui lançado nesse abismo escuro e não consigo sair dele de jeito nenhum. Me sinto paralisado diante o fato de pensar que eu fui o causador mesmo que casual da morte de meu pai. Eu fui usado para acabar com a vida dele, com a minha vida e a vida de toda a minha família. Sinceramente, não tem porque você querer me fazer achar que tudo é o avesso do que esta tão escancarado.
Reflexo: Você é fugaz na tentativa da recuperação, seu coração é uma área abissal dentro de ti, lá convivem seres nunca antes vistos. Você sofre por não se permitir libertar. Eu vim para desarrochar os nós de sua gravata, vim para lhe libertar das algemas, das trancas, vim fazer você emergir à superfície azul e iluminada. A única coisa que esta pelo avesso aqui é você Danilo. Eu te amo! Te amo porque me amo, eu sou você. Você é seu pai, quando você sofre ele também sofre, onde ele estiver consegue sentir o que o pedaço dele em vida esta sentido. A memória dele sofre e acho que você não se agrada com isso. Na vida temos que nos conformar em saber que existem perguntas que nunca serão respondidas. Você quer saber porque seu pai teve que morrer para lhe salvar, a morte só virá até você uma vez e será para te levar também e não para te elucidar. Me perdoe em falar com você de uma forma tão enérgica e dura, não é impiedade de minha parte. É tratamento! Mas eu não posso lhe curar, eu só posso lhe dar a receita diante de seu diagnóstico. Você deverá ser a sua própria cura. Só o próprio ser humano consegue desenvolver o antídoto para seus próprios venenos. Eu já me coloquei e já sai do seu lugar muitas vezes antes, na tentativa de entender você. Eu não entendi! Você
3,,,é um ser indecifrável, mas você não poderá viver assim muito tempo.
Danilo: Tudo isso é lindo, é verdade, eu assumo, eu admito e no fundo até já saiba de tudo isso, mas não sei se quero sair dessa. Vivo tantos anos com essa tortura que ela já faz parte de mim, já me tornou um masoquista. Me entreguei a ela e agora ela me domina. Sou um resignado. Sinto muito se você é mais um prejudicado de minha realidade, mas... Realmente não sei, só sei que vivo bem não vivendo.
Reflexo: Viver é uma arte, todos nascem com esse dom, a arte é um dom inerente a todo ser humano e não onera ninguém. Você nasceu construído e se desconstruiu ao longo de sua tão jovem vida...
Danilo o interrompe e retruca: Não! Eu fui desconstruído, é diferente, eu fui abatido com 7 tiros a avaria! A vida, o destino, Deus... seja lá quem que se responsabilize disso me mirou e acertou no alvo.
Reflexo: Você não foi abatido Danilo, você esta vivo! Você não morreu fisicamente e nem tampouco mentalmente. Enquanto sua mente funcionar haverá vida, mesmo que seu corpo degradável não existir mais, mas a mente perdura eternamente e saiba que a mente tem que estar sempre uma passo à frente da emoção (coração). Você simplesmente vive ignorando a sua importância para TODOS, inclusive para mim.
Danilo: Eu sou sedento de pai, eu sou sedento de leveza de alma e consciência. Eu vivo e vivo com sonhos, eu tenho sonhos.
Reflexo: Sonho é o óleo lubrificante que permite o movimento da engrenagem da vida! Você tem vida não porque seu coração pulsa, você respira, sua matéria não pereceu ou coisa do tipo. Você ainda vive porque tem sonhos, fantasias e isso te torna uma pessoa linda, um ser lustroso, mas a sua mente é caótica, completamente fora da realidade da vida. E isso tudo é assim porque você não fechou a conexão de seu coração com sua mente. A raiz de seu mal é seu kardia (coração em grego). Ele te envenena dia pós dia. Liberte-se de achar que você foi a causa da morte de seu pai, esse é um pensamento frívolo. Não existem regras para as coisas acontecerem, elas simplesmente acontecem, desimportante qual seja o canal de realização ou promoção.
Danilo: Tudo que você me fala soa na minha mente como um estrondo revelador, daqueles que ecoam fruto da queda de um grande muro fazendo exposto o que estava do outro lado. Penso que tudo isso faz sentido. Sei que você esta certo, mas não sei... Vivo assim há 10 anos ( a tragédia na vida de Danilo ocorrera quando ele tinha 7 anos), acho que 10 anos não se desintegram num simples ajuste de contas como você fala.
Reflexo: Eu sei disso Danilo, e sinceramente, não fui mandado aqui com essa ousada esperança de elucidar tudo isso, mas vim semear o reflorestamento em ti. Ainda que minha luta seja inglória, mas eu tentei, e tentaria mil vezes se fosse preciso para nos salvar, mas sei que cumpri meu papel, viverei em paz daqui pra frente. E ainda que você continue relutante, eu sei que não poderá resistir em ser teimoso consigo mesmo. Eu te contaminei com o vírus mais benéfico que existe: O vírus da DOLCE VITA. Você ponderará, pensará com ardor, concatenará e sei que o bom senso sempre vence. Você tem bom senso.
Danilo: Ainda acho a possibilidade de dialogar com meu reflexo no espelho muito louco e estranho, ainda acho que isso é um devaneio, mesmo sendo o devaneio mais real. Como posso debater comigo mesmo ? Você é meu ALTER EGO. Não sei! Nem quero saber, mas é tudo muito válido. O que posso fazer é prometer pra mim mesmo estando eu prometendo à você que vou trabalhar isso.
Reflexo: Só quero que saiba que você é muito importante para todos e tudo que estão em sua volta e acima de você. Você é a menina dos olhos Dele. Você não é réu, você sentou no banco deles por iniciativa própria. Você já foi inocentado mesmo sem nunca ter sido acusado por ninguém, só por você mesmo. Vejo a felicidade e um futuro esplendoroso para nós dois, mas eles não invadem seu coração, eles batem na porta, pedem para entrar e cabe ao dono da casa permitir ou não a entrada. E mais... Eles só entram em casa limpa e ornamentada. Faça isso, se esvazie de TUDO e eles se responsabilizam de cumprir todo o resto.
Sem dar tempo de Danilo falar mais nada o reflexo transluz por entre as paredes do banheiro preenchido de esperança e some no ar. Danilo desmaia por não suportar o peso do choque emocional e do banho de realidade. A sua queda em desmaio culmina com seu despertar do sonho ardil. Sem mover um músculo que seja, apenas com olhos verdes estatelados e arregalados ele revê todo o sonho em um sopro de vida.
Não se sabe o desfeche da trama. Nem o próprio autor consegue dizer se Danilo virou-se do avesso ou não. É tudo tão incerto nas questões do coração, terra tão inviolável. O fato é: depois daquela experiência aquele jovem mancebo homem nunca mais foi o mesmo.
Na vida não existe determinismo, ela é uma linha tênue cheia de prós e contras, desníveis, invasões, violações, auto flagelamento, doses homeopáticas de suicídio. Mas também pode ser vivida como se se reportasse na mente de uma criança que tem a fantasia solta, um parque de entretenimento eterno, um delicioso clube social. Depende do uso e desfruto que se faz dela. As áreas abissais existem e devem ser mantidas sobre controle, senão seus seres monstruosos eclodem com gana de homicídio.
Acontece que eu sou assim: MAS UM SER HUMANO QUALQUER.