UM TERÇO DE VIDA...


Ao mergulhar na escuridão é preciso já ter acendido a luz interna, senão corre-se o risco de ficar por lá...no mundo das trevas.

E tudo, de fato, tem um preço: mesmo com a luz interna acesa, transitando em livre arbítrio, sofre-se em dobro com o peso da negação...assistir o processar de barbáries...


O grito de dor do jovem gato chegou aos ouvidos de X-Nereida , mais uma vez:
  • Miaurrrghrrrr...
Arrepiou-se! Sentiu um ar gélido envolvê-la. O sexto sentido a fez enrigecer-se.

Seguindo as ondas magnéticas da dor, acompanhou seu sofrimento. Teletransportou-se, exatamente, para onde estava, e estarrecida assistiu a cena: !
“Preso, amarrado na gaiola, embrulhado na escuridão. Seus olhos verdes cristalinos arregalavam com suas pupilas dilatadas, tentando achar uma saída para o cessar de sua indignação, estando inábil, diante do mal que o encurralou.”

Pressentia a sua morte programada para alguns minutos , que estavam próximos.
Suas sete vidas não seriam vividas. Era o fim. Não conseguiria viver nem um terço de uma.

O pavor do coração felino dominou-a intensamente.

O gato tinha assistido,  na véspera, a morte de outro de sua espécie.

Finalmente, na hora derradeira, uma parca luz amarela acendeu.
A criatura que surgiu tinha olhos vazios de um negror de caverna . Ao seu lado, um robusto cão negro cintilante, de olhos afogueados,  postou-se lambendo os beiços. Era seu amigo fiel e cúmplice.
As mãos grosseiras, com unhas pontudas, abriram a porta da cela, pegou-o pelas pernas, como se um dócil coelho, colocando-o sobre a mesa, ainda envolto nas finas cordas, Destampou sua boca, antes sufocada, para que sadicamente escutasse seu lamento desafinado, dilacerado e subjugado diante do medo.

Os olhos do gatinho acompanhavam todos os movimentos das garras desumanas.

Aproximou a lâmina afiada que brilhava, e cortou sua garganta. Ainda segurando o corpo degolado que sangrava, jogou a cabeça, precisamente, na boca do cão, e o corpo no caldeirão de água fervente, para que desprendesse sua pele.
Retirou o corpo frágil, escaldado! Removeu as cordas, destripou, esquartejou, salgou e fritou!
Estava preparada a refeição de uma de suas vítimas, tornada mendigo, que há anos mora na calçada,ao lado de seu habitat, ofertada contumaz pela mão de sua parceira mulher. No local mora o casal, não há bichos de estimação..
O repetido ritual será realizado em minutos, onde indiferentes vizinhos e passantes assistem, habitualmente ou esporadicamente, a prática da caridade!?...

Vivenciando a cena de horror, o coração de X-Nereida sangrou mais uma vez, deixando-a dolorida pelo peso do medo e da dor.
A calmaria da paz é rompida com as emanações do terror, ora na manhã, à tarde, ora na madrugada. O ar frio da morte invade seu coração.
O alheamento e a indiferença dos arredores infla o estado de tristeza que fere, que lanha e sangra a alma, frente à constatação da presença do mal, morador da casa sinistra, sempre percebido em penumbra.

Mais uma batalha se aproxima. X-Nereida terá que fazer purgar mais uma força das trevas. Temporariamente, está sendo recarregada com as energias aero-hídricas.

Sentindo-se, também, vítima e cúmplice diante da impossibilidade de resgate do mártir, curvou-se desarmada, e do fundo de sua alma suplicou:

-Pai! Onde Estás que não nos ouves? Livrai-nos do Mal !

E chorou... Num segundo, aconteceu o elo! Sentiu o preciso pulo do gato em seus ombros. Suas patinhas macias passeavam de um lado a outro, num roçar carinhoso em seus cabelos.
X.Nereida ergueu-se suavemente, para não desequilibrar o seu “pom pom”, que assim parecia, enfeitando seus cabelos etéreos, e que ora postava-se à sua frente, na altura do peito.
Então, enlaçou o felino num embalo, como se um pequeno pedaço de nuvem, cruzando as mãos, esquerda com a direita em x, trespassando sua própria aura branca.

Imanadamente, fixaram-se. Seu olhar translúcido permitia enxergar o fundo de seu ser, e sua forma efêmera ampliou-se como de um ancestral tigre branco, convidando-a a cavalgar. Aconchegou-se em seu dorso, e juntos alcançaram o nirvana, não mais havia dor nem paixão...

Uma voz doce, fez-se ouvir...

- Que a Paz esteja convosco!

E em uníssono, responderam:

- E Contigo também!



“Pela diversidade, os gatos muito se assemelham à personalidade dos humanos.

Há quem os vêem abençoados, outros amaldiçoados. E é exatamente assim...

E assim sendo, o perdão sempre haverá de intuir a espécie humana. Pelos abençoados vale resgatar a todos.

Os amaldiçoados, carecem de uma chance.”