O segredo de Sancha
O misterioso caso de Rodolfo
Era a primeira vez que Rodolfo visitava o Bairro do Pádua. A subida era íngreme e difícil, não permitindo passar carro.
No meio do caminho, prometera a uma dúzia de santos que retomaria o velho habito de fazer caminhada pelas manhãs, como sempre fez na capital, bem como comer as verduras que sua esposa dispunha à mesa, e ele nem as tocava.
Mudara-se para uma pequena casa, situada no Bairro do Ouvidor, meia hora de carro do Pádua. Deixara a boa vida na capital, repleta de bares e amigos, para tomar posse como promotor da pequena cidade de Andaluzia, um pedaço quente e deslumbrante do sertão. Trazia consigo um livro pequeno e gasto debaixo do braço, tomando cuidado para não deixa-lo cair. Pois assim como a cidade, o livro fazia parte de sua historia.
Aos poucos, Rodolfo venceu a subida. Quando enfim alcançou a rua plana, enxugou o suor do rosto com um lenço que pegara do bolso do paletó e suspirou aliviado. Retirou do bolso traseiro da calça um pequeno papel e leu o endereço: Rua do Castelo, nº 15, Bairro do Pádua, casinha branca.
Por recomendação de um velho amigo, ele estava prestes a visitar uma cigana, dada a ler o futuro e a falar com os mortos. Ele despendeu muito tempo convencendo-se de esta ser a melhor saída para dirimir seus anseios, uma vez que andava amuado, pensando em coisas que ouvira de um velho parente de seu pai, antes de sua morte. Tudo que ele queria naquele momento era esclarecer suas duvidas e voltar a ter as noites de sono tão agradáveis quanto eram antes da grande revelação.
Se não fosse o amigo, ele jamais tomaria a iniciativa de consultar a cigana. Uma de suas muitas crendices, era de que uma vez mortos, mortos estão. Ele até parafraseava a bíblia quando era indagado pelos amigos a respeito dessa crença, citando o que está escrito em Eclesiastes 9: “os mortos não estão cônscios de nada”.
Mas diante de sua necessidade em esclarecer o passado, resolveu seguir o conselho e ter uma audiência com a cigana.
A casinha branca estava logo ali, cuja pintura já estava desgastada pelo tempo. Rodolfo leu o numero pregado na parede no canto direito da porta e bateu, sem hesitar, três vezes. Por insistência do amigo, ele ligara um dia antes e marcara horário, pois era comum a cigana receber vários clientes por dia, não lhe restando tempo sequer para ir ao mercado.
Como foi demorado o abrir da porta, Rodolfo levantou o punho mais uma vez, girando o pulso para bater com os nós dos dedos, mas parou o movimento na metade do caminho. Ele ouviu passos rápidos no lado de dentro, seguidos pelo som da chave introduzida na fechadura e do girar da maçaneta. Apresentou-se então uma menina, miúda e bonita, ainda nos primeiros anos da adolescência, de olhar acanhado, que lhe olhou nos olhos e depois baixou a face, enrubescida. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela falou:
- A senhora Mirtes o espera. Acompanhe-me, por favor.
Rodolfo balançou a cabeça e a seguiu.
Andaram pelo corredor até a sala, depois pelo quarto e por último, chegaram ao local de trabalho de Mirtes, um quartinho ornamentado com tecidos de varias cores, prateleiras com material artesanal; velas por todo canto.
No centro, uma mesa redonda com uma toalha de duas cores encobria todo o tampo, fazendo Rodolfo lembrar-se dos truques que assistia pela televisão, onde eram reveladas as cartas escondidas nas mangas dos adivinhos e dos falsários. Como tivesse prestes a ser interrogado pela policia, ele sentou-se cautelosamente, esquadrinhando o quarto. Assim que pousou os olhos na garotinha, esta parou de olha-lo com certa curiosidade e voltou a fitar o chão, enrubescida.
- Qual seu nome? – perguntou Rodolfo.
Mas como não houvera resposta, tencionou fazer a mesma pergunta, parando logo no inicio da frase, pois uma figura gorda e metida num vestido vermelho estava parada na soleira da porta, olhando seriamente para a menina.
Rodolfo sabia quem era mulher, não seria preciso que lhe dissessem. A cigana, parecendo não nota-lo ali, ordenou à garota:
- Vá para seu quarto, Karina – disse, em tom serio. – Não saia de lá até que eu termine.
Obedecendo religiosamente, a menina saiu, sem desviar os olhos do chão.
A mulher tomou assento, deslizando com o vestido roçando o assoalho. Sua expressão neutra, quase antipática, fez Rodolfo sentir calafrios, ao que levou a mão ao livro e o retirou da mesa. Se ele ainda tivesse o livre direito sobre as pernas, levantaria e ganharia a rua, sem olhar para trás. Mas já que ali estava, seguiria com o intento.
A médium pôs as mãos espalmadas sobre a mesa, olhou para Rodolfo e fez um breve silencio. Depois, falou:
- Então ,você veio falar com seu pai! – era uma afirmação, não uma pergunta.
- Como a senhora sabe? – perguntou ele.
A mulher nada respondeu.
- Ponha suas mãos na mesa – ordenou ela.
Rodolfo obedeceu. Suas mãos tremiam, escorria suor de suas têmporas.
- E feche os olhos também.
Seguiu-se um breve silencio. Rodolfo lutava consigo mesmo para manter os olhos fechados, pois estava curioso. A única luz que incidia sobre a mesa, agarrada num fio que pendia acima de suas cabeças, dava um ar de mistério ao ambiente. O rosto rechonchudo e rosado da mulher, por mais que ele não quisesse, exercia sobre si um certo fascínio, quiçá, medo.
- Você está aí Escobar? – perguntou ela, de olhos fechados.
Rodolfo perguntou a si mesmo como ela poderia saber o nome do seu pai.
- Fale conosco, Escobar. Seu filho quer ter contigo.
Por um segundo, Rodolfo sentiu arrepios e quase pulou da cadeira. A lâmpada piscou, acendendo e apagando, como se a energia quisesse ir embora; ele olhou para todos os lados, mas mesmo com a pouca iluminação, era possível dar conta de que havia ali somente ele e a médium.
- Estranho – a mulher disse. – Não é seu pai que aqui está. É uma mulher.
Rodolfo, apesar de não estar vendo nada e nem sentido coisa alguma, a não ser arrepios por todo o corpo, notou um certo ar de preocupação no rosto da senhora, pensando se tudo o que vira e ouvira, não passasse de encenação.
- Foi um erro, senhora – disse ele, se levantando. – Eu não deveria ter vindo. Bem sabia eu que não daria em nada.
- Espere – gritou ela. – A mulher manda-te um recado.
- Qual? – perguntou ele, sentando novamente.
- Ela manda dizer-lhe para deixar isto de lado. Que não é bom remexer no passado.
- Quem falou?
- Diz que é sua mãe.
- Minha mãe? – surpreendeu-se Rodolfo.
- Sim. Ela está muita brava. Diz que você não está honrado a memoria da família por querer saber dessas coisas.
- Mas eu preciso saber! Diga-lhe que quero falar com o pai.
- Não pode – respondeu a mulher. – Ele não quer falar com você. Está nervoso.
- Ora, por que ele estaria nervoso comigo?
- Sua mãe não pode dizer. Há algo errado. Isto nunca aconteceu.
As luzes começaram a piscar. Fazendo o coração de Rodolfo palpitar no peito. A mulher abriu a boca e arregalou os olhos, como se quisesse bota-los para fora.
- Oh, não – disse ela. – Eles estão discutindo, xingando um ao outro. Ele diz que ela o traiu!
- Diga mais, diga mais! Que despautério é este?
- Eu não sei. Minha nossa, que revelação!
- Diacho! O que ele disse? Preciso saber!
- Ele diz... Ele diz que não é seu pai. Você não é filho dele.
Rodolfo levou a mão à boca, visivelmente chocado. Apesar de ser este o motivo de sua visita à médium, preferiria que ela fosse realmente uma charlatã, uma falsaria da pior espécie. Mas convenceu-se de estar diante de uma profissional, uma verdadeira paranormal.
A revelação não lhe trouxe consolo. Escobar não era seu pai, disso ele suspeitava, o tio lhe dissera e ele queria prova do descabimento. Mas na verdade queria que lhe dissessem mentiras para não ter de conviver com a verdade. Sancha, sua mãe, traíra Escobar com Bento, ou Bentinho, como era conhecido.
Diante da médium, veio-lhe uma vontade louca de sorrir. Mas o que saiu foram gargalhadas assombrosas, ao que a mulher, ouvindo-as, saiu do transe e perguntou:
- O que te deu, homem, é assim que age com tal revelação?
- Mas não há outro meio de lidar com isto, minha senhora. O homem que passou a vida inteira acreditando ter sido traído pela mulher, e mesmo no leito de morte de sua amada não volveu de sua loucura, fora o traidor. Ele, que renegou o próprio filho, renunciou à amizade verdadeira, traiu a todos e fez-se de coitado. Que loucura tudo isto. Que loucura!
A médium arqueou as sobrancelhas, já temendo que estivesse diante de um louco.
- Do que tu falas, homem? Que loucura é esta? – ela perguntou.
- Tome – ele pôs o livro sobre a mesa. – Está tudo aí. Leia e saberá daquilo que estou falando, talvez até ria comigo. Agora vou para casa, pois preciso beber um bom vinho e deixar que o tempo cuide dessas lembranças. Adeus.
Rodolfo saiu, depois de pôr duas notas de dinheiro em cima da mesa. Foi para casa, gargalhando como um maluco na rua.
A senhora pegou o livro e o virou para si, pois fora colocado de cabeça para baixo. Então ela leu as letras vermelhas, impressas sobre uma imagem de dois homens sentados, a bordo de um trem:
“Dom Casmurro”.