A MORTE PEDE CARONA
 

No dia em que morri eu estava chateado, nostálgico, aborrecido. Era início da madrugada e eu dirigia meu carro pela longa rodovia que levava à capital do estado. O silêncio reinava absoluto, a não ser pelos raros veículos que encontrava ou me ultrapassavam. Pensava nos amargores e desencantos que a vida neste Plano tivera me reservado até àquele momento. Embora, reconheça que houvera sim momentos de felicidade e de rara euforia. Mas, estes foram poucos, muito poucos... Nada, absolutamente nada havia sido fácil, desde que botei o nariz neste mundo a fim de inspirar pela primeira vez e instalar o sistema operacional do Criador. Algo invisível aos sentidos objetivos, mas que todos sabem tratar-se de algo que faz mover a matéria e muitos o chamam de espírito, alma ou força vital. Seja por sua eternal essência; seja simplesmente por sua vibração, a qual apenas é sentida pelos nobres de coração.

As dificuldades das quais me refiro e que me fizeram sair sem destino pela noite tiveram início para mim a partir dos cinco anos de idade. Nessa inesquecível e marcante ocasião meu estômago contou-me com a clareza e a dureza da sinceridade o que era a fome. Pois, antes disso eu não sabia direito do que se tratava aquele terrível desconforto na altura do peito.

Em uma chácara, local onde hoje é um bairro populoso da cidade, ficava o humilde casebre onde nasci em dezembro de 1955. Minha família, oriunda de agricultores, era pobre, porém digna e honesta. Meus pais cuidavam da propriedade em que morávamos e lá cultivavam verduras de toda espécie, cuja produção, em grande maioria vendia-se ao quartel do exército localizado no centro da pequena cidade. Logo após eu ter completado cinco anos, por volta de 1961, meu pai recebeu uma proposta do comandante, meu padrinho de batismo por sinal, para cuidar de uma área de terra com seis alqueires, na zona rural da cidade. Ao final de certo tempo a posse dessa terra nos foi transferida por definitivo. Foi um presente, que hoje em dia só se consegue mediante invasão, em geral por mercenários, os quais nada têm a ver com a lida do campo.

Bem, quero dizer que hoje em dia vejo e sinto que nem mesmo o vazio do estômago compara-se ao vazio existencial. E, durante àquela noite de luar peguei-me a focar na solidão que sempre vivi. Já na escolinha rural, próxima de casa, onde estudei por um tempo conheci falsos amigos. Muitos me rodeavam e sentavam-se ao meu lado, mas eu sabia perfeitamente que era apenas uma maneira de pedir ajuda nos dias de prova. Era uma forma ingênua de eu tentar conseguir amizade, mas, fora os dias de prova, nos recreios não era tratado como amigo.

Mesmo com todos os percalços que a vida nos reserva, tais como, traições ou punhalada covarde de toda a espécie tentava praticar a tolerância e a prudência. Cometi muitos pecados é verdade, mas a todos (os pecados) que tive a capacidade de percepção, de alguma forma tentei reparar o mais rápido possível. Por muitos fui perdoado, por outros, até esse dia, nunca me deram a. menor chance de reconciliação. Não me importo quanto a este particular, claro, pois fiz a minha parte. O mais importante para mim foi eu ter perdoado desde o fundo de minh’alma aos que me magoaram ou ofenderam ao longo dos anos.

Logo cedo, aos 24 anos de idade, passei em um concurso público por onde me aposentei após anos de serviço ininterruptos. Foi nesse lugar, aliás, que passei mais da metade da vida e onde realmente conheci o odioso, o invejoso, o soberbo e demais adjetivos que decrescem o espírito humano. Logo, nada me foi fácil também no ambiente de trabalho. Destaco aqui o rancor da gestora ou chefe desse local de trabalho em que me referi. Notava-lhe o interesse mais em minha pessoa do que no meu desempenho funcional. Transferiu-me para um lugar insólito em que eu não possuía o menor perfil para trabalhar. O motivo do ressentimento era em função de minha repulsa aos assédios que por mim ela dispensava. Eu era jovem, casado e longe de mim o moralismo hipócrita, mas a mulher era uma idosa senhora, solteirona e só os carreiristas interesseiros retribuíam-lhes o que queria.

Por não lograr resultado positivo em suas chantagens morais, a maldosa chefe incluiu-me no rol de suspeito de um suposto atentado a um colega de trabalho, acontecido algum tempo antes. Tudo isso de maneira covarde e velada e não assumida perante a Justiça de balança desregulada, que muitos gostam de idolatrar. Fiquei exilado, por castigo, em o novo local de trabalho por quatro longos anos. Junto inclusive com demais colegas transferidos a contragosto, como havia acontecido comigo. Esses outros companheiros de exílio, diga-se de passagem, também nada tinham a ver com o incidente antes citado, cujo pérfido motivo, fora a origem da transferência. Mais tarde soube-se que o caso do tal colega, cujo carro foi crivado de bala, tratou-se de um crime passional, ou seja, questão de disputa por uma amante em comum com outro sujeito. Felizmente, porém, o amigo da chefe, vítima do suposto atentado, nada sofreu, a não ser o grande susto que o fez migrar para outra cidade por todos desconhecida.

Durante os anos exercendo trabalho de fiscalização também me decepcionei com a tal de Justiça! Que droga é essa que os homens inventaram em nome da mística Maat? Digo isto por que nessa Repartição do executivo federal podia-se “matar um leão por dia” em termos de serviço executado: apreensão de drogas, traficantes, contrabandistas, carros roubados... Nada disso tinha valor. Nem perante a própria Organização, nem à opinião pública e muito menos diante da autoridade judiciária. Na qualidade de apreensor e condutor do flagrante, por exemplo, ocorria uma inversão de valores. O delegado, promotor, ou juiz interrogava mais o agente público do que o bandido preso:
- porque o senhor o prendeu? Ou,
- por que o senhor parou justamente esse veículo?”.

Uma maldosa insinuação de que o bandido foi preso por não ter havido acerto entre as partes. Poderíamos prender uma carreta de maconha ou quilos de cocaína, armas, etc e a imprensa nada destacava. Entretanto, caso um servidor fosse detido, mesmo sem comprovada a culpabilidade, jornais locais esgotavam-se ás oito horas da manhã. Por outro lado, caso um bandido fizesse uma denúncia, mesmo infundada contra um agente público, o marginal era recebido pela justiça com água mineral e cafezinho. Tudo isso foi me entristecendo a tal ponto que nesta noite as ocorrências elencadas ao longo destas linhas fazem parte de minhas reflexões

Vinham-me a mente até as enfermidades que adquiri em função da dura vida que levei, tais como os dois infartos, um AVC e outras mais, como diabetes, por exemplo. Mesmo assim, sorria e disfarçava muito bem minhas dores físicas e espirituais. E, por falar em espiritualidade é bom contar que desde muito cedo entrei para uma fraternidade que, dentre tantas práticas, pregava a tolerância e o respeito á opinião alheia. Lá permaneci por 33 anos e exerci todos os cargos e funções que me foram confiados. Isto fez com que eu aprendesse técnicas meditativas e de autoconhecimento que me facilitaram o enfrentamento hercúleo que travei com as agruras da vida. Entretanto, nada neste mundo é perfeito e lá mesmo havia muitos confrades de último grau inclusive que em nada se assemelhavam com o que eles mesmos professavam. Os falsos, hipócritas, imbecis, invejosos, existiam por lá, como em qualquer lugar. Mesmo com tudo que eu ajudasse para melhoria da fraternidade era criticado e apunhalado nas costas por irmãos covardes e invejosos.

Assim sendo, naquela madrugada eu refletia, com relutância, em repensar minha vida e tornar-me falso e frívolo, como é o mundo atual. Pois, falar o que realmente pensava tinha sido o meu maior pecado e o principal motivo da perca ou ausência de amigos e da consequente solidão. Neste mundo cruel, a sinceridade sempre foi considerada o supra sumo dos defeitos. Havia que ser falso, falar o que as pessoas queriam ouvir para ser aceito no meio hipócrita, imbecil e dispersivo da sociedade contemporânea. Atitude que, como bactéria, crescia geometricamente dentre os andróides que compõem essa sociedade. Gostaria até de ser diferente, um andróide também, mas não conseguia e cada dia que passava mais me isolava dessas pessoas e tornava-me ainda mais humano.

De repente algo me despertou das duas viagens que fazia: a física e a mental. Vi logo a minha frente, no acostamento da rodovia, por causa da claríssima noite, uma figura feminina que acenava pedindo carona. Notei tratar-se de uma mulher, porque seu longo vestido branco esvoaçava com a leve brisa que também me acariciava o rosto pela janela do carro.

Instintivamente parei o carro. Abri o vidro elétrico do lado direito. Tratava-se de uma moça bonita, sorridente, cabelos pelos ombros, com leves cachos escuros e com um vestido longo e branco com babados, ou seja, em estilo antigo que muito se via em filmes épicos. Ela me pediu carona. Perguntei-lhe obrigatoriamente para onde ela iria. E, ela me respondeu:
– para onde você vai. Então lhe disse:
- eu vou a lugar nenhum! E completei:
- saí de casa para pensar um pouco e aliviar minhas dores. Ela se limitou em dizer-me ainda sorrindo:
- Eu sei. E, também sei para onde vai!
Fiquei intrigado, mas nada mais lhe perguntei. Pediu-me para entrar e eu a autorizei com um gesto de cabeça. Destravei a porta, ela entrou e sentou-se ao meu lado. A jovem permaneceu calada e eu também. Simplesmente a ignorei. Continuei dirigindo e pensando na vida  sofrida que havia experimentado até aquele momento. A pista era simples, ou seja, de mãos contrárias. Eram mais ou menos três horas da madrugada, momento em que, segundo o folclore popular, os fenômenos paranormais e parapsicológicos acontecem.

Por experiência e prática em meditação sabia que em momentos de alta focagem reflexiva os níveis de consciência tendem a baixar e nossa usina cerebral diminuir a velocidade da turbina. Exatamente o que acontece com o relaxamento noturno quando o sono toma conta de nosso corpo físico. Assim que, ouvi um grande estrondo e ato contínuo um profundo silêncio. De repente, uma grande quantidade de pessoas alegres e desconhecidas, vestidas com roupas brancas surgiu em minha volta. Eles, estranhamente, davam-me boas vindas. (?!)

Não entendia nada, ainda mais quando via meu carro totalmente destruído e a parte do capô para cima simplesmente desaparecera. Convidei todos que ali estavam a acompanhar-me a fim de saber o que havia acontecido com a moça que um pouco antes me pedira carona. Mas, para minha surpresa ela não estava no carro e nem nas proximidades. Pior ainda: vi-me saindo do carro, ensangüentado e sem a cabeça. Mais a frente estava uma carreta, cujo motorista mostrava-se inconsolável e com as mãos no rosto, em claro sinal de desespero. Rapidamente pensei:
- poxa, estou dormindo e preciso acordar deste horrível pesadelo, senão vou bater o carro; morrer quem sabe. Porém, nem bem havia acabado de pensar e surgiu do nada a moça de branco. Sempre sorridente, e antes que eu esboçasse qualquer palavra, ela me disse:
- Não. Você não está dormindo. Dormiu há pouco e bateu em alta velocidade na traseira daquele caminhão. Nesse momento escapou-me uma pergunta.
- Meu Deus, por acaso estou morto? Ela foi quem respondeu.
- Não, quem está morto é aquilo! E, apontou ao meu corpo degolado e agora caído sobre o asfalto.
- Eu lhe vim buscar!
Finalizou em tom lacônico.
Luiz Carlos Gomes
Enviado por Luiz Carlos Gomes em 08/05/2016
Reeditado em 09/05/2016
Código do texto: T5629325
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