Promenade

(Excerto de meu diário de viagens)

Era uma fria madrugada de inverno; incapaz de dormir, resolvera entregar minhas mágoas às trevas e à solidão, companheiras estas que vinham se tornando cada vez mais frequentes em minhas andanças. Longe, porém, de me lamentar, vinha aprendendo a amá-las como a irmãs – aprendizado este que, para melhor e para pior, viria a ser dos mais úteis em toda a minha breve existência.

Cruzava a vetusta Ponte Carlos (que, noutros tempos tão mais felizes, com toda a certeza me deixaria maravilhado, mas que a essa altura tão somente me fazia bocejar de tédio), sem saber para onde queria ir, até que instintivamente estanquei meu passo para contemplar as gélidas, torvas águas do Vltava. Tolamente talvez, no fundo de meu coração esperava que o rio pudesse me dizer algo – mesmo já tendo sido ludibriado pelo Tietê, pelo Bâc e pelo Kura, e já tendo perdido as esperanças de que aquela série de viagens me traria o olvido pelo qual tanto almejava. A verdade é que gostaria de retornar a meu país e viver o resto de minha vida como um ermitão, expiando meus pecados ante um Deus cujos ouvidos se cerraram ante minhas orações – amanhã mesmo comprarei uma passagem de volta ao lar e porei um fim a esta busca infrutífera, ruminava eu, em silêncio e completamente a sós, no parapeito da ponte.

E foi aí que ouvi, pela terceira vez, aquele sussurro – o mesmo sussurro que perfurara meus ouvidos com uma nota de malévola ironia na noite em que passara bebendo até me embriagar no Fascinátor, e enquanto contemplava o retrato da Condessa — no castelo, que com minha saudosa e fantasmagórica amada tinha tanta similitude; aquela voz, feminina, sem corpo, que mais ninguém além de mim parecia ouvir e provinha de algum canto escuro de minha mente prestes a se transbordar ou, quiçá, uma Erínia enviada para me torturar, que com apenas uma palavra me deixava de cabelos em pé – palavra esta que, sempre proferida em tom de cruel interrogação, parecia me recordar sarcasticamente de meu estado de espírito desde que partira:

“Hvileløs?”

Pela terceira vez me virei à procura de minha invisível interlocutora – mas, deixando-me ainda mais assustado do que aliviado, vi que ela finalmente havia dado as caras: a estranha voz não pertencia a qualquer ente sobrenatural (ou, pelo menos, assim o parecia), mas sim a uma pequena garota de uns 12 ou 13 anos, vestida em amorfas roupas negras que lhe davam um ar andrógino. O cabelo, também negro, era curto e graciosamente encaracolado, como o de algum anjo caído barroco, e apesar da escuridão, sua pele de um branco glacial e quase que não natural se destacava com uma luminosidade de fogo-fátuo. Afora os olhos, que emitiam um brilho malévolo e predatório sob o luar, nada pude discernir de seu rosto então. Antes que a última fímbria de coragem deixasse meu corpo, tentei interpelar, finalmente, aquela criança – ou, melhor dizendo, aquela aparição:

“Então finalmente deu as caras, demônio? Já não sou suficientemente perturbado por seus lacaios, que vêm aos pelotões me acossar tanto em vigília quanto em sono, e agora cá está em pessoa querendo me privar de um ínfimo momento de paz? Quem é você? O que é você, que me alfineta a consciência desde minha chegada a este país até então a mim estranho, parecendo conhecer não só a mim como ao segredo fatal que carrego em meu âmago?”

“Ora!”, respondeu-me a garotinha com uma voz cristalina e harmoniosa, marcada por um sotaque oriundo de alguma das terras glaciais de Thule, porém um tanto quanto grave e com certas notas de desprezo e ironia, coisas tão incomuns numa criança daquela idade. “Julguei que fosse um tanto mais perspicaz; se estivesse em sã consciência não confundiria a mim, que posso lhe dar a paz que tanto almeja, com o causador de seus males. Não apenas PAREÇO conhecê-lo: eu O CONHEÇO. O conheço desde que atraiu minha atenção naquela madrugada quase tão congelante quanto esta, em que buscou ver a Morte pela primeira vez, perturbado e incoerente, assombrado por um nome, no topo do Viaduto do Chá, nas tripas de sua própria pátria, para a qual não passa de só mais um verme descontente roendo-as no meio de tantos outros vermes. Devo dizer que seu fado me intrigou desde então, e procurei investigá-lo; sem que o soubesse, farejei por todo e qualquer vestígio seu por todas as terras onde delineou sua trilha de misérias – vi em primeira mão a poça de sangue em teu profano leito de núpcias, estava presente quando retiraram do fundo do Kura o cadáver de uma garota…”

“Empusa! Você mente!”, gritei num paroxismo de ódio, e numa fútil tentativa de enganar a mim mesmo sobre aquilo que, muito provavelmente, foi de fato verdade – mais uma para minha crescente coleção de desenganos. À guisa de evidência, a garota levou uma pequena mão a um dos bolsos do pesado manto negro que vestia, e puxou um pedaço de papel de péssima aparência, mutilado e encharcado de água; entregando-o a mim, seu sorriso maligno pareceu aumentar grandemente. “Espero que isto lhe convença do contrário”, disse, mordaz.

Trêmulo, desdobrei lentamente o maltratado papel; por mais que estivesse manchado e obliterado em vários trechos (e quisesse forjar em meu cérebro alguma mentira convincente que escusasse minha culpa), reconheci trechos de minha tosca caligrafia em russo – era o poema que dera a Zarema no dia em que de seus braços me evadi, negando a mim mesmo uma possível vida de alegria por simplesmente achar que não o merecia. Marejados de lágrimas, meus olhos se arregalaram.

“De lá, foi fácil inquirir sobre seu paradeiro”, continuou a cruel figura em contornos de menina. “Afinal de contas, quantos estrangeiros como você, oriundos de exuberantes terras tropicais, se veem por estas bandas? Ainda mais aqueles propensos a profanar as madrugadas com seus circunlóquios, quando o homem de bem dorme o sono dos justos? Do Cáucaso fui procurá-lo na Lituânia, e de lá me apontaram a tumba da Prússia – não se lembra daquela noite em que lá chegou?”

Prontamente me veio à memória aquele calafrio indigesto – aquela pontada de mau augúrio que senti tão logo o gentil fazendeiro me dera o braço para que eu apeasse de sua carroça após nossa jornada de dias cruzando a fronteira da Lituânia com o Oblast de Kaliningrado, e que quase fez com que me atirasse a seus pés, implorando que me deixasse compartilhar de sua rústica morada, plantando batatas pelo resto da vida e sem jamais pensar em escrever qualquer linha de verso ou de prosa que fosse. “Se fosse veloz o bastante teria me visto – se bem que ainda não era chegada a hora deste nosso inevitável encontro. A partir daí fui sua fiel sombra, sempre em seus calcanhares, esperando até que estivesse mentalmente fortalecido para a grande revelação que me foi confiada; e quer queira, quer não, hoje é o dia em que lhe será permitido ouvir, de minha própria boca, aquilo que necessita antes que o fosso em sua alma o devore de vez.”

“Mas não serei devorado de qualquer maneira?”, perguntei, minha petulância lutando contra meu medo e, pelo menos momentaneamente, o sobrepujando. “Onde estava quando necessitava, e merecia, a preocupação de alguém? Se busco fazer o que faço, é porque é meu destino.”

“Talvez – mas não é agora que ele está para se cumprir. Precisa terminar suas andanças tal como as planejou, afinal.”

“Fala como se eu pretendesse me atirar daqui. [Sem pudicícia, porém, confesso a meu indulgente leitor que não deixei de considerar tal possibilidade, mesmo que por uma fração de segundo.] Deixe-me adivinhar: você é o Anjo da Morte? Veio embargar minha partida, pois Deus o proibiu de levar-me até que eu sofra ainda mais!?”

Ela riu. “Por mais que o Anjo da Morte e eu sejamos muito bons amigos, eu nada tenho de sobrenatural. Sou apenas uma mera garota que, por graça ou talvez por punição, foi fadada a saber demais – e me interessar por gente feito você. Por que não me dá um amigável aperto de mão para que celebremos esta nossa camaradagem a desabrochar? Sentirá que sou real.” E me estendeu sua pequenina mão.

Procurei desvendar todo e qualquer ato de malícia por trás daquele inócuo gesto, mas nada parecia haver. A menina prosseguia impassivelmente de mão estendida, e por ora temi contrariá-la; timidamente segurei seus dedos, comprimindo-os com vagar, mas aquela mão era de uma frieza de rigor mortis que me fez recordar das lôbregas páginas de romances góticos que lera – aquelas velhas histórias de espectros, aparições, portentos, a exalar um agridoce olor de putrefação, com as quais preenchera meu enfastiado cérebro. Retirei minha mão da dela apressadamente, encarando-a com um misto de curiosidade e puro asco. Sua única resposta foi rir de mim outra vez.

“Estranha meu toque, homem do Sul? De pronto lhe ofereço uma explicação suficientemente racional a seus gostos: venho de uma terra onde Bóreas é rei e, por isso, o inverno é permanente – os ursos polares são nossos adoráveis bichinhos de estimação, e a falta da luz do Sol é compensada pelo formoso espetáculo das auroras boreais. Sou nativa de Spitsbergen, uma pequena, mas nem por isso menos bonita, joia na coroa do Ártico; mas não há pai ou mãe que me criaram. Até onde sei, sou filha por partenogênese de uma lasca de nosso alvo e alteroso Newtontoppen, e me alcunharam de Anastasia.”

“Me chamam de Galaktion”, respondi, ainda desconfiado.

“Por que não se introduz como —? Afinal, é o nome que seus pais lhe deram”, argumentou Anastasia. Gelei uma vez mais, por aquele ser saber tanto sobre mim passando anos a me perseguir sem que eu o soubesse, mas rapidamente recuperei a compostura e lhe inquiri:

“E quem a batizou de Anastasia? E o que a levou a deixar sua inóspita fortaleza de gelo para me perseguir – a mim, que nem ao menos sei quem é e tampouco lhe devo nada?”

“‘Tu carregas a tua cruz e eu carrego a minha’”, foi o que me respondeu num tom de voz azedo. “Não posso falar sobre aquilo que não lhe foi permitido entender. Este frio não faz mal à sua compleição?”

“Habituei-me ao frio; carrego-o dentro de mim.”

“Pode ser que assim seja – mas ainda devo lhe dizer aquilo que deve ouvir, e não gostaria que fosse aqui, ambos expostos aos incautos ouvidos da Escuridão. Insisto que me acompanhe até meu lar; uma boa lareira e, quiçá, uma cálida beberagem lhe farão algum bem. Estou hospedada na Rua —, é perto daqui e não precisaremos andar tanto.” De fato, Anastasia fixara sua morada num lugar que, contraposto à minha pousada, não era tão distante, e depois das fortes emoções que me assolaram de uma só vez por toda aquela madrugada havia me tornado indisposto a seguir zanzando pelas ruas num horário tão hostil. Por mais que eu ainda temesse aquele ser desconhecido que se manifestara a mim na forma de uma garota (hesitava em considerá-la um ser humano de carne e osso, dadas as circunstâncias), podia ser que, de fato, ouvir o que tinha a dizer me proporcionasse quaisquer consequências positivas que fossem – não só isso, senti que nossos fados estavam interligados de alguma maneira, fosse isso bom ou ruim, e seria custoso me desvencilhar de Anastasia a partir de então. Deixei que ela me guiasse até sua residência, e segui em seu encalço – suas vestes negras ondulavam ao vento de uma forma peculiarmente espectral.

***

Em questão de minutos chegamos à pitoresca Rua —, ladeada de charmosas casinhas construídas à moda típica da Europa Central; senti uma ligeira alegria, pois parecia que voltara um século no passado, e tão logo pudesse agradeceria Anastasia por me apresentar a um lugar tão belo – mais belo ainda imerso no escuro, iluminado por lampiões a gás. Pelo menos tinha ela um bom gosto estético, pensei comigo mesmo – mas meus monólogos interiores se interromperam quando chegamos a seu domicílio. Tirando daquele manto em que parecia haver uma infinidade de bolsos uma velha chave prateada, destrancou a porta de madeira e guiou-me para dentro. Transpus temerosamente a soleira pensando que alguma quimera haveria de surgir de um cômodo oculto e me atacar – ou até mesmo que a própria garota se metamorfosearia na tal quimera; em vez disso, fui agraciado com o que mais parecia uma galeria de artes do que uma casa em si.

A primeira coisa em que reparei foi que, por alguma inexplicável razão, a casa parecia ser maior por dentro do que por fora – não que houvesse visto o interior de uma daquelas casas antes, mas como aquele lugar conseguia abarcar uma coleção tão extensa de objets d’art era algo que ia além de minha compreensão. Por onde quer que eu olhasse havia uma profusão de estátuas, grandes e pequenas, de homens, mulheres e divindades (tanto do panteão greco-romano quanto das próprias terras de Anastasia), que de tão realistas e bem-proporcionadas pensei que poderiam despertar de seu pétreo sono a qualquer momento para que interagissem comigo tal qual Galateias redivivas. As paredes estavam adornadas por belas pinturas e desenhos de paisagens, pessoas (que não reconheci) e cenas históricas e mitológicas – pesarosamente, não posso listá-las minuciosamente ao leitor, para que não me desvie em demasiado de meu objetivo. A complementar, no entanto, toda a suntuosidade do local também lá havia mobília finíssima, vasos com encantadoras flores multicoloridas, estantes a transbordar com livros e uma grande lareira.

“Gosta de meus trabalhos? Levei toda uma vida para produzi-los”, disse-me Anastasia, com uma nota de orgulho na voz. Enquanto se despia daquele manto, revelando por baixo sua silhueta de criança pré-pubescente delineada por um fino tecido de malha igualmente negro, pude finalmente admirar seus traços faciais, e a temi ainda mais do que quando não podia vê-los; Anastasia era graciosa, tinha um nariz arrebitado e sua pele de uma alvura de porcelana parecia que se quebraria caso tocada rudemente por mãos humanas indignas. Contudo, seus olhos me assustavam – aqueles enormes e redondos olhos castanho-claros brilhavam como se soubessem de algum segredo de suma importância que ansiassem por compartilhar; eram os olhos de uma coruja, os mesmíssimos “glaucópides olhos” da Minerva dos cantares homéricos. Era quase como se ela conseguisse sondar as profundezas de minha alma com eles – e talvez realmente conseguia.

“Está me dizendo que todas estas pinturas e esculturas são suas!?”, não pude deixar de exprimir minha dúvida. Já ouvira falar em várias crianças prodígio, e modéstia à parte eu próprio fui considerado uma delas dada a boa educação que recebi de meus pais (única demonstração de afeto genuíno que me foi concedida por eles), mas era impossível que aquela garota que mal havia completado uma década de vida tivesse em seu nome uma produção artística de tal escopo. “Quantos anos tem você!?”

“Mais do que aqueles que crê que tenho”, foi sua resposta dada num tom zombeteiro. “Sabe que esta não é minha verdadeira forma, hã? Tampouco este será nosso derradeiro encontro – lhe aviso de antemão que duas vezes mais haveremos de nos ver, e na terceira você e eu nos uniremos em matrimônio.”

“E por que quereria toda e qualquer coisa com alguém feito você!?”, zanguei-me ante tamanha petulância. “Está mesmo em meu destino viver – viver, mas servir como um lacaio de Ericto? Por que não volta de uma vez ao Tártaro de onde veio? Arrependo-me de ter lhe dado ouvidos; vou embora daqui.”

“Tais coisas são muito diferentes das que me dirá na próxima vez”, comentou ela, os enormes olhos faiscando com uma odiosa centelha.

“Posso ao menos saber onde e quando será!?”

“Ali.” Com um medonho sorriso, apontou para uma de suas pinturas, que até então não havia eu notado; era uma paisagem deveras lúgubre e desolada, em lúridos tons de preto, cinza e púrpura. Representava um vale desértico – uma enorme, redonda Lua prateava as abundantes, arenosas dunas e rochas. Ao centro do vale, havia uma bizarra estátua de um anjo em singulares trajes militares – um furioso e vingador arcanjo Miguel paramentado em todo o seu esplendor bélico. Trazia nas mãos uma enorme trombeta, levando-a aos lábios com uma feroz expressão. Por mais que aquela imagem houvesse me deixado tão desconfortável, rechacei-a como uma invencionice daquela garota estranha, a quem já me enfastiara de dar ouvidos – mas à época não tinha eu como sequer imaginar que, de fato, nosso segundo rendezvous aconteceria naquele exato lugar, e na mais tétrica das circunstâncias, tal como ela o descrevera.

“Onde se situa este monumento?”, perguntei eu, tão logo meus ânimos se apaziguaram.

“Não acha que seria mais prazeroso esperar e descobrir por conta própria?”, replicou Anastasia. “Garanto que será um divertido encontro, no entanto – aos pés do anjo vingador, dirá que me ama, tanto quanto diz agora me odiar.”

“E o terceiro encontro?”

“Será ainda melhor.”

“Não pretende me dizer onde e quando se dará também, pretende?” Sua única resposta foi erguer uma das sobrancelhas, finas e arqueadas quais dois pontos de interrogação, com um sorriso condescendente, como se tivesse lhe feito uma pergunta que lhe insultava grandemente a inteligência. Optei por não enfurecê-la, e não toquei mais no assunto. Sondando com mais atenção todas aquelas pinturas, outra atiçou meu interesse por sua simplicidade, em contraste com as temáticas tão sublimes das demais – uma praia ensolarada, com um lindo mar azul ao fundo. Um germe de alegria brotou em meu peito vendo-a, e quase pensei em incluí-la em meu itinerário.

“Ficaria mais feliz se nos encontrássemos nesta praia”, disse eu, tentando ter um mínimo de senso de humor. “Sabe onde fica? Ou você própria a idealizou?”

“Conhecerá esta praia também – não antes de sofrer ainda mais e perder todos aqueles a quem ama para a morte. Fará esta viagem já velho, e a sós; quem sabe encontrará aquela por quem espera.”

“Quem?”

Ela mais uma vez ergueu a sobrancelha, desta vez parecendo levemente irritada. Eu próprio acabei por perceber minha estupidez – afinal só havia uma pessoa por quem esperava, aquela mesma que me fizera lançar nestas peregrinações achando (em vão…!) que dela me esqueceria, e que esta mesma estupidez fizera com que eu a perdesse. Meus olhos se arregalaram, comecei a suar frio e me senti como se houvesse engolido um enorme peso de chumbo que despencou direto em meu estômago; tudo e todos, até então, só queriam me recordar DELA…! “Mas ela…”, comecei a gaguejar, mas Anastasia interrompeu-me com um célere gesto de sua mão.

“Jesu Krist! Pelo que vejo, sua paciência não é um de seus melhores atributos. Spira, et spera! Mesmo a jornada mais longa se iniciou com um único passo.”

“Tais palavras motivacionais mais me parecem sarcasmos saídas de sua boca”, respondi. Ela tão somente deu de ombros.

“Pois bem; se já admirou meus trabalhos, sentemo-nos. Ainda resta muito a dizer, e necessito, tanto quanto você, descansar as pernas e beber algo revigorante. Já pedi a Savitri de antemão para que nos trouxesse um bom café, que só ela sabe preparar.”

“Quem é Savitri!?”

“Em termos leigos, diria que é minha aia – mas tal palavra não faz jus ao relacionamento que temos. Por mais que ela tenha aceito servir como minha grande auxiliadora em tudo aquilo que faço, somos mais do que respectivas empregada e patroa. Creio que muito em breve ela virá com nossas bebidas. Insisto uma vez mais: vamos nos sentar, sim?” E me guiou à elegante sala de estar, tão ricamente decorada quanto o resto da casa, sentando-se numa enorme e fofa poltrona que a deixava ainda mais pequenina e infantil. Quanto a mim, sentei-me encarando-a numa confortável chaise-longue que, de tão larga, poderia quase servir como uma pequena cama.

Logo, uma voz feminina em norueguês clamou de algum cômodo distante; só poderia ser a “aia” de Anastasia, obviamente, pensei comigo mesmo. De imediato viera a nosso encontro uma bela moça que mal havia ter completado seus 20 anos; seus lisos cabelos negros e pele morena, complementando seu nome, denunciavam-lhe a ascendência indiana. Trajava, no entanto, um traje escandinavo típico que julguei destoante. Carregava uma bandeja com duas xícaras e um bule, que depositou com cuidado numa pequena mesa que separava Anastasia de mim; elas duas, então, começaram a conversar entre si em norueguês, e salvo um ou outro termo que deduzi expressar afeto, nada depreendi. Encerrando o diálogo, Anastasia deu um forte e carinhoso abraço em Savitri, gargalhando; de todas as estranhezas com as quais fora bombardeado desde que aquela garota dera as caras, aquela foi a que me deixou mais espantado. Pela primeiríssima vez, aquela criança agia como aquilo que era, ou, ao menos, aparentava ser: uma criança.

Savitri então virou-se para mim, e deu um polido sorriso de dentes branquíssimos. Constatei que uma de suas pálpebras não se abria por completo, dando-lhe uma aparência um tanto quanto tristonha de boneca quebrada. Seu olho bom, no entanto, era de um poético negror de asa de graúna, que causaria inveja às mais formosas de nossas Iracemas.

“É tão bom receber um visitante!”, disse-me ela num inglês pontuado por um leve sotaque indiano. “Ainda mais um de um lugar tão belo como o Brasil.”

“Fico feliz de estar aqui”, menti, um tanto quanto constrangido pelo otimismo da indiana, tão contrastante com o de sua jovem mestra. Se a tivesse conhecido antes talvez conseguiria aturar Anastasia com mais paciência, pensei.

“Minha ama e eu já o visitamos, sabe? Como a cidade de São Paulo é agitada! Tem uma aparência triste, mas ainda assim é tão bonita… Espero muito que possamos voltar um dia…”, e deu uma suplicante olhadela a Anastasia, que apenas lhe respondeu com um sorriso bizarramente maternal.

“Também espero”, respondi, com um calafrio de nervoso.

“Sei que você e minha ama têm assuntos a conversar, então não os incomodarei mais. No entanto, espero que possamos nos rever o quanto antes. Já visitou a Índia, estrangeiro?”

“Infelizmente não.”

“Tomara que o possa um dia… Às vezes sinto falta de minha terra natal. Mas penso que foi melhor eu ter partido, afinal de contas. Fru Anastasia foi muito boa para comigo desde que me abrigou sob suas asas…”

“Tenho certeza que foi.”

“Pois bem! Irei deixá-los a sós.” Após trocar mais algumas breves palavras em norueguês com Anastasia, deu-lhe um beijo à testa, subiu as escadas para o andar superior e não mais a vimos.

“Savitri é proveniente de nossa antiga colônia de Trankebar”, explicou Anastasia. “Ajudei-a num momento de dificuldade, e desde então uniu-se a mim de livre e espontânea vontade. Não sei o que seria de mim sem ela.”

“Então ela sabe quem, ou o que, é você?”

“Tão somente o necessário – aquilo que quero que ela saiba.”

“Há alguém que saberá mais do que isso?”

“Você.”

Engoli em seco. “Não sei se deveria considerá-lo algo bom ou ruim.”

Ela ignorou minha fala. Tomando o bule da bandeja que Savitri nos entregara, encheu uma xícara para si, e a outra para mim. O cheiro forte do café encheu minhas narinas; mas uma incômoda voz interior gritava em meus ouvidos, dizendo para que eu não ingerisse aquela beberagem que, muito provavelmente, estava adulterada, mas ousei arriscar um gole ao ver que Anastasia bebia de sua xícara com tanto prazer. Era, de fato, um café delicioso – se não um tanto quanto forte. Com uma velocidade anormal, Anastasia terminara a primeira xícara, e estava prestes a encher uma segunda, quando me recordei que não estávamos lá meramente para bebericar café.

“Bom – estou exatamente onde e como queria que eu estivesse. O que tinha de tão importante e transformador para me dizer afora uma série de profecias sem pé ou cabeça?”

“Ora! Algumas breves coisas que sei que serão de seu interesse. Posso garantir que farei com que seu precioso tempo valha a pena.”

“Ao menos algo sobre…”, comecei a perguntar, enervado, mas uma vez mais ela me calou com aquele gesto de sua mão. Era quase como se houvesse algo de mágico por trás dele.

“Tudo tem seu tempo – não nos apressemos. Comecemos pelo começo, como de praxe. Pode até ser que no presente momento não me leve a sério, mas eventualmente levará, e tudo aquilo que lhe disser está destinado a acontecer. Como sei disso, não convém agora que saiba; mas até isto aprenderá na hora certa. Preste atenção, pois não me responsabilizo se não me der ouvidos!”

E foi assim que iniciamos o seguinte diálogo, transcrito até onde me recordo:

**********

Até onde sei nunca dormi tão bem em toda a minha vida como naquele dia; acordei com os raios do Sol batendo em meu rosto, sentindo-me feliz e revigorado como se minha felicidade houvesse retornado de uma só vez após um longo período de convalescença – mesmo que houvesse adormecido na chaise-longue de Anastasia inexplicavelmente. Por um lado, não conseguia me recordar de quando foi a última vez que me sentia tão bem comigo mesmo; por outro, a garota muito provavelmente pensara num modo de adulterar meu café e não sabia se devia agradecê-la ou surrá-la por isso. Lembrava-me de que tivemos um longo colóquio por toda a madrugada antes que viesse a adormecer de alguma forma, mas como tudo aquilo se aplicava a mim era algo que não me trazia conclusões palpáveis então.

Estando agora totalmente desperto, quis demonstrar ao menos um pouco de educação dando um “bom dia” a minha hospedeira; nem ao menos pude concluir a primeira sílaba quando vi que, mais uma vez, fora vítima de outro ludíbrio sobrenatural: com exceção da chaise-longue, que permanecia como o único indício de que a noite anterior não fora uma mera alucinação, tudo e todos haviam sumido. Como se por mágica, da noite para o dia toda aquela mobília e o enorme acervo de obras de arte desapareceram, junto com a garota e sua criada, por quem chamei várias vezes sem que fosse atendido por qualquer uma das duas. Olhando assustado para meus arredores, as únicas coisas que podia ver eram teias de aranha e um vazio desolador.

Antes que perdesse o que me restava de sanidade mental, resolvi deixar aquele lugar maldito o quanto antes, sem ao menos olhar para trás – mas enquanto seguia à porta vi que ao menos uma das pinturas não fora levada: a do arcanjo guerreiro a anunciar o ἔσχατος com sua trombeta. Contemplei-a uma última vez com repugnância, ao mesmo tempo que um estranho desejo de levá-la comigo se imiscuía em minha mente; pelo sim, pelo não, deixei-a ali mesmo, receoso de que me atrairia piores agouros – mas Anastasia riria por último quando, em mais um de seus caprichos, fez com que chegasse às minhas mãos um pacote por intermédio de Savitri no mesmo dia em que me preparava para deixar as terras da Boêmia.

Foi durante as primeiras horas da manhã do dia — (dois dias depois de meu caso com Anastasia) que havia arranjado minha bagagem para partir à última parada de meu itinerário; mas não poderia ir embora sem que me despedisse de meu estalajadeiro, o rotundo e bigodudo Sr. Tomáš, que apesar de tudo tanto havia feito para me entreter. Quando estava prestes a ir vê-lo, ouvi baterem à porta de meu quarto; mandei que entrassem.

Era o próprio Sr. Tomáš, carregando sob um dos braços um embrulho. Ao ver-me com as malas todas feitas, perguntou-me:

“Mas já pretende ir embora?”

“Infelizmente sim, Sr. Tomáš. O trabalho de um escritor nunca termina.”

“Ora, é uma grande pena. Adoraria que ficasse mais um pouco – é raro receber hóspedes de seu calibre. Mas que bom que o encontrei antes que se fosse; uma encantadora indianazinha veio até aqui e me pediu para que lhe desse isto.” E depositou o pacote retangular em minha cama. “É uma amiga sua?”

“Digamos que sim…”, menti, perturbado. Já devia suspeitar que Anastasia sabia onde eu morava.

“Que bom que conseguiu fazer amigos aqui. Ainda mais com uma moça tão bonita…! De qualquer forma, espero que nossos caminhos se cruzem novamente algum dia; minhas portas sempre estarão abertas.” Deu-me um abraço e um aperto de mão, se retirando logo após.

Quanto a mim, fiquei a encarar aquele embrulho, com medo de abri-lo e mais ansiando por jogá-lo fora, mas minha curiosidade acabou por vencer-me, e decidi por rasgar seu invólucro de papel pardo e ver com o que mais Anastasia optara por me tentar. Era um quadro – aquele mesmo quadro do arcanjo com a trombeta! À época, pensei em retalhá-lo em pedaços, atirá-lo ao fogo, e em várias outras formas de destruí-lo relegando-o ao esquecimento – hoje, após minha inevitável união com Anastasia, rio-me de minha tolice, e ostento sua pintura orgulhosamente nas paredes de meu quarto. Não apenas isso, como guardo também o bilhete que veio anexado à pintura, contendo tão somente aquela velha palavra que, bem ou mal, adotei como a divisa de meu brasão, e que muito provavelmente foi o Verbo com o qual Deus lavrou o fiat de minha estrela; palavra que, não mais preenchendo meu coração com pavor, serve como a atlante cariátide que suporta os mecanismos de meu Intelecto:

“Hvileløs?”

**********

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 30/04/2015
Reeditado em 30/04/2024
Código do texto: T5225917
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