Além do Arco-Íris

Há fatos que acontecem em nossas vidas e que tentamos de qualquer forma atropelar o tempo para que logo tudo caia no esquecimento. Esquecer, pura e simplesmente não é tarefa fácil, não é página que se rasgue e pronto!! tudo resolvido. Mas, a luta do dia a dia para não me lembrar daquele acontecimento livrou-me de escorregar para o abismo da loucura! A mim e ao meu companheiro de jornada.

O meu propósito era esquecer aquilo para sempre. Todavia hoje passado mais de três décadas resolvi quebrar a minha promessa e escrever sobre ele.

Bem afastada do continente ficava a ilha das pedras.

Por essa condição estratégica, a ilha abrigava uma prisão de máxima segurança. Lá estavam encarcerados pessoas com ideologias contrárias ao regime instalado naquela época e também criminosos comuns, facínoras como Radun, dentre outros. Cumpriam perpétua!

Partimos enquanto uma borrasca se levantava lá no mar. Eu e o sargento Zara. Era uma viagem curta, de uns quinze minutos, já rotina até a Ilha. Porém, assim que decolamos recebemos um comunicado nos alertando sobre uma rebelião na qual empreenderam fuga, Radum, Libéllus e Solares, dentre outros.

Na distância em que nos encontrávamos era possível ver um rolo escuro de fumaça que lentamente subia da pequena ilha. Com certeza, a rebelião já ganhara grandes proporções.

A borrasca por sua vez ia se dissipando, deixando no céu um lindo arco-íris que parecia se posicionar bem à nossa frente. Voávamos a baixa altitude e assim que cruzamos o enorme arco colorido percebemos algo anormal nos instrumentos de navegação. A comunicação foi ficando cada vez mais débil até se anular por completo. Parecia que estávamos voando numa zona morta.

A nave começou a trepidar e a derivar para estibordo sem obedecer aos comandos. Ficamos temerosos, pois a aeronave continuava trepidando como tivesse peneirando e ao mesmo tempo parecia ser sugada por um funil numa velocidade estonteante, fora dos padrões normais que uma aeronave daquela categoria poderia resistir. A fuselagem parecia desintegrar-se junto a um ruído ensurdecedor.

Não sabemos quanto tempo aquilo durou. De súbito a estúpida força foi diminuindo, diminuindo até que tudo se acalmou. O motor não funcionava, mas a aeronave flutuava num denso nevoeiro, nevoeiro que nos acompanhou desde o início do fenômeno até que pousou mansamente num platô próximo a um pântano. Inacreditável, parecia um pesadelo sem fim.

- Que lugar é este? Perguntou um tanto aturdido o Sargento Zara. E eu também aturdido respondi. __Logo saberemos. É uma ilha, porém não é a Ilha das pedras com certeza não é.

Não estávamos sós. Um punhado de pequenos guerreiros que lembravam pigmeus assomou a certa distância de nossa aeronave. Tinham a pele cor de cobre velho e eram secos de carne. Não pareciam hostis pois responderam de forma amistosa aos nossos sinais.

Abri a carlinga e descemos com algum cuidado sob os olhares atentos e curiosos daqueles homúnculos que ainda permaneciam estáticos. Alguns segundos de tensão e todos baixaram suas lanças de pau e pedra. Dois deles saíram do grupo e avançaram alguns metros em nossa direção. Livraram-se das toucas que cobriam-lhes a cabeça, e eram duas mulheres. Falando em mímica, a mais velha delas pediu que os acompanhassem. Há uns novecentos metros dali havia uma pequena aldeia bem primitiva. O único caminho para se chegar até lá era pelo mangue, cheio de armadilhas naturais. Sem nenhuma opção seguimos.

Depois de dura caminhada sobre o lodo e em meio a uma vegetação fechada, chegamos. Na parte mais alta havia uma casa de pedra com três janelas e de dentro saia uma fumaça azulada.

Um velho bem alto, arqueado sobre um báculo nos recebeu. Tinha longos e fartos cabelos brancos arrematado por um chapéu de couro duro. Tinha a face macilenta, olhos azuis e falava a nossa língua. A combinação era perfeita, lembrei-me de Gulliver e a ilha de Lilliput. Entramos.

- O senhor não me parece nada surpreso com a nossa presença. Disse observando cada canto da casa.

- Digamos que de certa forma já os esperava!

- Não entendi a brincadeira! Retruquei.

- Não é brincadeira! Entenderás logo!

Ignorei as réplicas, pois achei que ele estava mesmo brincando conosco ou não passava de um louco. Então me apresentei:

- Sou o tenente Lopek e esse é o sargento Zara.

- Pode me chamar de Burlog, Capitão Burlog. Disse ele apontando com o báculo para que sentássemos.

Sobre uma taipa, havia um improvisado fogão feito com três pedras onde se assentava um caldeirão de barro que fumegava uma espécie de sopa que por sinal cheirava muito bem. Com seu modo meio desajeitado, mas dócil, convidou-nos para cear com ele. Uma cabaça de mel e uma espécie de pão completavam o jantar.

Um castiçal tosco feito de madeira com três velas que pendia do teto escuro sobre a nossa mesa, mal clareava aquelas paredes fuligentas e também aquele rosto grande acolhido pela aba do chapéu. Para sermos cordiais aceitamos uma água.

Enquanto ceava voltamos a falar sobre aquele lugar, sobre a nossa chegada, sobre o nosso futuro...Sobre o mistério de estarmos ali, sem mais, sem menos.

- Em que lugar estamos? Perguntou Zara.

- Atrás do seu tempo! Respondeu de forma natural mastigando sem parar.

- Mas isso não responde nada! Retruquei.

- Estão aqui para nos ajudar... e um dia vocês entenderão isso!

- Então não viemos aqui por acaso? Perguntou Zara num tom de caçoada.

Ignorando o que dissera o sargento ele continuou:

- Alguns piratas chegaram até a nossa ilha. Já saquearam quase tudo o que puderam. Em confrontos acabaram matando muitos ilhéus. Aqui já não se ara a terra faz muito tempo. Os nossos celeiros definham. Logo, logo morreremos de fome. Como vocês podem ver aqui só sobraram velhos, mulheres e crianças. Mas a cobiça maior são as pérolas que há por aqui e para pegá-las é preciso mergulhar bem fundo e somente os ilhéus podem fazer isso, e por essa razão também os escravizam e os matam de tanto trabalho. Logo chegarão até este reduto. Nos encontrarão como urubus sabem da carniça e levarão o que resta de nossas provisões.

- Sim, não deixa de ser uma uma estória de aventura.. Deixa eu entender isso... Disse o sargento.

- É um fato e não uma estória. Replicou o velho.

- E por quê você acha que temos que salvá-los?

- Vocês estão aqui, não é...? O tempo os enviou até aqui.

- Do que você está falando? Está louco?

- Nada de mais! Disse o velho capitão dando de ombros e levantando os braços.

- A nossa aeronave? Ficou lá perto do pântano!.... Insinuei...

- Miserável. Disse o sargento ameaçando o velho com sua arma!

- Por favor! Pediu ele, calmamente.

Encolerizados demos as costas e tentamos sair da casa. Porém, sua voz de trovão e sua pesada mão me deteve:

- Por favor! Acreditem em mim precisamos de sua ajuda. Tudo escrito está. Logo voltarão para casa sem nenhum problema. Mas agora precisamos da ajuda de vocês. Sua nave está no pântano, no mesmo lugar e camuflada com arbustos de mangue, podem ir até lá e constatar, levem nossos guias! Mas, depois voltem para nos ajudar. Sou velho demais para isso e aqui só tem velhos, mulheres e crianças, como vocês acabaram de ver. Por favor. Insistia o velho capitão Burlog. E continuou:__É uma longa história a minha. Fui Náufrago e isso foi há muitos anos, um dos poucos que se salvaram, e estar aqui vivo devo à esses pequeninos....

Não sabemos explicar, mas no momento em que chegamos até a nossa aeronave vimos que tudo estava em ordem. A nave funcionava perfeitamente e o painel indicava uma viagem ainda em curso.. Continuamos a não entender aquilo porém, algo nos amoleceu o coração e voltamos.

Acalmada a situação pagamos pra ver até aonde essa história nos levaria e aceitamos a empreitada.

Na manhã seguinte a aldeia acordou em polvorosa. Não era por causa da tempestade que vinha lá do alto mar. Era por causa dos piratas. Eram eles afinal. Existiam sim!

Nessa altura, os facínoras e a tempestade eram as únicas coisas que cheiravam à realidade. Com nossas armas modernas, não foi difícil enfrentá-los. Por estarem em desvantagem bélica preferiram fugir para uma pequena embarcação que estava fundeada a poucos metros da praia. Na fuga, dois caíram mortos e o rosto de um deles pareceu-me familiar. Os outros três conseguiram chegar até o barco.

A tempestade chegou forte com rajadas violentas provocando enormes ondas que partiriam ao meio um encouraçado em poucos minutos.

Dali corremos para o abrigo, uma pequena caverna, mas a nossa aeronave nos preocupava.

Saímos para chegar à ilha das pedras e chegamos a uma outra ilha que se chamava, ilha das pérolas...que nunca soubemos exatamente onde ficava.

Dois dias depois da tormenta encontraram os corpos dos outros três, roídos de peixe largados numa pequena praia.

Dessa forma, a ilha se viu livre daqueles piratas. Mas antes, os pequenos fizeram um lastro de pedras e amarraram no que sobrara dos corpos e os atiraram de um penhasco. Acreditavam eles que dessa maneira o espírito mal de cada um daqueles homens ficaria lá até que a profundeza do mar os redimisse.

- Será que estamos alucinados tenente?

- Tomara que sim, pois somente isso poderá explicar o inexplicável!

Aquele povo triste voltava a sorrir depois de tanto tempo sob o jugo daqueles homens. O velho Capitão Burlog chorava, mas era de alegria! Celebraram a liberdade como algo mais precioso do mundo. Não trocariam aquela vida por toda pérola que havia naqueles mares.

Gritavam palavras de agradecimento. Dançavam e cantavam ao som de tambores em volta de uma grande fogueira cujas chamas pareciam levar aos céus todos os seus louvores.

Já era madrugada quando nos levaram até a nossa aeronave. Uma procissão de gente carregando suas tochas serpeava a densa mata. - Como voltaremos? Ia pensando enquanto embalados por aquela cantoria seguíamos. Mais tarde entenderíamos porque partimos de madrugada. O tempo estava limpo. Uma extensa poeira de estrelas piscava naquele céu, um céu diferente.

Chegamos. O capitão Burlog tomou a palavra e nos agradeceu muito. Aquele rosto macilento, agora se apresentava corado, alegre!

Esticando seu longo braço apontou-nos uma constelação cujo nome não me lembro, mas que significava: “Buraco ou fenda” e disse, com os olhos marejados:

- Sigam naquela direção e o tempo se encarregará do resto. Não se preocupem com nada, tudo findará bem. Embarcamos, mais uma vez ovacionados por aquela gente.

Novamente ficamos sem entender absolutamente nada. Assim que fechamos a carlinga, a nave começou a flutuar e tudo se repetiu, agora de maneira inversa. A estúpida força agia nos expulsando pelo mesmo funil da entrada. A trepidação.. o medo.. a tensão. Tudo se repetiu!

Não sabemos quanto tempo demorou aquela transição. Mas era fato que de repente voávamos já sobre a Ilha das pedras como se nunca estivéssemos saídos daquela rota. O horizonte agora se apresentava azul, ensolarado. O arco-íris, apenas um resquício a estibordo, como um sinal de missão cumprida.

Assim que pousamos, a rebelião já havia sido debelada. Os fugitivos recolocados em suas celas. Exceto dois, que tombaram na troca de tiros e outros três que conseguiram fugir. A busca continuou ininterruptamente, porém, sem sucesso!

Quando chegamos, tudo parecia ter saído de um livro de ficção, exceto pelo vestígio de barro negro que havia no trem de pouso da nossa aeronave, vários projéteis deflagrados de nossas armas, além do sargento e eu.

Dias depois, os outros três foragidos foram encontrados roídos de peixe largados numa pequena enseada.

Um conto de José Alberto Lopes-®-aj-aj

Maio de 2012/2014

Corrigido em : 23 /05 /22***