Amor, Casamento e Herança
É Possível Comprar o Amor?
(Um caso típico de rejeição amorosa)
Naquela manhã outonal, em que a temperatura surpreendeu pela queda abrupta e repentina, Jéssica despertou, sentindo-se revigorada. Há muito não dormia oito horas seguidas e ininterruptas. O envelope amarelo e desbotado que chegara à tarde anterior permanecia intacto, na mesma posição em que fora jogado, sobre o mármore branco do criado mudo. Lançou sobre ele novo olhar, enquanto um bocejo escapava de sua boca rosada e jovial. A sensação seguinte foi a de fome, incrementada pelo aroma do café fresco que vinha da cozinha. Ergueu-se do leito para o novo dia.
– O que diz a carta do Senhor Pontes? – quis saber a mãe, ao despejar na caneca verde e esmaltada, a preferida de Jéssica, o café quente e fumegante. Sobre a mesa redonda, ornamentada de frutas da estação, em duas cestas de vime entrelaçado, a moça, metida no roupão azul marinho que vestira após o banho, lançou seu olhar terno e sorridente de agradecimento pela rica e apetitosa refeição. Feito um raio, retornou ao quarto, onde se trocou. De volta, servindo-se de alguns morangos, respondeu:
– Vou ler assim que saborear esta deliciosa torta.
– Faça-o agora, enquanto sirvo você. Algo me diz que terá uma grande surpresa – disse a mãe de Jéssica. Cortou uma fatia, depondo-a sobre um pequeno prato. Tirou do bolso traseiro da calça a tal carta e entregou-a a filha. – Poupo-lhe o trabalho de sair de onde está. Vamos saber o que diz? – voltou à cozinha, cessou a chama do fogão, onde um resto de água ainda borbulhava e, retornando, puxou uma cadeira, sentando-se à frente da moça.
Jéssica rasgou com destreza a lateral do envelope e puxou o papel. Desdobrou-o e começou a leitura. A mãe tamborilava o tampo de vidro da pequena mesa, ao mesmo tempo em que se esforçava para ler os lábios da outra que se mexiam durante a leitura.
– Está me deixando curiosa; o que está acontecendo? – a mãe falava desse jeito porque Jéssica variava muito as expressões faciais enquanto lia. Hora piscava os olhos para a outra, hora arregalava-os, mostrando surpresa; estava realmente enigmática.
– Estamos ricas! – gritou, enquanto entregava à mãe a carta.
– Não; não leia agora – disse, puxando novamente para si o papel.
– Minha filha, não faça isso comigo. Não me mate do coração!
– Não, mãezinha, a senhora não vai morrer do coração. Muito pelo contrário: esse coraçãozinho vai viver ainda muitos e muitos anos – completou Jéssica dando, no último pedaço de torta, uma rápida e furiosa garfada. Já da porta falou, ainda de boca cheia e enfiando no cós a carta misteriosa. – Prepare uma roupa bem bonita para mim, a melhor que tiver; hmmm, que delícia essa torta! Quero mais quando voltar.
Dona Benícia, a mãe, acabou mesmo não entendendo patavinas, mas, só a menção “estamos ricas” seria suficiente para transformar o seu dia. A casa de Berenice ficava a duas quadras dali, quase ao fim da rua. Jéssica sentia agora a consequência da desobediência, quando não retornou para pegar um casaco, pois o dia começara frio de verdade. A rua, em plano inclinado, não era calçada e a menina sentia no calcanhar a friagem da lama que escorria e lhe sujava os pés e a sandália preta; mas não se importava com isso, tal a ânsia de chegar à casa de Berenice. Berenice tomava seu café da manhã olhando a rua e, ao ver a amiga lá na ponta do corredor, fazendo sinal e já quase ensopada pela chuva que desabara, levantou-se, pegou atrás da porta um preto e todo velho guarda chuva e saiu em disparada.
– Abre, abre logo! Você não imagina quem me escreveu.
– Não faço ideia. O Joca eu sei que não foi, pois acabaram de acabar.
– Não, não. Esquece o Joca, meu avô, te digo.
– E o que eu sei do seu avô? – respondeu Berenice, fechando atrás delas o portão pequenino de madeira. A chuva aumentava e já se ouvia trovões nos céus. Jéssica, bem magrinha, os cabelinhos loiros, escorridos pela água da chuva a manchar a camiseta branca nas costas, seguia abraçada à amiga – as duas bem apertadas embaixo do guarda chuva – o longo corredor.
– Sua burra! Não se lembra da conversa que tivemos sobre meu avô Pedro?
– E foi ele quem te escreveu?
– Não, não! Morto não escreve. A carta que aqui trago veio pelas mãos do vovô Gaudêncio.
– Mas ele mora no sul! Como veio trazer essa carta para você?
– Deixa de ser burrinha. Quando falo “pelas mãos” é porque foi ele quem escreveu. Vô Pedro morreu na Europa há duas semanas e deixou uma fortuna que você não faz ideia.
– Mas não foi esse tal de vô Pedro que criou você até a idade de quinze anos?
– Até que enfim você entendeu! Isso mesmo. E adivinha para quem ele deixou toda aquela dinheirama? Direitinho dentro da lei, segundo consta aqui na carta.
– Será que é o que estou pensando? – perguntou Berenice, num belo sorriso largo. Entraram. – Espera, vou pegar uma toalha, você parece um pintinho de tão molhada. –Voltou em seguida com um casaquinho de moletom e uma enorme toalha branca. Jéssica começou a se trocar ali mesmo.
– Tem mais alguém em casa?
– Não, mamãe foi com Sandro ao mercado. Pode ficar à vontade.
Jéssica tirou a carta, meio amarrotada e um tanto úmida, que colocara por dentro da blusa para não molhar; a outra arregalou os olhos.
– É esta a carta? posso dar uma olhadinha?
– Sim, pode. Mamãe deve estar furiosa porque não mostrei primeiro a ela. Você não sabe de nada, ouviu bem? Quero que me ajude a tirar uma dúvida.
Berenice era uma morena, com duas vezes o corpo de Jéssica, mas não tão bonita, embora bastante atraente, pelos trejeitos e pela forma meiga de falar, principalmente. Pegou, ávida, o papel, desdobrou-o, pondo-se a ler. Jéssica sentou-se, passando nos cabelos um enorme pente vermelho que pegara de cima de uma estante ao canto da sala. No meio da leitura, Berenice parou, estupefata.
– Eu não acredito! Todo esse dinheiro é seu?
– Continue a ler! Continue a ler!
– Mesmo assim ainda é muito dinheiro; mais do que eu conseguiria gastar em toda minha vida – completou, entregando à amiga a carta.
– Sim; também acho. Mas, acho também que saberia o que fazer com ele. Penso que sou um pouco mais ambiciosa do que você. Mas, não é bem esse o caso, minha amiga!
– O que a preocupa? Com tanta grana...
– Você não leu até o final. Há um detalhe no fim da mensagem, um detalhe apenas, mas que pode fazer toda a diferença entre minha felicidade e minha desgraça. Não, não precisa ler, eu te digo.
– Não sei mais o que faço para fazer render o dinheiro do seu pai; tudo está pela hora da morte! – essas palavras vieram da mãe de Berenice que entrara pela sala mais o irmão, carregados de sacolas do supermercado.
– Tudo bem, filha? O que faz aqui a essa hora, não devia estar no colégio? – perguntou, dirigindo-se a Jéssica. Esta, após uma desculpa, disse, em voz muito baixa, para a amiga:
– Vamos para o seu quarto.
– O que está querendo dizer com “desgraça?”– quis saber Berenice. –As duas refestelavam-se sobre a cama, encostadas em seu espaldar, uma ao lado da outra.
Durante o tempo em que viveu no Brasil, Pedro Raposo estivera, por duas vezes, casado. Após anos, e enriquecer no comércio, enviuvou-se. Conheceu então Sofia, a tia de Jéssica, irmã de sua mãe. Esta, infeliz no casamento e após uma separação atribulada, fora viver na casa de Sofia. O que seria semanas transformou-se em anos; três, para ser mais exato. Foi quando a paixão de Pedro Raposo pela pequena Jéssica se fez presente, e com uma intensidade mais do que peculiar a pai e filha, que dirá entre avô e neta. Um período de licença trouxera para o Brasil, em férias, Romério, sobrinho de Pedro Raposo. Jéssica já tinha a essa época, quatorze anos e Romério, bem mais velho, já ia aos trinta e dois. A paixão foi avassaladora. O rapaz não queria, de jeito e maneira, retornar a seu país de origem após as férias. Saber se a paixão de Romério era correspondida por Jéssica é tão ou mais difícil quanto calcular se vai ou não chover daqui uma semana. Pudesse ser que sim, mas a idade e a inocência da menina não nos permitiam qualquer avaliação.
Após ouvir com atenção a explanação da amiga, Berenice, no seu jeito único e admirável de entender, disse simplesmente:
– O que você tem que pensar é na grana e deixar pra lá esse Romério.
– Mas, você não entende! É condição do meu avô, colocada em testamento, que eu me case com ele para ter direito a minha parte da herança. Eu tenho vinte e dois anos apenas e Romério está com quase o dobro da minha idade.
– Ainda acho que o dinheiro é mais importante. Case-se, se tem que ser assim. E depois separe, ora bolas!
– Quisera que fosse tão fácil, minha amiga. É certo que há outras condições. Vovô não era pouco inteligente; não foi à toa que enriqueceu. Enfim, obrigada. Preciso ir.
II
– Puxa! Vou ficar realmente bonita com essa roupa – disse agradecendo à mãe
e pegando, de sobre a cama, belo conjunto vinho, composto de tailleur e vestido.
– Aonde vai, minha filha? Pretende me causar mais este suspense?
– Desculpe, mamãe! Eu queria saber da opinião de Berenice antes da sua. Mas, não valeu de grande coisa; ela é meio cabeça tonta, mesmo. – Jéssica estendeu à mãe o envelope. A mãe devorara, em poucos segundos, o conteúdo da carta. As mãos tremiam, uma lágrima incontida desceu por sua face corada.
– Mãe! O que tem a senhora? Eu imaginava que essa carta fosse arrancar sorrisos, gritos de felicidade; e a senhora vem com esta cara; com esse jeito!? Não estou entendendo nada!
– Meu amor! – disse Benícia, enxugando, com as costas da mão, a bela face –, você por uma acaso, não se lembra do que aconteceu? É claro que não; era tão menina!
̶ Sim; muito menina, na verdade. Mas não era tão inocente como a senhora podia imaginar, mamãe. Lembro muito bem do que aconteceu, e vou usar o português claro: Vovô transava com a senhora escondido de tia Sofia, não é essa a verdade?
– Meu amor, não fale assim.
– E por que não? Entenda, não sou mais criança; e pare de me tratar como uma idiota! Sei muito bem o que é sexo, mamãe.
Jéssica afastou para cima dos travesseiros, o belo conjunto que a mãe, com todo o cuidado, estendera sobre a cama. Sentaram-se lado a lado. Benícia aparentava agora um pouco mais de tranquilidade; parece que se tocara com as palavras da filha, ditas em tom de grande seriedade. O grande problema era que Benícia tivera mesmo um relacionamento com Pedro Raposo enquanto este vivia no Brasil na companhia de Sofia. Sofia amava-o intensamente e levou para o túmulo a traição. Mas, se tivesse ficado apenas nisto, o resto tornar-se-ia contornável, visto não ter sido segredo para Jéssica o que fizera a mãe; nunca escondera da menina o ocorrido. Mas entre Benícia e Romério havia um segredo, um grande e amargo segredo. E foi o que deixou a mulher tão abalada ao ler a carta.
Jéssica, ao retornar de seu quarto, metida na bela vestimenta, parecia outra pessoa, ainda mais bonita do que em trajes ordinários ou sem maquilagem. Beijou a mãe, acariciando-lhe os longos cabelos pretos; foi um carinho especial porque sentiu que era disso o que necessitava naquele momento. Preferiu, no entanto, não fazer perguntas; não agora. Esperaria o momento oportuno. Na sua perspicácia e jovial inteligência, pressentiu que havia algo errado. Não estragaria o seu dia, que tão bem iniciara. A razão principal, entretanto, ditada pela vaidade que a hereditariedade lhe trouxera desde tenra adolescência, era não querer, por nada, estragar o rímel dos olhos, muito menos o colorido escarlate do batom que estava usando.
Conversaram ainda sobre uma série de outros assuntos, pertinentes e não pertinentes à inesperada herança. Enquanto, na frente do espelho, em tamanho natural, do seu guarda roupa, retocava, à escova, cada fio do cabelo, virando-se para lá e para cá, como se tentando olhar as próprias costas, ia Jéssica ouvindo a mãe e seus conselhos infindáveis. Falou das belezas de Portugal, que conhecera quando mais moça, da suntuosidade e leveza das ruas de Lisboa, entre outras coisas. Sobretudo, preveniu a menina a respeito do dinheiro; do seu benefício, como do cuidado com sua dual eficácia, tanto para o bem quanto para o mal. Jéssica sorria sem dizer palavras enquanto se penteava. Adorava Benícia e a respeitava, principalmente nestes momentos em que procurava aprender. Para não dizer que não se manifestou, o fez quando, mais uma vez, a mulher ameaçou chorar ao mencionar o erro cometido no passado. “Parece velha”, disse ao complementar a bronca, parando o que vinha fazendo, virando-se e olhando com seriedade para a outra.
Não houve, desta vez, suspense. Jéssica iria ao cartório da cidade; queria inteirar-se de tudo que, daquele momento em diante, dissesse respeito a sua parte da herança.
– Não quer que eu vá com você, meu amor? – disse Benícia, depois de acompanhá-la até a porta.
– Não, mamãe; não desta vez. A senhora sabe que eu pouco entendo de leis, mas tenho confiança no professor. Ele jamais faria algo de ruim para nós, e a senhora o conhece ainda há mais tempo do que eu.
Jéssica referia-se a Evaristo, seu professor de física, e que tinha na família duas pessoas cujas profissões estavam ligadas ao ramo de registro de documentos. A confiança a que ela se referia vinha do longo tempo de convivência escolar, visto que Benícia fora também sua aluna na juventude. Sendo possuidora de um negócio por conta própria no ramo de festas e eventos, a mãe de Jéssica deixava sua contabilidade entregue às mãos do Dr. Eduardo Pontes Jr., contador e também advogado. Fora a ele endereçada a carta, junto a uma cópia do testamento, vinda de Portugal; tudo por vontade de Pedro Raposo, por ele já conhecer também Dr. Pontes de longa data. Por sugestão do advogado, ia agora, Jéssica proceder às exigências legais, registrando e autenticando o que necessário fosse, a fim de não ter surpresas mais tarde. O fato de vestir-se tão elegantemente dava-se a querer, desde já, mostrar-se importante e milionária, coisa de mulher vaidosa e visionária; e ela tinha realmente esses traços em sua personalidade.
– Pegue isso – disse a mãe entregando a ela um guarda chuva.
̶ A senhora não está bem da cabeça! Como quer que eu porte um guarda chuva desses usando esta roupa; isto não tem nada que ver!
̶ Mas, minha filha! Eu não tenho outro. E ele é preto; você sabe que preto combina com todas as cores, principalmente com este vinho lindo que está usando.
̶ É preto, mas é velho; onde já se viu? – E desceu os cinco degraus da escadinha que levava até o portão, depois de dar um sonoro beijo no rosto da outra.
Conseguiu, após uma tarde inteira de caminhadas, de idas e voltas, fazer o que precisava e ao que se propunha no sentido de assegurar, de fato e de direito, herdeira de 40% de toda a fortuna do falecido. E por que se considerava Pedro avô de Jéssica? A explicação não é difícil de entender. Parece que gostava mesmo de mulheres muito mais jovens; não deve haver outra explicação para isto. Sendo Benícia a irmã caçula de Sofia, dir-se-ia, um temporão, não precisou muito tempo para o velho encher-se de amores por ela, ao ponto de enviá-la a Portugal para uma de suas fazendas recém-adquiridas. É evidente que, com exceção de Jéssica, ninguém ficou sabendo da história, muito menos da traição. Sofia, muito bem enganada, seguia convicta de que a onda de prosperidade dos negócios da irmã é que lhe havia proporcionado tal gasto extra. Sequer desconfiou que uma pretendida viagem de dias do marido Pedro a Porto Alegre fosse tão somente para visitar o irmão doente. Pura farsa, Pedro estava nos braços da outra, dividido entre a cama de sua bela mansão e os lombos de seus imponentes cavalos. Sendo assim, Jéssica, era pra ele, sua netinha querida. Aos outros, apresentava-se, é claro, como o tio avô, por que qualquer deslize poderia sugerir insinuações mais do que inquietantes, ao velho,
Os últimos raios de sol despediam-se da tarde quase noite quando um carro prateado encostou ao portão da casa de Jéssica trazendo, além dela, outro senhor, o professor Evaristo. A chuva, que havia retornado com maior intensidade, ainda não cessara de todo, o que fez valer a boa oferta do professor; e a menina não dispensou a carona. Desceu do veículo, correndo para debaixo do guarda chuva que a mãe já empunhava ao portão. Após as despedidas e agradecimentos, entraram.
̶ Mãe, a senhora andou chorando novamente! ̶ Disse Jéssica essas palavras enquanto se trocava em seu quarto. Benícia, da porta, procurava disfarçar os olhos inchados, virando o rosto para o lado enquanto conversava com a filha.
̶ Viajo para Lisboa na próxima quarta-feira, a passagem já está comprada. ̶ Enrolada em uma toalha vermelha, Jéssica disse essas palavras caminhando em direção ao banheiro. Não foi fácil para Benícia fazer chegar aos ouvidos da filha a sua voz. A água, a esta altura, caía para o banho de Jéssica e ela ainda cantava. O que fez a mãe repetir a frase, agora pela terceira vez.
̶ Será que você pode me ouvir, por favor? ̶ Cessou então a melodia.
̶ Esqueceu que tem uma mãe? Como pode sair tomando resoluções do jeito que bem entende? E, como assim, comprou a passagem? Não me lembro de ter alguma vez dado a você dinheiro suficiente para um bilhete aéreo, e logo para a Europa.
̶ Foi um presente, apenas isso. ̶ A porta do banheiro começou a ser torpedeada por uma série de socos desferidos com fúria por Benícia.
̶ Abra esta porta!
̶ Abro, assim que terminar o meu banho.
̶ Eu disse “agora”, não me faça repetir. ̶ Jéssica pegou na toalha, enrolou-a ao corpo, que ainda não havia molhado, e abriu a porta, colocando para fora o belo rosto, mas demonstrando naturalidade com uma pitada de sarcasmo e deboche.
̶ Que história e essa?
̶ Não é história; ganhei do Joca. E a senhora sabe que isto não deixa de ser ninharia para ele se comparado ao que já me deu.
̶ Então quer dizer que voltaram? ̶ Isto seria para Benícia enorme felicidade. Se dependesse de sua vontade, Joca e Jéssica já estariam casados. Além de magnífica situação econômica, caíra nas graças da mãe por sua educação e integridade. Mas Jéssica não o amava a ponto de se tornar sua esposa e isto representava enorme frustração para Benícia.
̶ A senhora sabe que não daria certo ̶ respondeu a menina, já debaixo do chuveiro dando agora início ao banho. ̶ Mas é louco por mim; acho que me daria a lua se a pedisse.
A semana transcorreu tensa para Benícia. Não tanto por conta do trabalho como por uma preocupação que não lhe deixava de martelar a cabeça. As noites transformaram-se em terrível agonia. Emagreceu. Jéssica gastava a maior parte do tempo enleada com os preparativos para a tão ansiada viagem. Notou, é claro, a mudança da mãe, que além da transformação física, andava nervosa, pouco falava, o bom humor característico como que lhe houvesse abandonado. Os poucos momentos que Jéssica passava em casa eram enorme suplício para a mulher; ao procurar demonstrar bem estar, não enganava a filha. Esta, durante os momentos do dia que mais apreciava, quer sejam, assistindo na tevê os clipes favoritos, jogada no sofá da sala com os pés para o alto ou mesmo tendo grudado aos ouvidos o fone a lhe transmitir o som de suas músicas, ainda assim se assustava com o barulho que vinha da cozinha. As mãos de Benícia tremiam ao lavar uma louça ou manejar uma panela. Mais de um prato e pelo menos um copo foram para o chão em pedaços em poucos dias.
III
Chegou o dia da viagem. No saguão do aeroporto, com ela estavam a mãe e Berenice, suas duas melhores amigas. O carrinho de prata empurrado por Berenice transportava as duas malas marrom mais a frasqueira rosa, o que arrancou de Benícia um comentário e de Berenice a antecipação da saudade.
̶ Penso que não exagero se disser que está indo morar em Portugal ̶ disse a mãe em tom um tanto forçado, de brincadeira.
̶ Quem manda a senhora me falar tão bem do país?
̶ Você está Linda! Vai me matar de saudade ̶ foram as palavras de Berenice. Vieram com uma lágrima que, sorrateira lhe ameaçava molhar a face.
̶ Bobinha! ̶ Disse Jéssica, beijando o rosto úmido da outra. ̶ Você sabe que não suportaria uma semana longe das duas.
̶ Nem por uma grana daquelas? ̶ disse a mãe, finalmente sorrindo.
̶ Seria um caso a pensar. ̶ As três explodiram em deliciosa gargalhada.
Já no saguão de espera, encontrava-se, a futura milionária, entregue aos próprios pensamentos. Dizer que não se sentia feliz era, certamente, enganar-se. Um mundo desconhecido a esperava. Estava realmente rica; não restava mais dúvida quanto a isto. Entretanto, em seu interior, ainda não batera aquela sensação própria dos milionários. É certo que fizera planos e o dinheiro cairia em mãos certas. Segundo suas perspectivas teria um bom destino e seria bem aplicado; acreditava em seus sonhos e que os realizaria, cada um no momento certo. Saúde e juventude tinha de sobra para isto. Mas, e a felicidade, onde estaria? E Romério? Se quiser o dinheiro, terá que querê-lo, também. E, acima de tudo, o que havia com a mãe? Havia algum mistério por trás de toda essa história e sua ida a Portugal tinha por objetivo, também, descobrir o que era.
Decolou no meio da noite, num voo atrasado que a levou direto ao sono tão logo as costas bateram sobre a poltrona macia do avião. Fê-la, a turbulência, despertar algumas vezes durante a noite, mas o conhecimento teórico do seu significado lhe trouxe a tranquilidade. Num desses despertares, sentiu-se inquieta, não pela turbulência em si, mas porque não havia o que fazer, tampouco o que olhar; nada existia, além da tremenda escuridão, tanto dentro quanto fora da aeronave. Entregou-se aos pensamentos. Ao verificar, no aparelho celular, que tão cedo não amanheceria. Medo, alegria, a antecipação do que encontraria e as pessoas com quem deveria se relacionar em um mundo tão distante do seu trouxeram a preocupação e esta, novamente, o cansaço e o sono. É esta a vantagem de ser jovem, praticamente imune aos efeitos de uma insônia.
As orientações de comando para os preparativos de aterrissagem chegaram com lentidão aos ouvidos de Jéssica fazendo-a, aos poucos, sair de seu sono. A descida da aeronave, trazendo cada vez mais próxima de si a bela e diversificada paisagem de Lisboa, deram conta de uma cidade refazendo-se das consequências de um rigoroso inverno. Durante toda a noite chovera e as ruas, calçadas e prédios denunciavam o fim da nevasca dos últimos dias. A contemplação da vista privilegiada, o panorama, inédito em sua vida, junto à beleza arquitetônica que a lenta descida lhe proporcionava, enchiam-na de prazer, um prazer misturado à ansiosa expectativa. Foi uma das últimas a deixar o avião. Não estava devidamente agasalhada. Metera-se num casaquinho magenta que trouxera por precaução, sem garantir, contudo, a devida proteção contra o frio que encontraria lá fora.
Na plataforma exterior, à espera do taxi, lutava contra o frio da manhã, cruzando os braços, contraindo os músculos; a respiração jogava no ar a brisa esfumaçada. O carro parou a sua frente, ao lhe obedecer ao sinal. O carregador, ao término de sua obrigação, agradeceu com leve inclinação de corpo, embolsando a nota de real vinda de longe; entregou ao motorista um papel com um endereço, fechando com elegância a porta do automóvel.
Enquanto descia do carro, Jéssica não percebera, mas já estava sendo observada. Afastando levemente a cortina de uma das janelas, alguém acompanhava a sua chegada. Distraída com a bagagem e no momento em que abria a carteira para acertar a corrida, ouviu, com suavidade, atrás de si, uma voz masculina. Um hálito fresco e perfumado chegou a alcançar-lhe o olfato.
̶ Não precisa se preocupar. ̶ Era a voz de Romério. ̶ Aqui está, senhor; muito obrigado. Deixe que a ajude com isto ̶ disse, erguendo do chão as duas malas. ̶ Está ainda mais bela do que na última foto que me enviou.
Romério não enviara fotos para Jéssica. Apenas dela recebera algumas, via Internet. Alegou total falta de tempo nas últimas semanas; aproveitou para desculpar-se pela falta de gentileza por não ter ido buscá-la no aeroporto. O trabalho vinha-lhe consumindo todo o tempo. Por isso pediu para que chegasse num domingo; teria um pouco de tempo livre para ela. Jéssica agradeceu com um sorriso tímido, meio sem jeito. Enquanto caminhava ao lado dele, era tomada de tamanha confusão e transporte. A elegância, o cavalheirismo e não menos a beleza física de Romério deixavam-na impressionada. Olhava-o de cima a baixo com aquele sorriso de quem aprecia um galã de novela. Não parecia em quase nada aquele jovem meio bobo e inocente de mais de dez anos atrás. Parece que melhorava com o tempo e, pelo visto, também com a situação financeira, julgando pela magnífica residência.
̶ O que foi? ̶ perguntou Romério, também sorrindo ̶ parece que nunca me viu antes na vida!
̶ Parece mesmo; com que idade está agora?
̶ Faço quarenta no próximo domingo. Está convidada para a comemoração que farei no fim de semana; quero apresentá-la a alguns conhecidos. Sente-se um pouco, deve estar cansada.
Na grande sala de estar, o bom gosto da decoração mereceu elogios de Jéssica. Romério, dirigindo-se ao bar, serviu-se de um drinque, deixando a critério dela o que quisesse beber. Sentaram-se ambos. Durante um bom rasgo de tempo falaram de assuntos diversos relativos as suas vidas, sem que tocassem no assunto da herança, razão da vinda de Jéssica. Mas ela estava aflita e ansiosa. Não demorou muito até começarem as interrogações. Em dado momento, surge na sala uma menina, a filha de Romério. Ele apresentou-a com grande tranquilidade. Oito anos era a idade de Lana, fruto de um relacionamento do rapaz no passado. Jéssica beijou a menina, fez algumas perguntas que se faz a crianças dessa idade e aceitou com prazer o suco oferecido pela ajudante da casa.
Romério respondia às perguntas de Jéssica, fazia outras e a conversa seguia em clima muito agradável até mudar de rumo depois de uma interferência da pequena Lana. “Ele nunca me fala de mamãe”. Jéssica quis saber da razão desse comportamento do outro e as respostas não a faziam totalmente convencida. Perguntou por que deixava ele uma criança tão meiga e tendo tudo para ser feliz, assim, inocente quanto ao seu nascimento. Mostrou a Romério que, se agora não sofria, era por ser jovem e ainda não conhecer da vida, mas que certamente iria sofrer no futuro. Esta mudança de assunto jogou para segundo plano o real motivo da vinda de Jéssica e, quando ele desconversava, agora, querendo falar na herança, era ela quem fazia questão de retornar ao caso de Lana.
̶ O que faz a essa criança; por que não lhe fala da mãe?
̶ Isto não vem ao caso agora. Estou certo de que não foi com este propósito que veio a Lisboa.
̶ É claro que não; desculpe-me.
Não disse mais nada. Lana já havia subido as escadas de mármore branco para o segundo andar; voltara as suas brincadeiras. Jéssica se levantou, em seu rosto, uma palidez indisfarçável tomou o lugar do bem estar e do humor natural e cativante. Sua marca. Quase constante.
̶ Você está bem? ̶ Romério mostrou-se preocupado e chegou a levantar-se para ajudá-la.
̶ Não se preocupe, vou ficar bem; deve ser o cansaço da longa viagem.
̶ Vou levá-la até seu quarto.
Subiram. Mesmo passando por um leve mal estar, não deixava Jéssica de apreciar e impressionar-se com o luxo e a suntuosidade da residência de Romério. Ao fim da escada, um corredor atapetado conduziu-os a um dos muitos quartos que havia no segundo andar; as portas, em estilo colonial, abriam-se em par. Após passarem por três delas, ele escancarou, com ambas as mãos, a seguinte, expondo à menina os seus aposentos. Era um cômodo enorme, com duas camas de solteiro, apresentando certa distância uma da outra; altos dosséis espelhados, acolchoados brancos. Um cortinado azul turquesa dava um toque romântico ao ambiente. Além dos espelhos das camas havia outro, emoldurado de prata, ornando a descomunal penteadeira do lado esquerdo da porta. Os estojos e arrebiques duplicavam-se a uma visão não angular e causavam a impressão de, ao refletirem-se no espelho, projetarem um tamanho além daquele que, na verdade, possuíam.
Jéssica fechou-se por dentro, caminhou e jogou-se sobre um das camas. Os próprios pés trabalharam na remoção das sandálias de tiras que, com um baque surdo, repicaram no assoalho brilhante, quase transparente, de madeira portuguesa. A cortina entreaberta permitia ao sol, em sua fraqueza e timidez, jogar-se para dentro do ambiente e oferecer à visita um pouco de sua luz. Ouviu, ao longe, o som da campainha que seria por certo, a comunicação do almoço. Mas, ela pensava. Pensava e ligava à apreensão e disfarce de Romério as atitudes da mãe. E só havia uma razão para isso; uma razão que, se confirmada, levaria por terra a certeza e a alegria de colocar as mãos naquela fabulosa fortuna: Lana seria filha de Benícia com Romério, portanto, sua irmã. Tendo isto confirmação, estaria na casa do homem prestes a se tornar seu esposo como condição a que recebesse a herança, mas que, em verdade, seria o seu padrasto. Como encarar situação como esta? O que faria? Sentiu, naquele momento, a traição do destino, se é que isto seja possível. Levantou-se e se despiu para o banho. Ao depor sobre a cama uma de suas pesadas malas, evitou o trabalho de revirá-la a procura de uma peça adequada à ocasião. Considerou-se familiar e, como se já o fosse, sacou da mala, por cima de tudo, um short branco e uma camiseta simples com mangas.
IV
Desceu, juntando-se a Romério, Lana e uma tia, que só agora lhe era apresentada. Durante boa parte da refeição manteve-se a conversa ligada aos assuntos de família. Romério abriu um pouco mais para ela a sua vida, falando de seu trabalho, da morte recente da mãe, como de sua ascensão profissional. Falou do casamento assim que retornou do Brasil, das dificuldades que enfrentara e da separação. Sempre que pendiam para assuntos ligados a Benícia, a vinda dela a Portugal, as respostas de Romério pareciam firmes e precisas como se preparado já estivesse. Por certo andou refletindo. Perguntado sobre Lana, já que não tivera filhos com a esposa, deixava transparecer, no entanto, leve insegurança em suas explicações.
Afinal de contas, Romério tinha ciência de que não conseguiria, por muito tempo, manter o segredo envolvendo a maternidade de Lana, fruto de uma aventura, como ele mesmo admitia. As respostas eram curtas, o laconismo surgia nesses momentos apenas, contrariando sua força de expressão e atraente comunicabilidade. Jéssica percebera isto e, como para provocá-lo, tirá-lo da reticência, infringia perguntas mais e mais diretas, o que fez Deolinda, a tia de Romério, intrometer-se no interrogatório. Lana, já havia, a pedido dela, deixado a mesa para se divertir com suas bonecas e brinquedos.
̶ Meus amores, por que não entram logo no assunto! Desde que chegaram, sinto-os rodeando em torno desta conversa que não vai levar à nada. Já não estou mais em idade para meter o bedelho na vida alheia. Cada um deve cuidar de si e assumir as consequências de seus próprio atos; foi assim que aprendi. Mas, vejo-os sofrendo, e sem a mínima necessidade.
̶ Minha tia; o que a senhora está dizendo? Quem disse que estamos sofrendo? Pelo contrário, matamos a saudade de um tempo maravilhoso que ficou no passado. E estamos prestes a colocar a mão em uma fortuna inigualável. Serão três ricaços em muito pouco tempo.
Jéssica tentava trazer, nesse momento, uma travessa de porcelana contendo algumas postas de bacalhau que estava achando deliciosas, segundo havia comentado entre uma e outra frase da conversa. Já havia comido dois pequenos pedaços e estava partindo para o terceiro. Ao erguer a vasilha, que se encontrava um pouco distante, era o momento das últimas palavras de Romério e ela, acidentalmente, bateu em uma das taças de vinho, exatamente a de Deolinda, tingindo parte da toalha branca de mesa.
̶ Perdoe-me ̶ disse, totalmente sem jeito e corando ̶ como sou desastrada!
̶ Não se preocupe, meu amor, essas coisas acontecem ̶ disse a mulher, ajudando-a com a travessa. Em seguida, levantou-se. ̶ Peço licença, se não se importam. Uma siesta espera por mim; coisa de velho, o que se vai fazer? ̶ completou, empurrando para debaixo da mesa a cadeira alta e confortável.
̶ Tenha um bom descanso, dona Deolinda e, mais uma vez, peço desculpas ̶ disse Jéssica. Vendo desaparecer a velha ao atravessar a porta e tomar a direção da escada, dirigiu-se a Romério.
̶ Você não me disse que seriam três a dividir a herança. Para mim seríamos eu e você os beneficiados.
̶ Isto consta do testamento; calculo que o já tenha lido.
̶ Garanto a você que sim – ela respondeu ̶, e mais de uma vez, se quer saber. O documento não fala, realmente, do número de herdeiros. Mas é muito claro quando diz que tenho 40% da fortuna deixada por meu avô.
̶ Disto estou ciente. Apenas não sabia que não mencionava o número de herdeiros.
̶ Como assim, não sabia? Isto está bem claro no testamento!
̶ Simplesmente porque não li o testamento. Estou sabendo dele, isto é, do seu conteúdo básico, mas não o li. Como tenho dito, minha vida anda atribulada. Sou um homem rico, como já deve ter percebido. É obvio que a fortuna de papai irá ampliar, e muito, minhas condições de vida e me fazer tocar todos os projetos que tenho em mente. Em suma, será um dinheiro muito mais do que bem vindo.
̶ Agora mesmo é que não estou entendendo. Então, não sabe...
̶ Não sabe, do que? ̶ Jéssica deu uma resposta qualquer, evasiva, e conseguiu esquivar-se da pergunta.
̶ Posso ver o documento?
̶ É claro! Espere um pouco enquanto vou até o quarto.
Levantaram-se. Jéssica subiu e Romério deixou-se afundar no confortável sofá da sala e acendeu um charuto tirado da caixa de havaianos sobre a mesinha de vidro a sua frente. Entre uma baforada e outra, e um quase cochilo, recebeu das mãos de Jéssica a carta. Ela sentou-se na poltrona, um pouco distante, mas de frente para ele, cruzou as pernas, esperando. Uma gargalhada repentina e estrepitosa assustou-a e encheu de grilos sua cabeça já até ali tão confusa Após minutos de silêncio e exalares de fumo fétido e nauseoso, entre risos, Romério levanta-se e, dirigindo-se a Jéssica, devolve-lhe a carta, retornando para onde estava.
̶ Agora entendo. Isto não se refere a mim; não sou eu, em absoluto ̶ disse, voltando a se sentar
A esta altura mil pensamentos já rondavam a cabeça de Jéssica. O que ele estava querendo dizer? Então não sabia de nada até aquele momento? Mas, nesse caso, por que a gargalhada, o que haveria de engraçado? Segundo o próprio Romério, era ele filho único de Pedro. Pelo menos, era esta a informação que tinha Jéssica, confirmada pela mãe, inclusive. Por trás do riso de Romério estava uma descarga de emoção causada pelo grande mal estar que fora criado. Então era isto. Na mente de Jéssica, até por causa do breve relacionamento que tiveram no passado longínquo, seria ele o candidato a esposo em razão da condição deixada pelo avô em seu testamento.
̶ Sua fortuna está assegurada, não se preocupe. Não sou o único filho do senhor Pedro Raposo. Sei o que deve estar pensando. Não menti para você; jamais mentiria. Eu mesmo vivi até meus trinta e cinco anos de idade na certeza de que era filho único, até quando este rapaz apareceu em nossas vidas. Papai não sabia, tampouco. Foi um relacionamento que ficara no tempo, esquecido. Nem mesmo papai tinha suspeitas da existência desta criança. Mas, tudo fora comprovado através dos exames de praxe. Augusto é meu irmão, meu sangue e amo-o como se tivéssemos nascido e crescido juntos. Pode comprovar o que estou dizendo lendo novamente a carta, embora tenha eu a convicção de que o tenha feito dezenas de vezes. Veja se encontra o meu nome em algum lugar.
̶ Já sei que não, mas... eu pensei...
̶ Pensou errado, minha querida. Eu jamais poderia me casar com você. Não agora. O que houve no passado não passou de uma simples aventura. Aliás, nem aventura foi, pois nada houve, não é verdade? Como poderia desposar minha própria enteada?
Os sentimentos de Jéssica naquele momento eram para lá de confusos. Não sabia se sorria com a confirmação de Romério de que estava realmente rica ou se se entristecia por saber do comportamento da mãe ao esconder dela a verdade; isto um filho dificilmente perdoa. Ela pegou o papel, dobrou-o e enfiou no bolso de trás da bermuda. Romério voltou para o seu lugar, pegou o charuto que deixara descansando na borda do cinzeiro. Enfiando-o na boca, sugou por duas ou três vezes, dando nova vida à brasa já quase morta; sentou-se e cruzou as pernas, encarando Jéssica a espera de sua reação.
Descendo as escadas em correria, surge Lana. Ofegante, apresenta-se a frente de Romério, mas, com aquele carinha de quem já sabe que fez coisa errada.
̶ Quantas vezes papai já não falou para não descer as escadas nessa velocidade. ̶ Ela ficou séria, mas nada respondeu. ̶ O que quer; não vê que estou conversando?
̶ É o meu programa, papai! Está na hora do meu desenho e eu queria ligar a televisão.
Romério agachou-se um pouco para frente, alcançando um pequeno sino na outra ponta da mesa. Foi dizendo antes de balançá-lo:
̶ Numa casa com este tamanho não há outra forma de chamar Henriqueta. Certamente se encontra no quintal essas horas.
O repicar traria a sua presença quem estivesse do outro lado da rua, tal a sonoridade exagerada. Junto a ela, a explicação de Romério por não permitir que qualquer tomada ou aparelho fique ao alcance de Lana.
̶ É muito criança e, não nego, um tanto estabanada. Prefiro não arriscar.
Foi um tempo suficientemente longo que permitiu a Jéssica conferir, agora com atenção e surpresa, sua parecença com Lana. Não ficaram dúvidas, tinha os traços da mãe. Uma leve desconfiança a lhe rondar o espírito, mas agora viera a certeza. Uma longa conversa haveria entre as duas no seu retorno ao Brasil, como uma aproximação com a criança se faria, na tentativa de um laço amoroso durante sua estada em Portugal, o que não seria difícil dada a meiguice e simplicidade de Lana.
̶ E então; quando conhecerei meu futuro marido? – Não tinha outra coisa a fazer senão ir mesmo direto ao assunto e resolver, de pronto, a questão que agora parecia clara.
̶ Augusto chega em dois dias de Londres, onde termina os seus estudos. Falamos ontem à noite ao telefone. Também não vê a hora de conhecê-la; comentei de sua beleza.
̶ Ah, sim! E o que me diz dele?
̶ Pode ficar tranquila. Em termos de aparência física, não haverá arrependimentos de nenhuma das partes. Não chega aos pés do irmão, mas é um rapaz bonito ̶ concluiu Romério, com uma leve baforada e um ar de altivez.
̶ Não sendo, igualmente, tão convencido acho que vai estar bem para mim, disse a futura esposa e milionária.