Medo , vergonha e sabedoria

Sabe aquele papo de turmas, gangues ou galera, coisas bem típicas em décadas passadas? Neste caso, especificamente, foi nos meados dos anos oitenta. Havia muito dessas coisas e era comum em quase todos os bairros, parecia que tudo era demarcado por territórios.

Os jovens de um bairro tinham rivalidades com os do outro bairro e visse e verso. Eram os caras do lado A com os do lado B, os da rua de cima com os da rua de baixo e, por aí vai. Os adolescentes ainda não tinham tanta liberdade a ponto de poder transpor as divisas dos bairros, mas, por acharem que aquilo que viam e ouviam dos mais crescidos, alguns, até já rapazes maiores de idade, eram alguma questão vantajosa, acabavam também entrando na onda e formavam suas rivalidades nos limites do bairro mesmo.

E é numa dessas que vamos entrar agora:

O ano era o de mil novecentos e oitenta e cinco, as ruas, como já dito, eram a " rua de cima e a rua de baixo " , grandes coisas! Eram todos garotos entre seus doze, treze, no máximo uns quinze. Na rua de baixo tinha o campinho de futebol, a cachoeira, o pasto onde empinava pipas e colhiam frutas silvestres ( quantas delícias) além das lendárias caçadas com estilingues.

Na rua de cima, havia a praça , o comércio, a danceteria com suas marcantes matinês ( saudades ) isso fazia toda a diferença, não o comércio, pois adolescentes, raramente eram acionados pelos pais a irem às compras e, sim, os pais ou irmãos mais velhos. Dependendo do ponto de vistas, a rua de baixo era bem mais atrativa que as ofertas da rua de cima.

Assim, as coisas foram acontecendo, os garotos da rua de baixo se incomodando quando os garotos da rua de cima desciam se divertindo e da mesma forma, os da rua de cima quando os da rua de baixo subiam por qualquer propósito, e a situação foi ficando complicada para ambos os lados. Era só se encontrar que já a famosa briguinha de rua estava formada, as vezes, ficavam até hematomas. Coisas que os pais jamais saberiam os motivos. Mas, como em todas as turmas sempre há um valentão, um mais corajoso, e, até o mais medroso, desta feita não tinha como ser diferente. O valentão, o corajoso e o medroso estavam sempre a completar as turmas.

Certa vez, a mãe de um dos garotos da rua de baixo precisou envia_ lo ao comércio pra comprar algo que não poderia ser postergado e não podia contar com o irmão mais velho por motivo de doença.

O garoto se viu num aperto tão grande que não sabia o que fazer , caso encontrasse com os garotos da rua de cima dentro de seus " limites". E agora? Por infelicidade dele quase todos os comparsas estavam indisponíveis naquele momento em que ele mais temia por ter que ir sozinho. Conseguiu apenas a companhia do garoto mais medroso da turma, que se disponibilizou no ato do apelo do amigo; ainda que com muitas ressalvas...

_ Se os caras virem a gente, nós vamos correr de mais.

Assim, foram ao comércio. Na ida, tudo ocorreu bem. Ninguém da turma de cima estava na rua. Mas, a volta... A volta foi um desconforto só. Bem já na esquina, antes que começasse a descida, já se deram de frente com uns quatro rivais. Esses, estrategicamente, os deixaram passar, sabendo que logo à frente haveriam mais dos seus enturmados num espaço livre que existia entre a loja de sapatos e a sorveteria.

Quando os dois infelizes estavam entre os dois grupos, o primeiro lançou alguns objetos

enquanto o segundo, se preparava para o cerco. Era grande o perrengue que os dois se encontravam naquele momento.

_ O que faremos? Perguntou o dito medroso.

_ Vamos ter que correr! Foi a resposta ouvida.

_ Como... Pra onde?

Vamos gritar por socorro! Optou o que, até então, se dizia corajoso. De repente, o inesperado toma forma: aquele garoto medroso toma uma atitude completamente inimaginável que, contando, ninguém acreditaria: Naquela hora, o medo ganhara o reforço de uma dose generosa de vergonha. Ele vira para trás, volta em direção aos quatro da esquina, que era em menor grupo, e, num gesto de desespero, partiu para cima deles, de peito aberto e dizendo:

_ Quem jogar mais alguma coisa em nós, ou, quem quiser brigar pode vir que vou arrebentar todos vocês, e não estou de brincadeira! Ainda que por dentro, ele morria de medo.

O resultado dessa loucura foi impressionante. Os garotos da rua de cima, com seus valentões e tudo, ficaram super assustados, podiam esperar qualquer coisa, menos aquela atitude corajosa e convincente. Todos abaixaram as cabeças e não quiseram pagar pra ver.

Quando o restante da turma chegou, os primeiros já tinham aberto caminho para os dois saírem pela outra esquina que dava acesso à rua de baixo.

Foi notório aquela atitude. Mesmo sendo muito arriscado, mas que funcionou muito bem.

Todos lá na rua de baixo como na rua de cima ficaram sabendo dessa feita e o medroso ia vivendo uma de herói, tanto para os comparsas como para os rivais; mas, para esses, isso não era nada legal.

Certo dia, numa tarde costumeira, a situação se inverteu. Estava um grupo considerável assentado numa esquina da rua de baixo, bem enfrente ao portão da casa do " herói " , e, próximo ao campinho, quando num curto instante, surge um pequeno grupo dos meninos da rua de cima, bem menor que o grupo local, que, por sua vez, estava com seus principais componentes, do mais corajoso aos mais valentões, e, é claro, o mais medroso.

Quando esses quiseram bloquear o caminho, foi a vez de um dos valentões da rua de cima repetir, inesperadamente, a mesma atitude tomada pelo rival na outra ocasião.

Mas, alí não parecia possível que tivesse o mesmo desfecho, porque os ânimos estavam acirrados em demasia por ambos os lados. Foi aí que o medroso voltou a cena. Ele tinha muito medo de ter que brigar com aqueles brigões com fama de maus. E ainda ficou com vergonha de perder todo seu heroísmo. Alguma coisa precisava ser feita e bem rápida para conter uma iminente pancadaria.

Ele se levantou, olhou para um deles, esticou os braços estendendo a mão, e começou a dizer algumas coisas que aos poucos, foi tomando ar de discurso, dizendo:

_ veja aqui! Acho que já é hora de acabarmos com essa palhaçada! Nós não podemos ir às matinês, comprar coisas, tomar sorvete ou simplesmente curtir a praça. Vocês não podem tomar banho de cachoeira, jogar bola no campinho, aproveitar as frutinhas nem empinar pipas no pasto. Nós precisamos ser livres dentro do nosso bairro ou em qualquer lugar do mundo. Eu quero poder ir ao comércio passando pela rua que eu desejar e, por mim, vocês podem vir aqui em baixo fazer o que quiserem, passando por aqui, por alí, por lá. Podem passar até dentro da minha casa, o portão está aberto. O que nós não podemos é insistir nessa besteira de inimizade só por uma rua ser inferior ou superior topograficamente, geograficamente pois, o bairro é o mesmo. Melhor seria se todos fossemos amigos e, logo, brincarmos juntos... Enquanto falava, a mão continuava estendida e havia um grande silêncio no local. Quando uma segunda voz se fez ouvida:

_ Ele tem razão! E outros, dos dois lados da questão foram sucessivamente confirmado e aderindo ao apelo de um que, já a muito tempo era visto e servido de chacota da turma por tratar_ se do mais medroso da rua, mas, que, agora, acabara de tornar o maior pacificador daquela geração de adolescentes.

É muito gostoso quando há um reencontro, mesmo com certa distância e pouco tempo. Sem muitos encontros, mas sempre a diversão é garantida com aquelas histórias lembradas e contadas, com ar de sinceridade e respeito,

Causas de muitos risos e inspiração de novos contos além dos verídicos, como forma de gerar mais gargalhadas . Coisas que só grandes amigos podem compreender.

Jão Martins
Enviado por Jão Martins em 14/04/2025
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