O Rancho na Serra do Mar

Zeca, quando adolescente, manifestava uma paixão extraordinária por aventuras. Conhecer novos lugares e desvendar cada detalhe era mais que um passatempo - era sua verdadeira vocação. Com uma memória impressionante, gravava o caminho, cada marco da trilha, as diversões e as suas proezas.

Seu processo de aprendizagem era colaborativo: primeiro, absorvia conhecimento através dos amigos mais experientes, observando cada detalhe compartilhado. Em seguida, transformava-se em um entusiasmado multiplicador dessas experiências, usando seu carisma natural para convencer outros colegas a participarem das mesmas descobertas.

Um lugar que ele mais frequentou no meio da década de setenta, era um ranchinho na serra do Mar. Uma casa de barro, no meio da mata fechada, onde ele aprendeu muito sobre a fauna e flora da região. E também se divertiu bastante com alguns camaradas que lá levou, por causa das suas manias estranhas.

O rancho ficava no alto de um morro, ilhado por montanhas. Para todos os lados que se olhava, via-se uma intensa mata verde, como se fosse um tapete estendido cobrindo o vale. Quem construiu a casa de barro foram os caçadores, porque a região é rica em diversidade, abrigando uma grande variedade de animais e aves. Essa casa de taipa foi erguida com madeiras amarradas formando um quadrado, rebocada com barro e o telhado de palha. Era pequena, mas confortável: tinha uma cozinha com fogão a lenha, dois quartos, duas camas beliches em cada dormitório, tudo feito de madeira da região e colchão de palhas secas. Os caçadores haviam deixado panelas para fazer comida.

Ao lado desta casa rústica e ecológica, no alto da serra do mar, havia um córrego de água cristalina e gelada. Era a geladeira da casa. Zeca e os seus amigos amarravam as bebidas e os enlatados com um barbante preso na vegetação, dentro d'água, para a correnteza não levar; noutro dia, estava tudo conservado e gelado.

Para chegar até a casa de taipa, tinha que pegar um trem na Estação da Luz, com destino à cidade de Paranapiacaba e descer na penúltima estação da fábrica Elclor. Até o rancho era uma caminhada de umas quatro horas, no meio da mata fechada. Essa caminhada demorava por causa das paradas. No meio do caminho uma parada para beber água, depois um mergulho no rio de água gelada e um banho na cachoeira.

Devido à umidade da serra, à chuva fina constante e ao tempo nublado, diversas mudanças eram observadas na vegetação: desmoronamentos e plantas robustas tombadas no trajeto. Foi ali que, caminhando por aquela floresta, Zeca descobriu ao tocar em alguns vegetais altos, o efeito da poluição na serra do Mar. Os exemplares de grande porte respiravam toda a fumaça das usinas da cidade de Cubatão. Quando Zeca se apoiava num tronco, este estava oco por dentro, sua mão atravessava-o. Xaxim é o que mais tinha pelo caminho, com seu caule fibroso, ereto, espesso e leve. Orquídeas de todas as formas e cores. Palmeiras do palmito. O pessoal da vila de Elclor, comentava que a caça estava proibida, então as pessoas iam para a serra do Mar extrair o palmito. Com o tronco do Xaxim, faziam-se vasos para o plantio. Orquídeas eram extraídas para serem colecionadas ou revendidas.

Zeca, na Serra do Mar, se sentia um bandeirante, um desbravador de floresta, ia à frente abrindo o caminho para os amigos que o seguiam. Com uma vegetação densa, Zeca, com o seu facão, abria a trilha, marcava as árvores tirando uma lasca, para marcar o itinerário da volta.

O que guiava Zeca, por qual trilha a tomar dentro da mata atlântica, até a casa de taipa, não era uma bússola, pois não a possuía, mas sim a sua extraordinária capacidade de recordação visual. Uma vez apresentado o caminho, ele registrava na memória as paisagens: as pedras, as clareiras e os córregos que teria que atravessar no caminho. Seguia em frente e chegava no rancho. Na época havia notícias de que pessoas se perdiam nas florestas da mata atlântica que abrange toda a costa leste/sul, indo desde o estado do Rio de Janeiro até o norte do estado do Rio Grande do Sul. Aviões bimotores que caíram e ficaram desaparecidos.

Na vila Elclor, antes de entrar na mata, o último contato com a civilização, as pessoas alertavam sobre os animais perigosos que havia na floresta: a onça-pintada e as cobras.

Durante os anos que Zeca frequentou a serra do mar, e para lá levou muitos amigos, nunca ocorreu nenhum acidente. Ninguém foi atacado por um animal selvagem ou se perdeu na mata.

Uma vez, Zeca levou o seu amigo de infância Chico, um aventureiro de primeira viagem. Ele passou uma lista do que o amigo precisava levar na expedição: alimentos e bebidas para quatro dias no rancho. Roupas extras para se vestir, toalha e cobertor. E usar uma botina de couro cano curto, para caminhar pela floresta.

O grupo embarcou no trem das 7h na Estação da Luz com destino a Paranapiacaba. Após cerca de uma hora de viagem, chegaram à vila de Elclor, onde aproveitaram para tomar um café reforçado na padaria local. Revigorados, seguiram em uma jornada a pé pela mata, com a expectativa de alcançar o rancho por volta do meio-dia.

Nesta expedição, participaram quatro amigos: os irmãos gêmeos Laércio e Laerte, mas Chico e Zeca. Era a primeira vez de Chico na Serra do Mar. Durante o trajeto, tudo correu conforme planejado, com paradas estratégicas para abastecimento de água, banhos refrescantes no rio e uma deliciosa cachoeira. Chegaram ao rancho no horário previsto, ao meio-dia. Cada um escolheu sua cama e, após desfazerem as mochilas, levaram os alimentos para a cozinha. Enquanto alguns cuidavam do almoço, outros amarraram as cervejas e enlatados com barbante, colocando-as no córrego para gelar. Chico, que não trouxe cervejas nem refrigerantes, comentou que preferia evitar bebidas alcoólicas e açucaradas devido ao excesso de açúcar.

Quando o macarrão com molho de tomate ficou pronto, cada um preparou seu prato e abriu sua cerveja, exceto Chico. Ele foi até sua mochila, pegou um frasco de 400 ml de Biotônico Fontoura e começou a tomar enquanto saboreava a massa. Os outros três riram bastante da cena. Chico, no entanto, explicou: "É um fortificante, para os ossos, regula o intestino, abre o apetite. Eu me sinto mais forte. Vocês deveriam deixar de lado a bebida alcoólica e experimentar o tônico". Durante o dia, ele consumia um frasco inteiro do tônico. Chico não bebia água e passou o carnaval de 1975 fiel ao seu Biotônico Fontoura, enquanto Laércio, Laerte e Zeca curtiram com suas cervejas.

O fortificante Biotônico Fontoura foi criado em 1910 pelo farmacêutico Cândido Fontoura, para fortalecer as mulheres que se sentiam fracas e sem apetites, na cidade de Bragança Paulista, interior de São Paulo.

O escritor Monteiro Lobato, amigo do Cândido Fontoura, consultou-o dizendo que estava fraco e desanimado, o farmacêutico deu-lhe um frasco do biotônico Fontoura. Monteiro Lobato tomou o fortificante e ficou bom, abriu o apetite e sentiu-se melhor e mais animado. Empolgado com o resultado do fortificante, Monteiro Lobato criou o almanaque do Jeca Tatu, que ingeria o tônico e ficava animado para trabalhar. Foi um sucesso, tanto da revista como do tônico.

Na composição do fortificante havia o teor alcoólico de 9%, que abria o apetite e viciava as pessoas na bebida. Em 1932, durante a lei seca nos Estados Unidos da América, o tônico era vendido como um produto natural e os americanos tomavam substituindo o whisky.

O carnaval de 1975 ficou gravado na memória de Zeca. Cada elemento daquela viagem contribuiu para formar lembranças inesquecíveis: a trilha pela Serra do Mar, a exuberante vegetação ao redor, a água cristalina dos rios, o aconchegante rancho no meio da natureza, e claro, a peculiar escolha de Chico — o sempre presente Biotônico Fontoura.

Cada vez que Zeca se deparava com uma reportagem sobre a Serra do Mar, era transportado de volta àquela experiência. O feriado de carnaval trazia à tona a nostalgia dos momentos compartilhados. Até mesmo uma simples foto de uma casa de taipa o remetia ao pequeno rancho escondido na Mata Atlântica. Aquele foi um tempo em que as simplicidades da vida, unidas à forte amizade e ao contato com a natureza, compuseram um capítulo de recordações que Zeca jamais conseguiria apagar ou esquecer.

Depois de muitos anos, Zeca, através de outros amigos, conseguiu o contato de Chico e telefonou para ele. Já passados cinquenta anos, ambos se permitiram uma viagem pelo túnel do tempo, relembrando com carinho os acampamentos que fizeram nas praias, do querido rancho na mata e, claro, das aventuras envolvendo o Biotônico Fontoura. A conversa, recheada de boas memórias, trouxe de volta risadas que não partilhavam há muito tempo. Foi um reencontro que não só restaurou uma amizade antiga, mas também rejubilou ambos com recordações de momentos preciosos vividos juntos.

Zeca, bem-humorado, perguntou: “Chico, você ainda está tomando o Biotônico Fontoura?”

Sorrindo, Chico respondeu: “Que nada! Tive muitas diarréias, vômitos, e sonolência. O médico mandou parar com esse xarope e melhorei. Agora estou no seu time, só bebo cervejas.”

“Como assim, só cervejas?” indagou Zeca, curioso.

“Quando estou indisposto, bebo 2 litros de cerveja. Mas quando estou de boa, são 5 litros. Zeca, vê se aparece para conversarmos, lembrarmos das nossas aventuras e tomarmos uma cerveja. A nossa amizade começou quando ainda éramos crianças e brincávamos na rua de terra. Lembra disso?”

“Claro que me lembro! Amigo Chico, jamais me esquecerei, fiquei contente em falar com você. Depois eu ligo e marcamos um encontro.”

“Zeca, moro no mesmo lugar. Lembra? Fico no aguardo do seu contato.

“Até qualquer dia desse, agente se vê, amigo.”