"Sangue Cigano"
A caravana seguiu durante todo o dia, parando apenas o suficiente para os animais beberem água. Ao anoitecer acamparam próximo a uma vila , e enquanto os adultos faziam o reconhecimento do lugar, as crianças eram mantidas em segurança.
Durante vários dias eles seguiam procurando um lugar onde pudessem se estabelecer e que não fossem visto com maus olhos.
Nos últimos anos a perseguição a sua gente tinha se intensificado, e Estelita tinha medo do que poderia lhe acontecer.
Seu marido e seu filho tinham sido vítimas dessa crueldade, e agora tudo que lhe sobrara era a pequena Aurora.
Tinha pensado em se separar do grupo, mas o que faria?
Era cigana aonde quer que fosse, e ao menos com eles podia se sentir mais tranquila.
Os homens voltaram do reconhecimento alegando que tudo parecia seguro, nenhuma informação sobre perseguição foi ouvida, mas ainda assim ficariam de guarda.
As carroças foram dispostas em círculo e as mulheres prepararam a refeição.
Pela manhã Estelita e outras mulheres foram até a vila, talvez tivessem mais sorte alí, sempre tinha alguém que queria saber seu destino através da leitura das mãos e cartas.
Dentre todas as mulheres da tribo, Estelita era muito boa nisso, aprendeu a arte desde menina e em outros tempos as pessoas costumavam procurá-la em sua tenda, com as perseguições tudo diminuiu e tornou -se um risco.
Enquanto sua mãe ia a cidade, a pequena Aurora brincava com as crianças menores em volta do acampamento.
tinha apenas seis anos e não entendia muito bem o que estava acontecendo, pra ela era normal que mudassem sempre.
Era uma criança alegre, saudável e muito apegada a mãe.
Os dias foram passando e sem que nada chamasse a atenção, o grupo foi ficando.
Estelita sempre buscando ajudar com os afazeres do acampamento que aparentemente era um bom lugar.
E foi exatamente em um dia que tudo parecia bem que eles chegaram.
Aurora ainda dormia, sua mãe tinha saído cedo com outras mulheres em busca de ervas que pudessem ser usadas como remédio.
Os gritos e os tropéis dos cavalos foram ouvidos de longe.
As barracas foram derrubadas e queimadas, os homens tentavam revidar, mas foram contidos pelos guardas.
Mulheres e crianças foram jogadas nas carroças, entre elas, Aurora.
Estelita viu a fumaça de longe, seu corpo estremeceu e sem pensar, correu em direção ao acampamento.
Ao ver seu povo sendo levado e tudo destruído, sentiu que era seu fim.
Quis ir atrás das carroças, com certeza sua filha estava em uma delas, mas foi contida pelas outras mulheres, não havia nada que pudessem fazer, iam se refazerem e buscar informações.
Abraçadas, choraram.
Mesmo sofrendo e sem saber o que fazer, Estelita tomou a frente, eram cinco mulheres e não podiam ficar alí paradas enquanto seus familiares eram levados.
Correram até o que restou do acampamento em busca de algo ou quem sabe alguém ,
Tudo queimava, salvaram algumas roupas e Estelita achou entre os restos da sua barraca um cordão que pertencera a sua mãe e que ela pretendia dá para Aurora.
Lágrimas brotaram dos seus olhos, tudo que seu povo queria e precisava era ser livre.
Foi seu marido, seu filho, e agora sequer sabia o destino da sua filha.
Juntando o pouco que sobrou, e jurando a si mesma que ia encontrá-la, iniciaram uma jornada seguindo o rastro deixado por eles.
Aurora acordou com os gritos, alguém entrava na barraca e agarrando-a pela mão tentou correr.
Viu a mesma ser puxada de volta pelos cabelos e ser levada pra fora.
Começou a chorar chamando pela mãe, e a jogaram dentro da carroça com outras crianças.
Os guardas gritavam o tempo todo, o acampamento virou um caos, e pouco a pouco todos foram presos e deixaram o lugar.
Todos sabiam o que ia acontecer, seriam presos e julgados por feitiçaria, o destino de alguns com certeza seria a fogueira.
E foi exatamente o que aconteceu, os homens e mulheres foram encarcerados na cadeia pública, enquanto as crianças seriam mandadas a um convento para serem catequizadas.
Os homens pouco falavam, as mulheres choravam e chamavam por seus filhos.
E enquanto aguardavam a sentença, eles foram levados, sem que tivessem o direito de um último abraço.
Estelita e seu grupo chegaram a cidade quando já era noite, ficaram escondidas boa parte do dia, assim não corriam o risco de serem vistas.
Fingindo ser uma andarilha, ouvindo aqui e alí, descobriu que os adultos estavam presos e seriam julgados, mas as crianças iam ser levadas a um convento.
Sentiu um baque e um certo alívio, talvez houvesse uma maneira de resgatar Aurora.
Contou as suas companheiras o que estava acontecendo e decidiu que logo pela manhã sairia em busca da sua filha.
Antes do sol nascer ela se pôs de pé, iria só, nenhuma das suas companheiras tinham filhos pequenos, se abraçaram desejando sorte umas as outras e se separaram.
Só havia um convento naquela região, e Estelita esperava estar no caminho certo.
Para não ser vista optou por andar entre as árvores, parando vez ou outra para descansar.
Depois que chegaram a cidade, as crianças foram encaminhadas a casa paroquial, dali seguiriam para o convento.
Aurora chorou por muito tempo, e só parou quando percebeu que sua mãe não ia chegar.
Foram alimentadas, e arrumaram um canto para que dormissem, logo pela manhã seriam levadas.
As irmãs entraram no recinto e distribuiu pão as crianças, Aurora foi separada e levada a outro lugar.
Chorou e esperneou, mas não teve jeito, a irmã a arrastava pelos corredores.
E assim que entrou na sala a entregou aos cuidados de um guarda.
Já havia se passado dias e Estelita finalmente avistou o convento.
Mal dormira e se alimentara durante todo esse tempo, seu pensamento era só um, encontrar Aurora.
Sabia com certeza que as crianças estavam alí, e fez uma pausa.
Não tinha mais nada para comer a não ser algumas frutas que encontrou pelo caminho, evitava fazer fogo, não queria ser encontrada.
Acomodou-se no chão o melhor que pode e ficou observando o convento.
Além daqueles muros, sua filha lhe esperava, não ia decepciona-la, só precisava recobrar as forças e pensar.
Sentada no parapeito da janela, Aurora contemplava a beleza daquele lugar.
Meio sombrio, talvez porque faltasse cores, tudo era sempre tão cinzento.
Contava agora vinte anos, e gostava de andar descalça, podia sempre encontrá-la em meio a chuva, mesmo nos dias frios.
Cresceu praticamente sozinha, seus pais nunca lhe permitiram muitas amizades e as vezes se ressentia disso.
Sua mãe sempre teve uma saúde frágil impedindo assim que tivesse outros filhos, a vida se resumia neles três.
Estelita alisou o vestido, tirou todos os enfeites, cobriu a cabeça com um xale preto e se dirigiu ao convento.
Tocou a sineta do lado de fora e aguardou.
Depois de muito insistir alguém veio abrir.
Uma irmã de olhar desconfiado foi logo dizendo que não podia deixa-la entrar.
Ela humildemente explicou que sua filha fora trazida até alí, descreveu Aurora e ouviu em resposta que não, ela não estava alí.
Sentindo -se desamparada, Estelita pós se a chorar, e a irmã vendo seu desespero e sem saber que atitude tomar, a expulsou.
Estelita voltou durante muito tempo, até que se convenceu que estando ou não, elas não a deixaria entrar.
Com o coração apertado de dor, cortou os cabelos, mudou a roupa e encontrando um velho casebre passou a morar nele.
O mais longe que ela ia do convento era a vila, quando precisava de alguma coisa.
Aurora sempre saía a tardezinha, gostava de fazer caminhadas e sempre distribuía uma moeda quando via alguém necessitado.
Foi andando até a igreja, sempre tinha um pedinte alí,
E de longe ela avistou uma mulher, não parecia uma simples pedinte, trajava uma roupa preta, mas percebia-se que não tinha nenhuma deficiência ou marcas de doenças pelo corpo.
Aurora aproximou e estendeu a mão...
Estelita ia sempre a vila, e para que não questionassem sua fé, passou a parar em frente a igreja sempre que podia.
Continuava sua busca por Aurora, suas cartas lhe diziam que ainda se encontrariam , e mesmo não praticando como antigamente, ela não tinha dúvidas.
Viu aquela jovem caminhar em sua direção, alguma coisa nela chamou sua atenção.
Ela reconheceria sua filha entre muitas, por isso quando ela estendeu a mão, ela aceitou.
Aurora sentiu a firmeza daquela mão,
Foi como se uma corrente elétrica percorresse seu corpo, memórias a tanto tempo adormecidas vieram a tona.
O acampamento, sua mãe, os guardas que a levaram, tudo isso voltou.
Não conseguia soltar a mão, olhou bem fundo nos olhos daquela mulher e percebeu as lágrimas, eram lágrimas de amor, saudades, de fé e esperança.
Estelita se levantou e deu -lhe um abraço.
Entraram juntas na igreja, era o melhor lugar para conversarem, conforme Estelita ia falando Aurora ia relembrando, depois de muita conversa, abraços, choros e sorrisos decidiram que nunca mais se separariam.
Se despediram e marcaram de se encontrar logo que o dia amanhecesse.
Aurora voltou pra casa e percebeu que aquela nunca fora sua casa, ela foi levada para preencher um vazio.
Se sentiu mal com aquela situação, mas não ia abrir mão da sua mãe, quantas noites chamou e chorou por ela, como fizera falta.
Decidida, esperou que o dia clareasse, escreveu um bilhete explicando tudo, temia que eles não a deixassem ir, e que de alguma forma prejudicasse sua verdadeira mãe.
Quando terminou, ouviu o som da carroça, sua mãe lhe aguardava do lado de fora.
Mesmo sem destino certo, estavam juntas novamente e o sangue cigano que corria em suas veias falara mais alto...