Bem-vindos a Gode Reis'
[História anterior: "Get Carver"]
Chovia naquela manhã de sábado, quando o ônibus da Greyhound me deixou numa parada da interestadual, ao lado da estradinha de terra vermelha que levava até a minha antiga comunidade. O clima instável resumia meus sentimentos em estar ali de volta (praticamente seis anos depois da minha partida), e encarar o arco de madeira erguido sobre a estradinha, com a frase "Bem-vindos a Gode Reis' (Comunidade Amish) - Pensilvânia" pintada em azul: por mais que pisar naquele chão me trouxesse de volta a memória dos bons momentos que vivera em meio àqueles campos verdes, por outro lado eu também me lembrava do que ouvira de praticamente todos ali, quando declarara aos 16 anos de idade, que iria viver com uma tia-avó em Greensboro, Carolina do Norte:
- Não há praticamente ninguém da nossa gente lá.
Não feri os sentimentos de ninguém lhes dizendo que talvez exatamente por isso, Greensboro era uma boa opção.
E ali estava eu, após quase doze horas de viagem noite adentro, onde eu mal e mal conseguira cochilar, preocupada em não perder o local da parada (embora o motorista tivesse me dito que descansasse, pois me avisaria). Para a visita à Gode Reis', eu comprara um vestido marrom, bem simples e de segunda mão, que me chegava até os tornozelos, e cheguei a pensar em pôr minha "Kapp" de algodão branco na cabeça, mas desisti. Afinal, eu não fazia mais parte da comunidade e aquilo poderia parecer uma provocação. Apenas coloquei a mochila às costas, vesti a capa de chuva, cobri os cabelos com o capuz e meti o pé na estrada enlameada sob a chuva fina, pronta para encarar pelo menos meia hora de caminhada até o ponto mais externo do assentamento: a loja comunitária, onde os queijos e as compotas produzidos em Gode Reis' eram vendidos aos moradores da região - e eventuais turistas.
Realmente não gostaria de ter demorado tanto tempo para voltar, mas não tinha carro e as passagens de avião eram caras para quem trabalhava como auxiliar num escritório de contabilidade. A comunicação com meus parentes - particularmente minha tia materna, Emma, e seu marido Salathiel, que me haviam criado desde que meus pais haviam morrido num trágico acidente na interestadual, quando eu tinha oito anos de idade - não eram frequentes, pois nem eu era muito de escrever cartas e a comunidade não tinha telefone. Fotos então, eram mais raras ainda, pois o povo de Gode Reis' as classificava como vaidade. Minhas primas às vezes telefonavam, quando conseguiam ir a algum evento fora da comunidade, mas isso também não era frequente. E assim, apenas com informações fragmentadas, os anos foram se passando. Eu mandara um telegrama alguns dias antes da minha viagem, avisando que iria visitá-los, mas embora a mensagem houvesse sido dada como recebida por minha tia, previsivelmente nenhuma resposta fora dada. Dificilmente tia Emma iria até a cidade vizinha apenas para dizer que eu poderia chegar quando quisesse, que ela não iria sair de lá.
Mas eu estava ali mais do que apenas para matar a saudade da parentela, e sim na busca de respostas para dúvidas surgidas justamente pelo meu amor a música, e como isso sofrera um abalo no meu emprego atual, onde o alto escalão parecia ter descoberto um modo de "otimizar" (para usar um termo suave) a produtividade das funcionárias através de comandos subliminares na música ambiente. Por alguma razão desconhecida, eu não só era imune aos tais comandos, como podia ouvi-los nitidamente, algo que não ocorria com minhas inadvertidas colegas de trabalho. E o fato de que em Gode Reis' a música que não fosse executada ao vivo, ser proibida praticamente desde a fundação da comunidade, 150 anos atrás, me veio imediatamente à lembrança. Será que o nosso bom bispo, Amaziah Hertzler, sabia de algo que pudesse me ajudar a desvendar o mistério?
Meu coração deu um pulo de contentamento ao ver o barracão comprido de madeira que era a loja comunitária, surgir dentre as árvores à beira da estrada vicinal. Ao chegar mais perto, vi que havia algo diferente no pórtico frontal, junto à porta de entrada envidraçada: um telefone público. Ao lado dele, na parede, um cartaz manuscrito que só consegui ler quando adentrei o pórtico e finalmente me livrei da chuva. Ali estava o número do telefone (para que alguém de fora pudesse ligar para a loja, ou talvez, dar recado para algum morador) e duas frases: "use somente em caso de estrita necessidade" e "seja breve". Mordi o lábio inferior. Nenhum parente havia me avisado de que agora tinham telefone! Será que consideravam ligar para alguém que havia deixado a comunidade como uma distração perniciosa, fonte de más influências?
Foi com esse estado de espírito, entre o desapontamento e a irritação, que empurrei a porta de vidro e fiz tilintar a campainha presa à mesma. Por trás do balcão, uma jovem usando "Kapp" branco, por onde saía uma mecha loura, ergueu os olhos da revista que estava lendo e abriu a boca espantada.
- Ach du lieva! - Exclamou em dialeto.
Abaixei o capuz da capa e indaguei:
- Você é... ?
- Sua prima caçula, Adriel Verkler! - Identificou-se ela, sorridente. - Nem deve lembrar de mim, eu era só uma garotinha gorducha quando você foi embora!
Agora que ela havia falado, eu me lembrei. E também do quanto eu sentia a falta das minhas primas-irmãs. Tirei a capa molhada para dar um abraço apertado em Adriel.
- Por que não voltou antes? - Indagou ela, antes de me soltar.
- Você sabe qual é a distância daqui para Greensboro? - Indaguei. - Não ganho o bastante para vir de avião, tive que pegar o Greyhound mesmo, estou toda quebrada...
- Tadinha! - Condoeu-se Adriel. - Mas vai ficar quanto tempo? Tenho tanta coisa pra te contar...
Eu só poderia ficar até segunda porque era feriado, mas na segunda mesmo teria que pegar o ônibus de volta para casa, pois terça de manhã tinha que estar no escritório.
- Vai ter que resumir, porque minha estadia aqui vai ser curta... mas espero poder voltar com mais calma, assim que puder tirar férias do trabalho.
E apontando com o polegar para a porta principal:
- E aquele telefone lá, quanto tempo faz que instalaram?
- Uns seis meses... - recordou Adriel. - O bispo concluiu que a gente precisava de um meio de se comunicar com os clientes e com os revendedores, basicamente só nesses casos. Desculpe se ninguém te avisou...
Mordi o lábio inferior.
- Imagino que o bispo deve me achar uma péssima influência para a juventude de Gode Reis'...
Adriel me encarou com ar magoado.
- Não, Kolaiah! O bispo sempre nos lembra como você foi corajosa indo para o mundo, e assim afastou o perigo que ameaçava a nossa comunidade...
Apontei para o meu próprio peito, surpresa.
- Está falando de mim?
- Sim! Porque acha que não respondemos ao seu telegrama? Não queríamos que eles soubessem quando você viria... podem tentar alguma coisa se imaginarem que está aqui!
- Eles... - murmurei, olhando ao redor e já me sentindo paranoica. - Quem são "eles"?
Adriel levou um dedo aos lábios.
- Aqui não... - ela sussurrou. - Quando chegarmos em casa!