Sinta-se em casa

Jant apaixonou-se pela casa, assim que a viu. Derre havia parado o Tatra 603 no meio de uma ladeira (das tantas que existiam em Reeddak), e ali estava ela: quatro cômodos e feita de pedra, telhado de ardósia em vários tons de cinza, parcialmente coberto de musgo esverdeado, as portas e janelas pintadas de um amarelo vivo, e um jardinzinho florido com hibisco, bela emília e begônia-folha-de-videira.

- Pense nessa casa como seu pequeno castelo - sugeriu bem-humorado o motorista, ao ver o rosto da jovem se iluminar quando anunciou que era ali que ela ia residir.

- Não acredito que tenham preparado esse lugar pensando em mim - declarou Jant ao descer, enquanto Derre abria o porta-malas e dali retirava as duas malas de papelão com as roupas e pertences da jovem.

- Não exatamente pensando em você, mas em hóspedes que estejam aqui à serviço - revelou o motorista, colocando um molho com três chaves na mão dela.

- Portão, porta da frente, porta dos fundos - enumerou. - Vá abrindo, que eu levo as malas.

Ela assim o fez, e viu que havia abelhas esvoaçando pelo jardim; isso a fez pensar que talvez pudesse ter uma colmeia, embora nunca houvesse lidado com apicultura e fosse improvável que houvesse espaço ali para uma. Abanou a cabeça, como que para afastar um pensamento intrusivo, e abriu a porta da frente. A decoração coadunava com a aparência exterior da casa: móveis rústicos, piso de tábuas corridas enceradas, fotos em preto e branco de edifícios e antigos moradores da vila, emolduradas e penduradas pelas paredes, um relógio de pêndulo com números dourados em algarismos romanos.

- Acho que vou gostar daqui - aprovou, enquanto Derre depositava as malas no meio da sala.

- Você está entregue - respondeu o motorista, consultando o relógio de pulso. - Eu volto amanhã, às oito em ponto, para prosseguirmos os exames no Berchtop, e você pode tomar café comigo se quiser.

- Vai ser um prazer - assentiu Jant. - Mas eu vou ficar aqui sozinha, sem nada para fazer?

- Não fui olhar no quarto, mas sei que há um rádio e você tem essa estante na sala, com pelo menos duzentos volumes; não é páreo para a biblioteca do castelo, mas vai poder colocar a leitura em dia. E, caso queira algum livro específico ou revista, me diga depois e vejo se tenho como conseguir fora daqui.

- Agradeço! E quanto a dinheiro? Vou continuar recebendo pagamento, agora que não estou mais em Hegestap?

- Ah, bem lembrado! - Derre puxou um cartão plastificado de um bolso do paletó e o entregou à Jant. Ela viu que era uma espécie de documento de identidade, com a foto dela à esquerda, e à direita um número de identificação de seis dígitos, nome completo, filiação e data de nascimento; no verso, o brasão da República, e sobreposto a ele a fase "Ministério de Assuntos Internos"; logo abaixo, em letras vermelhas: "Projeto Berchtop" e um código de barras impresso em preto.

- Se quiser comprar ou pagar por alguma coisa na vila, basta apresentar este cartão e assinar um recibo. Vão debitar diretamente da sua conta no banco. O seu salário vai continuar sendo depositado normalmente, até que o governo decida o que vai fazer com você...

"E o bebê", pensou Jant; mas não verbalizou seu receio.

- Mas dinheiro...

- Enquanto estiver em Reeddak, sem dinheiro - Derre fez um gesto com as mãos, como que cortando esta possibilidade. E antes que ela dissesse mais alguma coisa, acrescentou:

- Agora, vamos ver a cozinha...

Diferentemente da sala e do quarto, o piso da cozinha (da mesma forma que o banheiro) era de ardósia. Tinha um fogão de quatro bocas com gás engarrafado, uma geladeira pequena mas que estava bem sortida com produtos frescos, como constatou Jant, e um armário de madeira que servia de despensa - basicamente contendo embutidos e enlatados. Uma mesa pequena com quatro cadeiras indicava que o aposento também iria servir como sala de jantar.

- Você pode cozinhar para si mesma ou ir ao Berchtop, se cansar do próprio tempero - recomendou Derre. - A reposição do que consumir, é de responsabilidade das duas ajudantes que virão logo mais se apresentar a você. Elas não vão ficar aqui o dia todo, até porque o espaço é limitado, mas há duas camas de solteiro no seu quarto, e se quiser, uma delas poderá ficar com você à noite; principalmente, quando essa barriguinha começar a crescer...

Jant olhou para a própria barriga, e, por ora, o volume ainda não era dos mais conspícuos.

- Espero que haja espaço no quarto para um berço - comentou.

- Veremos isso depois - prometeu o motorista. - Ainda temos tempo.

- E essas... ajudantes... quem são? Disse que eram de Reeddak?

Derre fez um aceno positivo de cabeça.

- Jolmertsje Osinga, a mãe, e Elgertsje, a filha. Provavelmente não vai conseguir entabular uma conversação sobre biblioteconomia com elas, mas devem saber muitas histórias interessantes da vila e arredores.

- E elas... já haviam cuidado de alguém como eu antes?

Derre ergueu os sobrolhos.

- Em qual sentido? Grávida?

Jant hesitou.

- Grávida, sim; mas...

Derre deu de ombros.

- Jant, você não é a primeira mulher grávida do mundo; - minimizou - nesse aspecto, sua gravidez não tem nada de especial. A senhora Osinga tem experiência com partos, e provavelmente vai estar com você diariamente, no último mês. Embora, é claro, quando a hora chegar teremos que levá-la para baixo, na Montanha.

Jant não se atreveu a prosseguir expondo suas dúvidas.

- Está bem, Derre; eu realmente te sou muito grata. Desculpe se faço tantas perguntas...

- Tudo bem - disse o motorista, parecendo satisfeito pela mudança de rumo da conversa. - Agora, com licença que preciso voltar para o castelo e fazer o meu relatório.

- Sim, sei que tem trabalho a fazer... não vou prendê-lo aqui - desculpou-se Jant. - Amanhã às oito, então?

- Amanhã às oito - prometeu Derre.

Quando ficou só, Jant trancou a porta da frente e levou as malas para o quarto. Arrumou cuidadosamente suas roupas no armário, e depois sentou-se numa das camas de solteiro, coberta com uma colcha de retalhos multicolorida. Ao lado dela, uma das malas de papelão, aberta, e dentro desta, um último item ao qual ainda não dera destinação: uma pequena almofada de cetim rosa. Com cuidado, removeu a capa de cetim e depois abriu o zíper que dava ao acesso ao enchimento de algodão da almofada. Ali dentro, escondera seu maior tesouro, contrabandeado da biblioteca de Hegestap: o livro "Como Abrir Portas Por Afinidade"; justamente o responsável indireto pelo seu estado atual.