MULA DE GUERRA
Mula de Guerra
O patriarca da família adquiriu uma jovem mula de dois anos e adestrou-a em todo tipo de serviço da lida roceira. Eram companheiros inseparáveis por todo o vilarejo no coração da Bahia, onde todos eram parentes de variados graus sanguíneos. No ano de 1960 ele já contava com 46 anos de idade quando tomou a decisão de migrar para Oeste em busca de oportunidades melhores, já que a grande estiagem de 1950 desolou sua terra natal. No êxodo da grande família em marcha para o desconhecido se juntou uma parentela considerada, a esposa, três filhos, cinco filhas, vários primos de 1º e 2º grau, três irmãs com seus maridos e os pais anciãos que eram conduzidos em uma carroça puxada pela jovem mula. Na carroça eram transportados os mantimentos necessários para a jornada de dois mil quilômetros da vila Caculé-BA até Rondonópolis- MT.
A mula troteava empinando corpo com o passo macio para não derrubar os decanos que vinha embarcados em meio a sacas de farinha, carne seca e rapadura, eles marchavam do clarear ao entardecer e sempre pernoitavam às margens de um curso d’agua para proporcionar melhores condições de viagem. Depois de muitas luas a comitiva estacionou nas terras devolutas da gleba cascata onde cada família recebeu um lote de vinte hectares de terra, alguns anos depois os pioneiros somavam seiscentas famílias de baianos. Nessa grande marcha a mula de guerra fortaleceu sua estrutura com ganho de força e massa muscular, além de resiliência, resistência e responsabilidade. A mula de guerra enfrentava a selva fechada para a demarcação de trilhas de ligação com os varadouros que interligavam os lotes até a estrada de terra. Sempre alerta no trajeto ela acenava com as orelhas para avisar o cavaleiro sobre presença de feras da terra, malfeitores ou espíritos malignos da floresta. Era imbatível no arrasto do arado sem perder a passada ou desviar da linha, empinava o corpo para esticar o laço de couro preso na chincha. Entrava em quiçaça fechada sem temer o perigo para encontrar bezerros recém paridos, com destreza conduzia a carroça entre dois locais sem a presença de um condutor. Silenciosamente se posicionava durante a caçada na mata e nunca se assustava com o estampido do winchester 44 que ecoava na floresta, nos dias de festa o patriarca a encilhava com os melhores equipamentos, peiteira de argolas douradas, um pelego vermelho a fazia destacar na multidão. A mula e guerra encerrou seus dias na terra no ano em completara trinta e três anos de idade, seu corpo tombou no descampado perto da escola e o patriarca montou vigília por vários dias para impedir que aves de rapina dilacerassem sua carne. Essa dor foi mais forte que perder um filho, o patriarca ficou atordoado com a partida de tão nobre companheira e no final daquele ano também deixou a terra para montar a mula no céu.