A deusa cristã
Vana saiu do café naquela noite e embarcou num táxi, com as orelhas ainda quentes da conversa que tivera com a patroa, quando esta soubera do convite para jantar com os O'Neal.
- Provavelmente, vão servir algum tipo de proteína, então você diz que está de dieta e coma só os acompanhamentos - recomendara Wanda.
Vana apenas balançara a cabeça. Naturalmente que não iria comer carne de animais mortos...
- E não é improvável que perguntem sobre a sua religião, já que a maioria da população de Havana frequenta alguma igreja. O que você vai responder?
Wanda - que não aparentava ser exatamente uma pessoa religiosa - lhe dera uma Bíblia para ler, a qual, felizmente para Vana, era um livro curto. Mentalmente, ela traçou um paralelo entre a descida de Jesus dos céus (e sua posterior ascensão, após ser crucificado) com sua própria situação; concluiu que era melhor não tentar fazer nenhum tipo de proselitismo para a causa animal, pois as consequências naquela estranha realidade poderiam ser bem drásticas.
- Direi que sou uma cristã batizada na água por três vezes, - recitara com ar convicto - que jejuo e trabalho aos sábados... ao menos em meio período.
- Essa parte do "trabalho aos sábados" é o que nos diferencia dos judeus... aquela outra religião de que lhe falei - esclareceu Wanda. - Não é uma alusão somente ao seu trabalho no café, mas a uma série de atividades que os judeus não podem realizar no seu dia sagrado.
- Mas as pessoas REALMENTE jejuam aos sábados? - Questionara Vana. - Certamente, não aqueles que frequentam o seu café...
Wanda não pôde conter um sorriso cúmplice diante da observação.
- Digamos que, depois de quase dois mil anos, as regras foram sendo flexibilizadas. Há quem considere que "jejuar" é tão somente se privar de comer alguma coisa que se goste, aos sábados; outros jejuam entre o nascer e o pôr do sol, mais ou menos como fazem os muçulmanos... uma outra religião... só que no caso deles, isso dura um mês inteiro.
- Os muçulmanos também acreditam neste seu Jesus Cristo? - Perguntara Vana.
- Sim, acreditam, mas para eles Cristo não era o Filho de Deus, mas apenas mais um profeta. Já os judeus, rejeitam totalmente Jesus.
- Imagino que isto não deve ter tornado a vida dos judeus muito fácil, entre vocês - ponderara Vana.
- Não tornou - admitira Wanda. - Na verdade, eles sofreram perseguição religiosa ao longo de toda a História, desde que o cristianismo se tornou a religião dominante no mundo. Há pouco mais de um quarto de século, houve um líder político chamado Hitler, que quis exterminar todos os judeus... e ele quase conseguiu, ao menos na Europa.
- Que horror. Mas imagino que, quando as demais pessoas souberam o que ele estava fazendo, se posicionaram para impedir que isso continuasse.
Wanda lhe lançara um olhar constrangido.
- Bom... não, na verdade. Veja, o cristianismo começou como uma divergência do judaísmo; surgiu justamente porque não se concordava com a visão de mundo dos judeus... as coisas absurdas que estão escritas no texto sagrado deles. Então, as pessoas meio que sabiam o que Hitler estava fazendo... e não se importavam muito. Afinal, não se tratava de CRISTÃOS.
Vana erguera os sobrolhos.
- Vocês fazem coisas admiráveis, e outras absolutamente horríveis - declarara.
- Não me julgue - Wanda erguera as mãos como que em autodefesa. - Também sou uma vítima... ou, ao menos, descendente de pessoas que foram escravizadas e trazidas para este país contra a sua vontade, por outras que se diziam seguidoras de Cristo. Mas, como eu ia dizendo, Hitler finalmente foi parado não porque estava matando judeus aos milhões, mas pelos seus planos de dominação mundial.
- Desconfio que poucos de vocês conhecem de verdade a tal Bíblia que me fez ler - dissera Vana, sobrolhos erguidos.
- É verdade - Wanda assentira. - A maioria apenas decora alguns trechos, que embasam comportamentos julgados aceitáveis. É hipócrita? É. Mas você leu tudo, então agora sabe como deveria ser, na prática.
- Tentarei não ser mais cristã do que os O'Neal - prometera Vana, com um sorriso triste.
- E é de bom-tom levar a sobremesa, já que foi convidada para jantar, e é a primeira vez que os visita.
Vana havia aprendido a fazer torta de limão, e foi exatamente levando a iguaria numa caixa de papelão que ela desembarcou em frente ao portão dos O'Neal. Nem foi preciso chamar ou bater palmas, pois Skipper veio correndo do quintal da casa e começou a latir, saudando-a.
- Sim, eu voltei - disse Vana baixinho para ele. - Não disse que ia voltar?