A prisão aconchegante
Ljumke, uma das assistentes da doutora Ima, acompanhou Jant no elevador, na volta para o Berchtop após uma bateria de exames médicos nas profundezas da Montanha.
- Boa sorte - disse a cientista com um sorriso simpático, ao se despedir de Jant quando a porta se abriu no corredor do restaurante. Jant não soube o que responder, e sequer sabia o que iria lhe acontecer em seguida, mas ao adentrar o salão de refeições, viu Derre à espera dela, sentado ao balcão diante de uma xícara de chá preto. Ele acenou vigorosamente para ela e a jovem caminhou na direção do motorista.
- Com fome? - Indagou ele de modo paternal.
- Sim - admitiu ela, pela primeira vez. Havia saído de Hegestap antes do café da manhã ser servido.
- Vamos tomar o desjejum, então - convidou ele, indicando uma mesa próxima, desocupada.
Sentaram-se, frente a frente, e Derre passou o cardápio para Jant. Mera formalidade, pois o café da manhã era servido numa cestinha de vime com as opções mais comuns de pães, frutas e bolos, e o cliente basicamente optava por chá ou café para acompanhar. Só então Jant percebeu que nunca havia compartilhado qualquer refeição com o motorista; provavelmente ele as fazia junto com a criadagem, mesmo que na prática não fizesse parte da mesma.
- Eu vou querer chá, - declarou, devolvendo o cardápio - com creme.
- Muito bem, senhorita - aprovou Derre com uma piscadela, acenando para chamar a atenção de um garçom. Um rapaz com avental branco sobre o uniforme aproximou-se, bloco de anotações e caneta na mão.
- Dois chás completos, o meu sem creme - especificou Derre.
Enquanto o garçom se afastava para trazer o pedido, o motorista voltou-se para Jant.
- Você provavelmente quer saber o que vai acontecer a partir de agora, e eu gostaria de ter mais informações para lhe dar, - admitiu - mas a verdade é que a sua nova situação abriu uma crise política e estamos aguardando instruções do governo. Todavia, consegui autorização para que te dessem uma casa na vila e é lá que você vai ficar, depois que sairmos daqui.
- Uma casa? - Jant estava genuinamente surpresa. - Você quer dizer... eu vou morar sozinha?
- Isso te assusta? - Questionou Derre, encarando-a de modo analítico.
- Bom... eu nunca morei sozinha; - Jant entrelaçou os dedos das mãos sobre a mesa - pelo menos não num lugar onde não conheço ninguém, nem tenho parentes ou amigos.
Derre balançou a cabeça em concordância.
- Eu compreendo, Jant. Mas você também não tinha amigos nem parentes lá em Hegestap; aqui na vila, pelo menos vai ter muito mais companhia, mesmo que more só.
Jant lembrou-se de Sieu, embora duvidasse que pudesse considerar a criada realmente como uma amiga. Mas era o mais próximo disso que conseguira durante seus meses de permanência em Hegestap.
- Você não vai ficar realmente só; - prosseguiu Derre, tentando animá-la - contratamos duas mulheres aqui de Reeddak, mãe e filha, que vão se revezar para estar com você e cuidar da casa, todo dia, até depois do bebê nascer.
- Para cuidar de mim ou para me vigiar? - Questionou Jant, espalmando as mãos sobre a mesa.
- Você não está presa, Jant - afirmou Derre. - Até a sua situação ser definida, pode circular à vontade pela vila; só não tem autorização para sair dos limites da mesma, é claro.
- Ao menos, é uma prisão espaçosa - suspirou Jant. - Se eu ficar entediada, posso vir almoçar ou jantar aqui, caso não queira ficar em casa? Pelo menos, tem movimento.
- Nada contra - assentiu Derre. - Afinal, todos aqui sabem quem você é, e ninguém vai se aproximar sem ser convidado.
- Não sei se me sinto confortável com a perspectiva de que todos me conhecem e eu nada sei sobre eles - admitiu Jant, olhando para as mesas vizinhas, onde grupos conversavam com maior ou menor animação, aparentemente alheios à presença dela no ambiente.
- Você pode simplesmente ignorá-los - Derre deu de ombros. - Eu repito: ninguém vai te incomodar. Se não tomar a iniciativa de se aproximar de alguém, as pessoas sequer irão te dirigir a palavra.
- Certo - Jant fez um gesto de cabeça. - Não posso controlar os pensamentos alheios, mas se me ignorarem, posso fingir que voltei a ser apenas uma pessoa comum. E Derre...
- Sim?
- Acho que depois talvez de Sieu, você é a pessoa que realmente mais sabe sobre mim; também vai continuar indo à Hegestap. Seria pedir demais que viesse me visitar e trazer notícias, de vez em quando?
Derre abriu um sorriso.
- Não se preocupe, Jant. Eu já teria que continuar a te ver, profissionalmente; mas realmente me preocupo com você e quero o melhor para o seu futuro. Irei visitá-la com satisfação, desde que, é claro, você tenha chá e uma fatia de ontbijtkoek para me receber.
Jant também sorriu, aliviada.
- Grata, Derre. Muito grata. Prometo que vou providenciar o ontbijtkoek.