Salvação nas águas de Porto
As Kombis que interligavam Ipojuca à Porto de Galinhas custavam, à época, um preço alto para um menino de doze anos, e não podendo dispor de outros meios, subtraído por natureza de herança e supérfluos, combinei com Pedro Duque e Jojo de irmos à pé até o mar. Disse-lhes: é só cruzar com cuidado a Usina da Cipó, para não sermos apanhando pelos vigilantes, atravessar a trilha dos Andes, pedir emprestado ao Doda as bicicletas dos seus irmãos, andar mais uns dois ou três quilômetros, e logo chegaremos à Porto. Pedro olhou-me animado, pois era um eterno aventureiro, e Jojo, preguiçoso e roliço como era, fez-me uma cara feia que logo relevei e ignorei de pronto.
Era um longo caminho, e a nossa cidade, com dificuldade de aparta-se do seu passado senhorial, cultivava toda a sua economia no açúcar, características que faziam surgir à nossa frente um vasto aglomerado de terras a servirem de plantio. Casas, havia poucas, e essas por si só eram ocupadas por famílias que há muitos anos perpetuavam seu poderio na região. Tinha a fazenda do seu Coca, filho de Juízes e possuidor da metade do Pernambuco; tinha a do Senhor Tomás, cuja beleza das filhas mais velhas despertavam o desejo popular; e havia também a casa grande, imponente, da Senhora Elizabeth, viúva do Juiz Strauss, o arrependido ariano que chegou até aqui fugido e com medo atroz do Führer — mas agora não é a hora de lhes contar essa história. Voltemos ao meu quase afogamento.
assamos pelo Cipó e Doda, tão benevolente como era, emprestou-nos as bicicletas com a condição de nos acompanhar. Não iria banhar-se, disse, pois não sabia nadar, mas poderia nessa tarefa aumentar sua coleção de Conchas do mar e achou a ocasião muito propicia para isso; enquanto fossemos para as pequeninas piscinas formadas pelos corais, formadas na baixa das marés, escolheria as melhores conchas e as traria no bolso da calça. Achei uma de uma tolice tremenda o Doda privar-se de adentrar na água conosco por um motivo tão banal quanto esse; quantos homens não promoveram empreitadas sem o conhecimento prévio para a causa? E quando nascemos, não nascemos sem quaisquer tutoriais, e mesmo assim não aprendemos a fala, a escrita, e até, alguns, o amor? Uma besteira, Doda! Uma tremenda Besteira!
Entramos, então, apenas Pedro Duque e eu. Jojo, de última hora, resolveu também acompanhar Doda na caça das conchinhas.
O caminho até as piscinas era tarefa fácil. Como a maré estivesse baixa, podíamos caminhar livremente por entre os corais, e isso por minutos a fio em direção ao fundo, sem que o mar nos molestasse com qualquer tipo de receio. Andamos ainda por cerca de vinte minutos até encontrarmos o primeiro sulco formado pela ausência de coral. Entramos. No horizonte à nossa frente, naquela imensidão verde e azul que se estendia de forma imensurável, via meus outros amigos na costa parecerem umas formiguinhas, de tão longe que estavam, enquanto eu e Pedro ora fingíamos ser piratas, ora biólogos em busca de um peixe raro; em outro momento apenas ficávamos boiando, com a fronte virada para cima, as costas sendo salgadas pelo mar, e víamos como nossas pupilas eram tão frágeis em relação àquela estrela solar de modo que não podíamos abrir por muito tempo as pálpebras, sendo obrigados a admirar sem ver, quando como caminhamos nas ruas e nos invade uma perfeita sintonia, e toda uma agitação começa a se formar no nosso corpo, e escutamos o som das primeiras teclas de um piano de cauda, ou de uma sanfona, ao fundo, tocando tão docemente, de forma tão singela, e o mundo parece tornar-se outro. Os sonhos, penso, são todos assim, e esse momento de cara virada para o sol fazia, em redor dos meus amigos, creio ser uma das formas mais reais de apoteose.
— Damascena! Bora, Damascena, que o mar tá subindo.
Achando graça na fala do Pedro, tão apto aos erros de nomenclatura, fui levantando lentamente e dei-me conta do quão cheia estava a maré; quantas horas havíamos passado ali? Não saberia dizer.
— A gente dá um pulo grandão e vai batendo o pé até dar câimbra. Depois vamos nadando normal até lá — disse-me Pedro.
Na época não sei o que me levou a confessar tão depressa meu receio. Talvez na infância seja mais fácil romper com nossos dogmas quando estamos diante de um grande monstro assustador, como ali estávamos, e sabemos que mentira não mais irá nos ajudar e nem nos envaidecer; nessas horas, creio, apela-se para a verdade:
— Pedrinho. — falei.
— Diz.
— Eu não sei nadar, não.
Como ensinara Pedro Duque, fui dando o primeiro pulo, sentindo a gelada água bater-me no peitoral e, como um lambari, fui me debatendo, tentando com meu inútil movimento replicar os remeleixos graciosos dos peixes nadadores, mas começava a sentir que, ao fim do impulso produzido pelo pulo, a próxima ação exigiria uma destreza maior.
Já nas primeiras braçadas os braços cansaram.
Comecei a me debater e desferir violentamente chutes e braçadas na água, em desespero, e quanto mais tentava não afundar, num esforço Hérculeo, mais o cansaço me sufocava, e mais me vinha a sensação de que dali não voltaria nunca mais para casa. O líquido salgado entrava pelas narinas, pela boca, descia terrivelmente pela garganta, e eu tossia, me debatia, desesperava-me por completo. Então era isso, pensei, era isso o fim das coisas, do perfume da cana, do velho Tó, de Vó Trindade; pois se eu deixasse ali de existir, como poderiam perpetuar-se como gente enquanto memória minha? Se era meu fim, era o fim de tudo.
Olhei para o céu: vai acabar, pensei, vai acabar, e no último esforço de sacudir as pernas, de adiar aquele trágico fim, veio-me uma mão pequena, magricela, segurar-me pelos ombros, alocar-me firmemente em suas costas. Eram as mãos salvadoras do Pedro Duque, me puxando até a praia e me deixando, com um sorriso no rosto, de alguém que acaba de realizar um feito imensurável.
Foi a primeira vez em que pensei na morte. E como a morte suscita também a pretensão de algo que a irá sobrepor, foi também a primeira vez em que pensei em Deus.