O Rebelde

No início das aulas, quando o professor entrou na classe, segurava um livro nas mãos. Pouco falou sobre a disciplina de matemática que iria lecionar. Deu mais ênfase aos clássicos da literatura universal. Eram histórias escritas há séculos que ainda estão presentes no nosso dia a dia, sem que as pessoas percebam. A intenção do professor era que todos os alunos interagissem na aula. Ele apresentaria a resenha e faria a leitura do livro. Após enunciar o exercício, daria alguns minutos para que os estudantes resolvessem o problema. Quando terminassem a incumbência, todos deveriam entregar a sua folha avulsa com nome no cabeçalho para o professor corrigir e dar nota. O colegial que tivesse a resposta mais assertiva faria a leitura para sala de aula.

O mestre era um sujeito meio esquisto: alto, magro,cabelos pretos desgrenhados, branco como cal, no rosto os traços do bigode chines revelavam seus meio século de vida. Usava uma camisa branca e no bolso diversas canetas e lapiseiras, uma de cada cor, como velas coloridas, todas enfileiradas na horizontal, como se fossem as graduações dos militares do exército.

Fiquei surpreso com o carisma do instrutor: voz macia, modos pacíficos e o controle absoluto da classe. Os alunos estavam em silêncio, como se estivessem no cinema. Ele parecia mais um palestrante de auto ajuda do que um educador. E eu me questionava: É um professor de matemática ou literatura? Eu desejava cálculos e fórmulas matemáticas, não historinhas para criança dormir. A partir daquele momento, passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele, já vermelho, me disse: Atém-se ou expulsarei o senhor da sala.

Respondi ao desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Eu o exasperava. Não suportava olhar para sua cara branca de vampiro, lembrava o Hermam da família Adams. Ele queria me testar para ver até onde eu poderia aguentar com a minha irritação, era como se fosse um jogo de força de esticar a corda, cada um puxa para o seu lado e quem tiver mais força ganha. Continuava falando sobre os livros, os autores, as histórias, as datas, os nomes dos personagens e quanto mais se estendia nas explicações, mais zangado eu ficava. O professor sabia que estava me aborrecendo, ele queria que eu saísse da sala por livre e espontânea vontade. Mas eu não lhe daria essa vitória de mão beijada. Ria. Debochava. Troçava dos colegas de classe. A minha antipatia crescia porque ele olhava para mim e não dizia nada. Sua indiferença para comigo demonstrava para sala que eu não o incomodava, era como se eu fosse uma porta rangendo e que os alunos deveriam ignorar, isso me deixava colérico. Eu desejava que me expulsasse da classe, mas ele não o fazia.

O primeiro livro que o professor fez a resenha foi O Homem que Calculava, do autor Malba Tahan, nascido em 1885 na Árabia Saudita e traduzido pelo professor Breno Alencar Bianco. Esses dois nomes são os pseudônimos do matemático e escritor brasileiro Júlio César de Melo Sousa. O livro foi publicado em 1946. Malba Tahan foi também o tradutor do Arabe para o Português do clássico da literatura universal “ As Mil e Uma Noites". Em 1954, pela primeira vez na história do Brasil, através de um decreto lei, o Presidente Getúlio Vargas, autorizou que na identidade do escritor e matemático Júlio César de Melo Sousa, tivesse o seu pseudônimo Malba Tahan.O livro narra a história de Beremiz Samir, um viajante com o dom intuitivo da matemática, manejando os números com a facilidade de um ilusionista. O livro já ultrapassou a centésima edição no Brasil, foi traduzido na Espanha, Estados Unidos e Alemanha.

Com o livro O Homem que Calculava em mãos o professor fez a introdução. Certa vez, um viajante a passos lentos do seu camelo pela Estrada de Bagdá, em uma excursão à famosa cidade de Samarra, nas margens do Tigre, conheceu e convidou o matemático Beremiz Samir a seguir viagem com ele até Bagdá. No caminho encontraram numa caravançará, uma estalagem gratuita para pousada das caravanas nos desertos, meio abandonada, onde havia três homens que discutiam calorosamente ao pé de um lote de camelos. O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava. Eles contaram a singular aventura dos 35 camelos que deveriam ser repartidos de herança entre três irmãos árabes. Sabendo que Beremiz Samir era matemático, convidaram-no para efetuar uma repartição que parecia impossível de contentar os três querelantes. Eram três irmãos que receberam de herança 35 camelos. Segundo a vontade do pai, deveria receber a metade, o irmão Hamed Namir, uma terça parte o Harim e o mais moço, a nona parte. Não sabendo como dividir os 35 camelos, a cada partilha proposta seguiam se a recusa dos outros dois, visto que a metade de 35 é 17 e meio.

O professor disse: - Classe, como o matemático Beremiz Samir conseguiu fazer essa divisão se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas e ainda obteve lucro? Escrevam a resposta numa folha avulsa e deixem na minha mesa que irei corrigir o exercício. Atenção classe!! Essa tarefa vale nota de participação na aula. Caprichem!!

Os alunos, cada qual do seu jeito, tentavam resolver o problema. Uns olhavam para o teto pensando na resposta, como se o estuque branco e a luz lhe ajudassem a encontrar o que precisavam. Outros com o cotovelo na cadeira escolar, mão esquerda aberta na testa, lápis na mão direita, parecia que estavam psicografando. Os aflitos esfregavam as mãos na cabeça para ver se abria e surgia a solução. E acomodado na sua secretária o professor no seu silêncio de espectador, aguardava as respostas dos alunos.

Peguei a minha caneta azul, no cabeçalho anotei o meu nome Adriano e escrevi o texto: o matemático Beremiz Samir pede emprestado o camelo do amigo para fazer a conta justa de 36 camelos. O mais velho dos irmãos, que deveria receber metade dos 35, que é 17, receberá metade dos 36 , isto é, 18 camelos. O outro irmão que deveria receber um terço de 35, isto é, 11, irá receber um terço de 36, isto é, 12 camelos. O irmão mais novo que deveria receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e tanto receberá uma nona parte de 36, isto é, 4 camelos. O lucro foi igual para os três irmãos e eles não tiveram de que reclamar. O resultado (18+12+4) são 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram dois. Um pertence ao amigo que emprestou o camelo e o outro por direito ao Beremiz. Fui até à mesa do professor, coloquei o meu escrito junto com os outros papéis e retornei ao lugar.

0 mestre era ágil na correção. Enquanto os alunos entregavam as suas folhas ele ia revisando e após alguns minutos devolveu aos estudantes. Quando terminou as revisões ele disse para os alunos que erraram na resposta. Vou chamar um aluno para ler a resposta mais assertiva para vocês corrigirem o exercício. Adriano, por favor, venha aqui na frente e leia a sua resposta para os seus colegas.

Fiquei pasmo. Todos olhavam para mim. Durante alguns minutos fiz uma reflexão. Se o professor pensa que eu vou passar vergonha, está enganado. Vou mostrar para esse mordomo de vampiro, como se deve apresentar uma resolução de matemática, não deixarei ninguém com nenhuma dúvida, irei ler e escrever na lousa a resposta do exercício. Foi o que fiz. Li decifrando como realizei os cálculos, passo a passo, numa leitura sem pressa para todos entenderem. Quando terminei de ler, a classe estava em silêncio, parecia que estávamos dentro de uma catedral, ninguém perguntou nada e também não houve nenhuma dúvida sobre o resultado do exercício. O que era isso? Eu me questionava e estupefato fiquei parado de pé, como se fosse uma múmia, olhando para os meus colegas de classe. Nisso o professor aproveitou a minha interrupção e disse:

- Adriano, eu estou admirado com sua oratória, agilidade e sabedoria. Meus parabéns! Você já sabe o que vai querer ser quando crescer?

- Não sei! Não tenho nenhuma ideia - respondi. Tinha sim um desejo, queria ser economista, mas não falaria para descartar qualquer comentário ou sugestão.

O professor tentava amenizar a nossa conversa, quebrar o gelo entre nós, mas eu não queria diálogo. Não suportava aquela voz macia de conselheiro da moral e dos bons costumes.

- Adriano, você tem o mesmo nome de um imperador de Roma. Ele admirava a cultura grega. Era versado em filosofia, poesia e compôs alguns poemas. Gostava de arquitetura e projetou diversas edificações. Você sabia e conhece a sua história?

- Não professor, eu não conheço esse tal de Adriano. O único Adriano que conheço é um jogador de futebol. Adriano, o Imperador da Inter de Milão!