O apóstata
Eusébio de Cesareia foi levado até o imperador, que estava supervisionando a construção da nova capital do império romano, Constantinópolis. Constantino, acompanhado de um séquito de engenheiros e servos em meio ao canteiro de obras, recebeu com satisfação o bispo vindo da Palestina.
- Estava só aguardando a sua chegada, preciso lhe comunicar algo de extrema importância!
Eusébio nem cogitava o que poderia ser, mas as intenções do imperador logo começaram a ficar claras quando adentraram a tenda de onde Constantino acompanhava o andamento das obras; ele reconheceu de imediato o homem de barba branca e expressão severa, que aguardava de pé ao lado da cadeira curul revestida de marfim, que logo foi ocupada pelo imperador.
- Acredito que já conheça o bispo Bailnam de Antióquia - disse Constantino à guisa de introdução.
- Sim, Augusto César - admitiu Eusébio. - Eu o conheci no conselho episcopal em Cesareia que...
- Que me excomungou - atalhou altivamente Bailnam. - Mas em sua defesa, Eusébio, a sua foi uma das poucas vozes que se levantaram em minha defesa. Por isso recomendei expressamente o seu nome para o imperador.
- Recomendou? - Repetiu Eusébio aturdido.
- É melhor vocês se sentarem - sugeriu Constantino, indicando dois tamboretes almofadados diante do seu trono móvel.
Frente a frente, os dois bispos se encararam. Bailnam prosseguiu com sua exposição, sob o olhar atento de Constantino.
- O imperador é um grande defensor da fé em Jesus Cristo e deseja sinalizar isso de maneira ainda mais clara para todos os seus súditos - disse Bailnam.
Eusébio ergueu os sobrolhos. Será que o imperador pretendia se converter ao cristianismo, numa cerimônia pública?
- Isso não significa dizer que irei me converter publicamente ao cristianismo - comentou casualmente Constantino, como se tivesse acabado de ler os pensamentos de Eusébio. - Um imperador tem que cometer muitos atos reprováveis, do ponto de vista da religião, e quero deixar essa parte da conversão para quando estiver com um pé na cova. Mas continue, Bailnam.
- Obrigado, Augusto César - condescendeu Bailnam, com um aceno de cabeça. E encarando Eusébio:
- Como sabe, tem havido muitas dissensões no seio da igreja, e aqueles, como eu, que defendem que Marcião estava certo e que temos que refutar de uma vez por todas o peso morto das tradições judaicas, são perseguidos.
Eusébio ergueu a mão, timidamente:
- Eu...
- Um momento - atalhou o imperador, dedo indicador erguido, fazendo com que os dois bispos se voltassem para ele. - Esse ponto que o bispo Bailnam acabou de citar, é de extrema importância: judeus! Eu sou um imperador tolerante, defendo a liberdade religiosa, mas confesso que tenho grandes restrições com relação a essa seita abominável, que não só condenou Jesus Cristo, nosso Salvador, à morte, mas que ainda hoje persegue seus seguidores, mais até do que meus próprios concidadãos romanos.
- Precisamente, Augusto César - assentiu Bailnam gravemente. - Chegou a hora de proclamar, em alto e bom som, que...
Como se fosse uma deixa, Constantino apontou para Eusébio e exclamou:
- Marcião tinha razão!
E encarando o bispo de Cesareia, perguntou com firmeza:
- Você está conosco nessa?
- Nessa... - Eusébio olhou estupefato para Bailnam, como quem pede socorro.
- O Augusto César irá convocar um concílio em Niceia, onde será declarado que a verdadeira fé em Jesus Cristo é a dos seguidores de Marcião - proclamou Bailnam em tom triunfante. - Todas as demais correntes receberão uma ordem imperial de cessar e desistir, e serão recebidas com júbilo, de volta ao seio da verdadeira igreja!
- E... aquelas que não se submeterem? - Questionou Eusébio, já antevendo a hecatombe que se avizinhava.
- Deixe que essa eu respondo - atalhou novamente Constantino, cruzando uma perna, mão apoiada no joelho. - Terão suas propriedades confiscadas... e seus líderes terão que partir para o exílio! Chega de bagunça, quanto menos controvérsias religiosas tivermos, melhor. E Marcião ainda fez um excelente trabalho, nos dando um texto bíblico conciso, coeso, sem nenhuma interferência judaica, e sem mitos de criação do mundo que podem nos colocar em conflito com religiões de outros povos do império. Daqui pra frente, vai ser um Deus, um imperador e uma só Igreja!
- A única Igreja verdadeira! - Exultou Bailnam, erguendo os punhos cerrados para o alto.
Eusébio sabia que não seria o passeio no parque que Constantino e o seu conselheiro espiritual queriam fazer parecer, mas ele era só um homem. O que poderia fazer contra o plano de dominação que se impunha?
- Humildemente, me curvo diante da vossa sabedoria - capitulou Eusébio, fazendo uma vênia com a cabeça para o imperador.
Constantino abriu um sorriso e estendeu a mão, indicando Eusébio para Bailnam.
- Você não acha que acabamos de ouvir o futuro bispo de Roma?
Bailnam cofiou a barba branca, e fez um comentário que soava quase condescendente:
- Pode ser, Augusto César... Roma está em decadência; eu, por mim, prefiro ficar com alguma cidade aqui na Ásia mesmo.
- Você é o futuro, Bailnam - parabenizou-o Constantino, ampliando ainda mais o sorriso.