Tiro Ameixa com Sal. As aventuras dos meninos da periferia.

Aqueles que não viveram uma infância nas ruas jamais entenderão minhas travessuras. E aqueles que nunca se apropriaram de algo sem permissão ficarão surpresos pois, durante a minha infância, costumava pegar frutas no pomar.

No bairro onde morava havia uma igreja que dominava um quarteirão. Nesse vasto espaço estava localizada a escola que fui alfabetizado. As salas de aula eram casas de madeira e tinha um pátio de terra compactada onde as crianças podiam se divertir durante os intervalos. O local também abrigava um salão de festas, palco frequente de concertos musicais e peças teatrais. Atrás do templo encontrava-se um seminário, um campo de futebol e um encantador pomar que emoldurava o gramado. Este quintal era repleto de árvores frutíferas com abacateiros, goiabeiras, jabuticabeiras e ameixoeiras.

No recreio das aulas, meus colegas e eu costumávamos brincar passando longos períodos admirando o pomar ao fundo do pátio. Debates acalorados sobre nossos frutos preferidos eram comuns, com nossos rostos colados nos espaços da grade de ferro pintada de verde, onde expressei a minha preferência pela ameixa, enquanto meu amigo Chico escolhia a goiaba. Olhávamos através da grade do pomar e nota vamos várias frutas caídas no chão, a apodrecer, os pássaros a comê-las enquanto nós dois e todas as crianças da escola ficávamos desejosos de provar uma fruta que nos era negada. O sacerdote da paróquia não as colhia, nem oferecia às pessoas carentes e sequer permitia que as crianças da escola ou da rua entrassem para recolher.

No pomar as ameixoeiras destacavam-se pela sua abundância de ameixas amarelas e brilhantes sob o sol. Eu estava maravilhado com aquelas deliciosas frutas, desejando-as e salivando com muita vontade de as provar. Então surgiu o desejo de possuir aquelas ameixas por mim mesmo. Ansiava por elas de qualquer jeito. Se o padre estivesse presente ou alguém do seminário, eu tentaria pedir algumas, sabendo que não seriam cedidas e que me expulsaria como se fosse um moleque de rua. No entanto, havia outra forma de as obter sem educação.

Olhamos com atenção e não avistamos ninguém à nossa volta. Os dois cães pastor alemão do seminário estavam contidos. As persianas das janelas da escola estavam fechadas por causa do dia ensolarado. Saltar a grade de ferro do pátio do colégio logo foi descartada, porque haveria o risco de sermos vistos e levaríamos uma suspensão das aulas. Com o meu amigo Chico, chegamos à conclusão que a única maneira seria contornar a escola e escalar o muro do seminário.

Era uma rua tranquila, com tráfego escasso de passagem de carros. Em meio à quietude do pomar, o único som presente era o sussurro do vento entre as árvores. Meu desejo por aquelas ameixas intensificava-se. Ansiava por colhê-las. Queria sentir seu aroma, apreciar sua textura e degustar seu sabor.

Não pude resistir por mais tempo. Um plano começou a se formar dentro de mim, movido pelo anseio de colher as ameixas. Como estrategista, percebi que este local para nós dois era um desafio a enfrentar e decidimos dividir as nossas tarefas. O meu amigo Chico ficou numa função crucial: monitorar as janelas da escola, prever a possível chegada do padre e manter-se vigilante em relação aos pedestres na rua. Enquanto isso, eu escalaria a parede irregular, contando com a agilidade do meu corpo de menino. Apanharia as nossas frutas preferidas e traria para nós comermos.

Pulei o muro e me infiltrei no pomar. Cauteloso, eu me movia sobre as frutas apodrecidas, como se fosse um tapete estendido pelo chão. Parecia uma eternidade chegar às ameixoeiras, meu coração batendo a mil. Quando olhei para trás, vi meu amigo Chico; ele não conseguiu resistir e transpor o muro para me acompanhar na colheita das frutas no pomar.

Eis-me diante dela. Eu hesito por um momento, pois de perto ela é ainda mais bela. Tiro minha camiseta e a transformo em uma sacola para recolher as frutas. Começo a colher e saborear as ameixas. Chico faz o mesmo, escolhendo e degustando goiabas e jabuticabas. As frutas que nós dois colhemos, com as nossas camisetas usadas como sacolas, por causa da sua quantidade, levaríamos para serem divididas entre nossos amigos da rua. Para os colegas da escola não poderíamos ofertar senão iriam perguntar onde conseguimos e isso complicaria as nossas vidas. Como falar que apanhamos do pomar da igreja, sem a autorização do padre? Nossos pais seriam chamados pela diretoria, contariam o que fizemos, levaríamos uma bronca e seríamos expulsos da escola.

E, de repente – ei-la toda na minha mão. As ameixoeiras estavam carregadas, não precisava subir na árvore, com a minha altura eu as apanhava e colocava no meu bornal. Fazíamos a colheita em silêncio, olhando para todos os lados e vigiando se não aparecia o padre ou alguém do seminário.

As nossas sacolas transbordavam com uma variedade de frutas frescas. Eu mal podia esperar para encontrar os meus amigos de rua, distribuir as frutas que coletamos e compartilhar com eles a incrível diversidade encontrada no pomar. E falar sobre a aventura que incluía a necessidade de escalar um muro para acessar essa maravilha, mas uma vez superado esse obstáculo, um pomar exuberante nos recebia.

Enquanto refletia, me veio à mente o quanto seria maravilhoso se o padre permitisse que as crianças entrassem neste espaço para colher e saborear as frutas do pomar. Imaginei também como seria agradável poder jogar bola nesse campo de futebol, com seu tapete de grama verde, um privilégio reservado apenas para os seminaristas, sem a necessidade de pular o muro.

Neste instante alguém gritou: "Saiam daí, seus ladrões!" Era o caseiro, que estava do outro lado do campo, apontando sua espingarda de sal e disparou. Chico e eu ficamos assombrados, não esperávamos tal reação, nunca havíamos enfrentado uma situação assim. O tiro atingiu a folha do abacateiro. De nossa posição, observamos que o disparador estava compactando o sal com um ferro no cano da espingarda e preparando outro tiro. Mas antes de voltar a apontar sua arma em nossa direção, ele soltou os dois cães da raça pastor alemão, e então, disparou.

Enquanto os cães corriam em nossa direção, fugimos em disparada, escalamos o muro no tempo mais rápido que já havíamos feito antes. Uma vez no topo, os cães saltaram, tentando alcançar-nos, porém sem sucesso. O segundo disparo atingiu a folha da ameixoeira. Descemos rápido do muro e corremos de volta para nossa rua, com nossas camisetas, improvisadas como sacolas, repletas de frutas.

Ninguém jamais soube. Não possuo arrependimento: menino que rouba frutas para saciar a sua fome e ainda divide o alimento com os outros, merece cem anos de perdão. As frutas, por sua vez, parecem clamar para serem colhidas, ao invés de amadurecerem e encontrarem seu fim despedaçadas no chão.

JLMoreira
Enviado por JLMoreira em 18/06/2024
Reeditado em 04/10/2024
Código do texto: T8088377
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