Tesouro sonhado
No Brasil colônia, a costa nordestina foi palco de invasões holandesas e espanholas, na tentativa de explorar as nossas riquezas, principalmente o ouro e o açúcar. A permanência desses povos durou pouco, mas deixou seus rastros. Nos arredores de Olinda, em Pernambuco, um velho cruzeiro, feito com madeira de aroeira, lavrado a machado, fora plantado ali, onde ainda permanece, como marco de uma missa rezada por padres jesuítas, vindos numa das embarcações por volta do século XVI. Dali, podia-se ver o farol e o mar, um lugar bonito e aconchegante. É nesse ambiente que Gumercindo Ferreira decide levar a sua vida solitária.
Gumercindo pescador, como era conhecido pelas pessoas do lugar, era um homem já de meia idade e de boa aparência, palavras macias e bem colocadas. Rosto amorenado pelo sol do céu pernambucano, passava o dia envolvido com sua pequena embarcação, pescando o pão do dia a dia. Chegou não se sabe de onde e, em pouco tempo, com seu jeito humano de ser, cativou os corações dos moradores. Assim, conseguiu a permissão para construir um rancho ali, no sopé daquele cruzeiro, onde passou a morar. A solidão era companheira fiel e o terreiro de chão batido era seu lugar predileto. Quase todas as tardes, depois da lida no mar, ficava ali, ao lado do cruzeiro, sentado num antigo cupinzeiro, fumando seu cigarro de palha, pensando na vida. Amar o mar era sua sina, mas o mar, amaro, às vezes era traiçoeiro e muitos sonhos se perdiam nas suas correntes. Viver da pesca não era ruim, mas Gumercindo queria mais, queria viajar, conhecer o mundo. Ele sabia que seus dias não iam terminar ali, naquele rancho, ao sopé de um cruzeiro. Alguma coisa lhe dizia que sua vida, de alguma forma, mudaria.
A madrugada já ia alta e Gumercindo revirava na cama, sem conseguir dormir direito. Atordoado pelo sono, um sonho martelava sua mente. As imagens surgiam à sua frente tão nítidas que tudo parecia real. No sonho, um senhor negro, cabelos gris, voz rouca e cansada dizia-lhe que deveria ir em busca de seu destino. Sem entender bem, Gumercindo ouve a história do velho negro: --- Na minha juventude, fui entregue como escravo para o capitão de um navio pirata que viajava os mares pelo mundo afora e foi assim que cheguei aqui. Numa noite, estávamos ancorados no cais da capital da Colônia, uma pequena cidade chamada Salvador, hoje capital da Bahia. Naquela noite, pelas frestas das tábuas da embarcação, eu via o capitão se maravilhar com muitas moedas douradas que, cuidadosamente foram colocadas num baú. O capitão chama dois de seus homens de confiança e desembarcam, levando o baú. Quando jovem, eu tinha muita destreza e, com poucos movimentos, me desvencilhei das correntes que me prendiam. A porta do porão do navio não tinha trava e não foi difícil sair dali. Me esgueirando pelas sombras da noite, segui o grupo até uma praia, onde enterraram aquele ouro. Esperei eles se afastarem, retirei o baú e o arrastei para um outro ponto, longe dali. Enterrei-o novamente e fugi. Terminei os meus dias como escravo, mas o tesouro está lá, no mesmo lugar onde deixei. Ele é todo seu! O tempo passou e a cidade cresceu. Em Salvador, perto do porto, você vai encontrar um pequeno hotel chamado "Princesa do Mar". O tesouro está enterrado lá, embaixo do balcão da recepção. Boa sorte!!! Dizendo isso, o velho se dissipa no ar, como fumaça, e desaparece. Gumercindo desperta, assustado. Que loucura, foi um sonho tão tangível que o velho parecia estar ali, do meu lado!!! Meu Deus!!!
Como sempre fazia, Gumercindo passava o dia em sua pequena embarcação, buscando o pescado do dia. Mas agora aquele sonho atribulava os seus pensamentos: será verdade? Ah, foi apenas um sonho! Os dias se passaram e, a cada final de tarde, sentado ali naquele cupinzeiro, fumando seu cigarro de palha, agora ficava imaginando um baú cheio de moedas douradas... Outra noite chega e o sonho se repete. Desta vez, o velho diz que ele não deve se demorar, pois a sorte bate à porta apenas uma vez. Pela manhã, Gumercindo se levanta decidido e, sem avisar ninguém, parte para Salvador.
A viagem rumo a Salvador foi tranquila, mas a ideia de encontrar um tesouro o atormentava. Já pensou se de repente pudesse realizar o sonho de comprar um barco grande e correr os mares, conhecer novos mundos! Enquanto caminha rumo ao porto, seus pensamentos vagueiam por lugares inimagináveis. De repente, um frio percorre a sua espinha! Ali, diante dos seus olhos, uma tabuleta, escrita em alto relevo, com letras garrafais: " Sejam bem-vindos ao Hotel Princesa do Mar"!!! Gumercindo fica extasiado, mal consegue sair do lugar. Num instante, fica absorto e vê a história de sua vida passando à sua frente, como num filme: a infância atribulada; a vida difícil e pobre; o sonho de conquistar o mundo; a saída de casa; a busca de realizações... O som estridente de uma buzina o desperta desse arroubo e ele volta à realidade. Cheio de esperança, precisava vasculhar algumas informações sobre aquele lugar.
O Hotel Princesa do Mar não era uma construção nova, mas apresentava características modernas, com suas falsas pilastras ornamentando a sua fachada, vidraças coloridas na parede frontal captando maior luminosidade para a recepção, estacionamento exclusivo para a clientela. Um jardim com pequenos arbustos e flores de variadas cores davam um ar romântico ao lugar. A cada detalhe que vislumbrava daquele lugar, um desânimo pairava em sua mente: jamais o deixariam fazer um buraco no piso daquela recepção... sem falar que ninguém acreditaria na sua história absurda. Já estava quase desistindo de tudo quando avista um senhor bem apessoado... Era o segurança do estacionamento. De maneira despretensiosa, aproxima-se do moço e inicia uma conversa. O homem era bem educado, de uma cortesia contagiante. Em pouco tempo, já conversavam como se fossem velhos amigos. Gumercindo se sente à vontade e decide falar de seu sonho, de sua vinda até ali e da frustração que sentia por ter acreditado numa fantasia. O homem sorri e, com seu jeito cativante de ser, acalenta o novo amigo e diz que os sonhos fazem parte da vida. Então ele diz que também já teve um sonho parecido, onde seu avô paterno, um negro alto e vistoso, filho da escravidão, surge e fala sobre um tesouro, enterrado ao sopé de um velho cruzeiro, debaixo de um antigo cupinzeiro, numa cidade do litoral nordestino. Eu não acredito em sonhos, mas eles existem. Se você crê, não desista, corra atrás do seu! Dizendo isto, os dois apertam as mãos e se despedem. Gumercindo está estarrecido! Será que o tesouro estava o tempo todo ali, no meu quintal? Confuso, o pescador se afasta e vai embora.
A viagem de volta foi sufocante. A angústia de chegar logo e colocar um fim nessa agrura era de tirar o sossego. Já era noite quando, finalmente, o trem chega na estação de Olinda. Apressadamente, Gumercindo toma o rumo de sua morada. Enquanto caminha, uma aflição toma posse de seus pensamentos. Tinha que dar fim naquela agonia. A noite já ia alta e o vilarejo dormia, num silêncio ensurdecedor. No horizonte, na linha do mar, uma lua glamorosa surge, deixando nas águas calmas um rastro de luz inebriante. Enquanto isso, o pescador chega em casa. Ali estava ele, banhado pela luz do luar. O cupinzeiro parecia estar a sua espera. Sem perda de tempo, se apodera de umas ferramentas e começa a cavar, cavar...
O clarão da aurora anuncia mais um dia que chega. Aos poucos, os pescadores preparam suas embarcações para a lida rotineira em busca dos pescados. Os amigos estranham a ausência de Gumercindo e vão a sua procura. Raramente ele faltava aos trabalhos. Chegando à casa, para surpresa de todos, uma cratera contornava o velho cupinzeiro, que jazia tombado para um lado. Parece que alguma coisa havia sido retirada dali. O rancho estava vazio e alguns pertences do pescador não se encontravam. A embarcação também não estava no ancoradouro. Até parece que Gumercindo queria ir embora, sem que ninguém soubesse. Homem estranho, mas a verdade é que ele se foi assim como chegou, sem deixar rastro.
A vida dos pescadores voltou à rotina e logo Gumercindo fora esquecido, ou pelo menos, não se falava mais nele. Contudo, nesse instante, é possível que uma embarcação, de tamanho razoável, esteja navegando rumo a mares e mundos desconhecidos, levando consigo um solitário navegante e seus sonhos coloridos.