Apetite selvagem

O sol do deserto castigava tudo que tinha vida.

Não restara nem vegetação, nem animais, apenas uma multidão que deslocava rumo ao desconhecido em busca de uma promessa. Esperavam chegar logo na magnífica terra de onde jorrava leite e mel. Para um povo que nascera sob o jugo da escravidão, aquela promessa era algo além do imaginado, algo intangível que eles mal conseguiam vislumbrar.

Fugiram às pressas do cativeiro que foram submetidos por 430 anos. Estavam eufóricos para chegarem a sonhada terra, mas agora, após vários dias andando pelo deserto, o desespero começava a tomar conta de suas almas. Para piorar aquele quadro, havia vários dias que o povo não comia seu alimento cotidiano. Aqueles grãos adocicados, que diariamente caía do céu, era o único alimento que encontravam, e isso já lhes causava enfado.

O sol escaldante continuava a castigar a multidão que, exausta e faminta, arrastava-se pelo árido deserto. A promessa de uma terra farta parecia cada vez mais distante. Os dias sem alimento adequado pesavam sobre as almas daquele povo que, outrora eufórico, agora enfrentava o desespero.

Em meio à penúria, surgiram murmúrios de descontentamento. A monotonia do maná com sabor de bolo de mel começou a gerar cansaço e desagrado. O apetite desenfreado ansiando pelos bifes acebolados do Egito, deixava suas mentes entorpecidas a ponto de permitirem que a insatisfação se insinuasse sorrateiramente entre eles. Todo o descontentamento tomava forma à medida que o apetite crescia, enquanto a promessa da terra abundante parecia mais ilusória a cada passo.

Olhavam ao redor e tudo que viam era a areia tórrida do deserto. Ainda que uma coluna de fogo os mantinham aquecidos a noite e uma gigantesca nuvem os protegessem do rigor do sol durante o dia, sentiram sua fé vacilar. O eco dos dias em que a fome assolava aquelas terras áridas ressoava nos ouvidos daqueles que seguiam em busca de sua própria promessa. Os mais vulneráveis cediam à tentação. A lamentação pela falta de um alimento adequado para satisfazer seu apetite, ecoava em suspiros de insatisfação e murmúrios de desejo por algo melhor.

Enfim, clamaram em uníssono por carne, desejavam saciar-se com alimento animal, para satisfazer seu apetite selvagem.

Então, como um alívio momentâneo para a crescente insatisfação, um milagre ocorreu. No vasto céu, bandos de codornas surgiram, uma dádiva divina para saciar o apetite daquela multidão. Famintos e vorazes, o povo se lançou sobre as aves como se não tivessem se alimentado por dias. O aroma tentador das codornas assadas preenchia o ar, e a gula se manifestava de forma selvagem.

À medida que as codornas assavam em fogueiras improvisadas, a fragrância deliciosa impregnava o ar e aguçava os sentidos da multidão faminta. A visão da carne dourada e suculenta provocava um frenesi entre eles, que se lançavam sobre as codornas com voracidade, ignorando qualquer moderação ou gratidão pelo milagre que lhes fora concedido.

Os olhos famintos brilhavam com luxúria pela comida tão desejada, enquanto mãos ávidas arrancavam pedaços da carne ainda quente e mal assada. A gula manifestava-se de maneira escancarada, ignorando completamente o significado do milagre e devorando as aves ainda cruas como se aquele fosse o único alimento que tivessem recebido e não presenciassem o milagre de receber o pão do céu todas as manhãs.

Incapazes de controlar sua avidez, acumulavam uma pilha de codornas para si mesmos, temendo que a bênção divina pudesse desaparecer a qualquer momento. Os mais vorazes acumulavam toneladas de aves em suas tendas. Outros, cegos pela indulgência, competiam entre si para ver quem conseguiria consumir mais.

O banquete se desenrolava frenético e assustador, e assim, as consequências da glutonaria começavam a se manifestar. Risos descontrolados, comportamentos impulsivos e uma falta total de autodisciplina se espalhavam pela multidão. A saciedade se transformara em excesso, e a alegria momentânea dava lugar a uma sensação incômoda de exagero e indulgência desmedida.

Contudo, a história não tardaria a tomar um rumo sombrio. O deleite desmedido e glutão daquele banquete celestial despertou a ira divina. A noite avançava e o êxtase inicial começava a desvanecer, pois, uma sombra se erguia sobre o acampamento. Uma praga invisível começou a se infiltrar, disseminando-se entre os que haviam se entregado à gula desenfreada. Tosse seca, febre e lamentos noturnos se tornavam os sinais de que a indulgência havia desencadeado uma terrível consequência.

A multidão insaciável que havia deleitado de maneira insensata da divina provisão, agora enfrentava as duras consequências de sua própria falta de moderação. Como uma sombra nebulosa, vítimas fatais começaram a surgir entre eles causando desespero e temor. O povo começava a ter consciência que foram tomados pela gula e a intemperança, e que, por seu comportamento transformaram a bênção em maldição. Milhares pagaram o preço por sua voracidade descontrolada.

Todas as pessoas que agiram com impulso, que em meio a ânsia foram incapazes de refrear o apetite, ficaram enterradas naquele deserto, como um lembrete amargo. Todas aquelas sepulturas improvisadas revelavam o que a busca pela satisfação do apetite a qualquer custo poderia trazer, dissipando qualquer alegria momentânea, um alto preço a ser pago.

Logo entenderam que a busca desenfreada pela satisfação do apetite, seus modos insolentes, e sua murmuração sem limites, trariam consequências severas. A multidão continuava sua jornada rumo à promessa da conquista da terra prometida, mas agora, cientes que o terrível pecado da gula não seria tolerado e que nem mesmo a dádiva divina ficaria isenta de consequências.

Obs. O conto faz parte da coletânea Gula, da coleção 7 Pecados capitais da Cartola Editora.

Chirles Oliveira
Enviado por Chirles Oliveira em 23/05/2024
Código do texto: T8070006
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