Onde somos necessários
Após mais um dia de trabalho cansativo, empurrando carrinhos cheios de livros dentro da biblioteca, Jant Glas trancou-se em seu quarto acolhedor e colocou um stroopwafel sobre a xícara de chá quente que Sieu viera lhe trazer, aguardando o recheio de caramelo derreter. Aquela era, sem dúvida, uma das melhores horas do seu dia, avaliou; principalmente, porque agora tinha em mãos a ponta do fio da meada que poderia revelar todos os segredos ciosamente guardados no castelo de Hegestap. Retirou o pequeno volume de "Como Abrir Portas Por Afinidade" do seu esconderijo sob o colchão, e sentou-se sobre a manta que cobria a cama; as noites ali na serra costumavam ser frias, embora não a ponto de necessitar de um sistema de aquecimento como na Europa.
Ao abrir o livro, um retângulo amarelado caiu de dentro dele. Jant apanhou-o, curiosa, pois havia uma anotação desbotada feita a lápis sobre ele: "Dia de Litha, 1907". Virou o cartão e deparou-se com uma foto em preto e branco, obviamente tirada sob um dos caramanchões da propriedade: a trindade residente da época, composta por bibliotecária, assistente e governanta, estava sentada ao redor ao redor de uma mesa de café da manhã. Até aí nada demais, embora fotografias e máquinas fotográficas parecessem curiosamente ausentes do cotidiano do castelo; mas por trás das residentes em suas roupas austeras, havia uma dupla de pé que ela identificou imediatamente: Sieu, a camareira, e Richold, o copeiro.
- Não pode ser... - murmurou ela, dando uma mordida no stroopwafel.
Apesar dos uniformes de 1907 serem ainda mais antiquados do que os que a criadagem usava na atualidade, não poderia se enganar quanto àqueles rostos. Hegestap teria ao seu serviço uma equipe de imortais, condenados à uma eternidade de servidão?
Jant avaliou que já tinha muita informação para processar e decidiu não prosseguir com a leitura naquela noite. Colocou a foto de volta ao interior do livro e escondeu-o novamente sob o colchão. Depois, imersa em seus pensamentos, acabou de tomar o chá e comer o stroopwafel. Ergueu-se para fechar as cortinas da janela do quarto, e por um momento deixou seu olhar vagar pela noite escura lá fora. Será que os criados ainda estavam acordados? Se chamasse Sieu no meio da noite, ela apareceria em poucos minutos, impecavelmente uniformizada como se estivesse apenas aguardando ser chamada? Estremeceu. Não, de modo algum faria aquela experiência!
Luzes apagadas, levou um pouco mais de tempo do que o habitual para adormecer.
Na manhã seguinte, já vestida para o desjejum, apanhou o livro e o abriu para dar mais uma olhada na foto. Para sua surpresa, não havia nada entre as páginas amareladas.
- Será que tive uma alucinação? - Perguntou-se.
Como que para quebrar o encanto, bateram à porta. Ela abriu e viu-se diante de Sieu, lépida e fagueira como sempre.
- Bom dia, senhorita! Dormiu bem?
- Eu... acho que sonhei com uma coisa - as palavras foram saindo da boca de Jant e ela não fez nenhuma tentativa para segurá-las. - Algo a ver com o Dia de Litha, 1907.
A criada a encarou com surpresa. Depois, olhou para ambos os lados do corredor e baixou a voz:
- A senhorita não deveria comentar sobre isso aqui dentro; a bibliotecária pode suspeitar que talvez não esteja preparada para o cargo.
- Você estava lá, Sieu? Você e Richold? - Inquiriu desafiadora Jant.
A criada aprumou-se.
- Nós sempre estamos onde somos necessários, senhorita. E agora vamos, que a senhora Wassenaar não gosta de atrasos à mesa.
Jant a segurou pelo braço.
- Essa conversa não acabou aqui, Sieu.
Quando soltou o braço da criada, percebeu que o havia segurado com tanta força que havia deixado a marca de seus dedos impressa nele. Quis se desculpar, mas Sieu, com uma expressão genuína de dor no rosto, já descia as escadas à frente dela, com mais pressa do que o habitual.
- [04-04-2024]