Detras-Da-Serra
Detrás-Da-Serra, abril de 1973...
Uma casa simples, um terreiro de areia fina, as cercas de madeira, o riacho borbulhando perto e passarinhos se espreguiçando nos ninhos. A vida na roça começa antes de raiar o dia.
Dona Marcionilia, já de pé, cuida no café da manhã, porque seu Gabriel, também de pé, precisa "quebrar o jejum", antes de enfrentar a lida do dia.
Geralmente, essa primeira refeição é composta de café, leite, beiju com carne assada ou ovo, ou então, cuscuz. Isso depende da época do ano... como estamos no tempo da quaresma, as roças estão cheias de feijão Verde, milho, abóbora, jerimum e maxixe. É uma época de fartura que, aos poucos vai rareando, conforme as chuvas vão se afastando do sertão. Mas nesse lugar não tem um tempo tão difícil.
São cinco filhos: Lúcia, Pedro, Lucelena, Manoel e Paulo Sérgio. E hoje é dia de Maria Lúcia, a mais velha, ir para a casa de Mãe Neuza, assim chamada por ter sido sua ama de leite. E também porque dona Neuza, junto com seu Antonio, têm uma filha na mesma faixa etária de Lúcia, 7 anos.
Dona Marcionilia vai até à rede de Lúcia, sacode os punhos e diz:
- Rumbora, menina, se alui. Tu vai pra casa de comadre Neuza hoje. Mas num vai dar trabai, se não conde chegá aqui, a chinela canta.
-Oh, mãe, eu tô com sono. Mais já vou me levantar. Posso levar a minha boneca?
-Pode, menina. Vem tomar teu café.
Na sacola Lúcia trazia algumas mudas de roupa, uns brinquedinhos e a inseparável boneca que foi presente do pai.
Não era longe de uma casa para outra. Talvez uns 20 minutos de caminhada. O trajeto era tranquilo e com algumas casas esparsas pelo caminho. Quase chegando na casa de Mãe Neuza, era a casa de Padin Déu, irmão de Padin Antonio. Atravessava uma passagem de água é já chegava.
Depois das bênçãos, dos abraços e das lembranças dadas, lá ia Lúcia brincar com sua prima favorita, a Eliana. Nesse tempo não existiam muitas opções de brinquedos. As crianças eram muito mais criativas do que hoje em dia.
Algumas bonecas eram compradas na Cidade, outras eram de pano, confeccionadas por mãe ,Neuza ou pela filha mais velha, chamada de Donzinha. De mais a mais, a criatividade levava as crianças desse tempo a usarem sementes de arvores, frutas silvestres e qualquer coisa que encontravam no "monturo", para fazer valer a brincadeira.
Não existia escola naquela localidade. Então, as crianças em idade escolar não estavam frequentando as aulas regularmente. Os pais que tinham condição, pagavam professores particulares para alfabetizar os filhos. Mas não era o caso das famílias aqui mencionadas. No caso de Maria Lúcia e seus irmãos, só foi possível frequentar a escola tempos depois, quando toda a família se mudou para o centro urbano de Pio IX.
Eliana, muito contente com a chegada da prima, convida-a a brincar debaixo do pé de umbu:
- Vem vê o que eu achei...
- O que foi?
- Um nim de ratos. Vamos criar eles, como se fossem nossos filhos.
- E que nome vamo botá neles?
- Ih, sei não... ah, vamo chamá de ratim nesmo.
Aí as duas passavam a cuidar daqueles ratinhos, dando-lhes leite de vaca na ponta dos dedos. Só que, quando os ratinhos já estavam bem grandinhos, mãe Neuza os dava para banquete dos gatos, mas sem Lúcia ver para que ela não chorasse. Quando Lucia se lembrava dos ratinhos, mãe Neuza dava alguma desculpa que colava.
Enquanto Eliana e Lúcia brincavam de casinha embaixo do pé de umbu, o que vinha dentro das panelinhas que cozinhavam na trempe? Bem, folhas verdes de mameleiro eram como se fossem carne e pedrinhas pequenas eram como se fossem feijão. As próprias panelas eram tampinhas de garrafa achadas por aí.
Muitas vezes mãe Neuza mandava as duas meninas irem até um povoado próximo, chamado São Luís, talvez deixar alguma coisa na casa de Tide, ou Clotilde, uma das filhas mais velhas, que já era casada e morava lá.
As meninas, principalmente Lúcia, apreciavam muito essa caminhada. Nem se importavam com a distância de duas léguas, o equivalente a 13 quilômetros. As duas, de posse de suas respectivas bonecas, iam a passos lentos, brincando, trocando as bonecas, fazendo festa de batizado e se chamando de comadres.
De vez em quando uma perguntava à outra:
- Lúcia, tu tem medo de cobra?
- Tenho muito não.... é só ficá longe dela.
- Eu tenho... e se uma aparecesse agora?
- A gente corria, rsrs...
- É se ela corresse maus do que nós?
- Aí, a gente tava lascado, rsrs.
- Mais tu num tem medo, Lúcia?
- O meu medo grande mesmo é da vaca Chuvisca. Um dia ela deu uma carreira em mim e no Pedro.
- Eita!... As vaca de pai são tudo mansinha.
As duas iam caminhando, envoltas numa aura mágica daquela infância tranquila. Estavam tão envoltas com as fantasias do mundo lúdico, que mal percebiam o orquestrar dos passarinhos, as flores à margem da estrada, as frutas Silvestres que pululavam em cada arbusto, enfim, mal percebiam que já haviam vencido a distância entre Detrás-Sa-Serra e o São Luís. E nem se importavam de saber que, mais tarde fariam o mesmo trajeto em sentido contrário. Ainda havia muita brincadeira e criatividade para viverem no caminho de volta.
Jarrê Vadoux, 01/4/2024