O Reich pede ajuda
Da última vez em que havia visto aqueles olhos azuis gelados diante dela, Debora Gröning não se chamava Debora Gröning. E o sobrenome da jovem de cabelos escuros que a encarava, num elegante uniforme das SS-Helferin, ainda era Raubal. Debora foi salva da súbita paralisia que a acometera pela providencial intervenção de sua companheira de espera naquela sala do Ordenspalais, a também SS-Helferin Ermintrude Kästner Friedmann:
- É uma grande honra conhecê-la pessoalmente, Reichsführerin - cumprimentou-a alegremente.
A Reichsführerin também abriu um sorriso.
- Também sinto-me encantada em finalmente estar com vocês!
A porta atrás dela fora fechada pelo soldado da SS de guarda lá fora, e estavam finalmente a sós, para discutir o que quer que houvesse motivado aquela reunião extemporânea.
- Sentem-se - disse a recém-chegada, indicando as poltronas de veludo onde as duas outras mulheres haviam esperado pela sua chegada. Aguardou que tomassem assento e depois de sentar-se numa terceira poltrona diante delas, lhes dirigiu a palavra:
- É notável como o destino do Reich possa estar nas mãos de três pessoas tão diferentes - comentou, mãos entrelaçadas no colo. E apontando o queixo na direção de Debora Gröning:
- Particularmente, você... Devorah.
- Oficialmente, este não é mais o meu nome, Reichsführerin - corrigiu-a educadamente Debora, surpreendendo-se imediatamente de sua ousadia. Mas a Reichsführerin apenas sorriu de modo sardônico.
- Sim, estou a par dessa manobra. Era preciso justificar a presença de uma judia numa função importante do Ministério do Armamento, e o pessoal da Propaganda é bom em inventar histórias.
Passado o choque inicial do reencontro após tantos anos, e mesmo sabendo do poder da mulher diante dela, Debora Gröning começou a sentir uma onda de calma invadi-la. Era verdade que a Reichsführerin era a pessoa mais importante do Reich... mas ela sabia que não poderia levar adiante seus planos sem a ajuda voluntária de Debora Gröning e da SS-Oberhelfer Friedmann. Gröning estava pronta para barganhar: o destino do seu povo dependia disso.
- Preciso da ajuda de vocês - admitiu com franqueza a Reichsführerin. - A morte súbita do meu pai me colocou no comando do Reich, algo que não deveria ter ocorrido tão cedo. Ainda havia anos de planejamento pela frente, mas tudo isso teve que ser posto de lado por força das circunstâncias. A verdade...
Fez uma pausa e encarou as outras duas, que ouviam atentamente suas palavras.
- A verdade é que não temos condições de continuar na guerra, nas circunstâncias atuais. Teremos que negociar algum tipo de armistício com os Aliados.
Gröning e Friedmann trocaram um olhar rápido. Aquela confissão, feita por quem a fizera, era devastadora. Debora encheu-se de coragem e tomou a palavra:
- Isto significa dizer... que vai deixar meu povo ir?
A Reichsführerin ergueu os sobrolhos e exibiu seu sorriso sardônico, enquanto se acomodava na poltrona de um modo mais relaxado.
- "Deixar seu povo ir", Devorah? Quem você acha que é... Moisés? E eu por acaso tenho cara de faraó?
Debora abriu a boca para replicar, mas Ermintrude Friedmann apertou seu pulso e ela calou-se.
- Certo, vamos lá - prosseguiu a Reichsführerin. - Meu pai planejava livrar-se de todos os judeus, de um modo ou doutro, mas estou ciente de que, já que precisamos trabalhar em conjunto pelo bem do Reich, algumas maneiras são mais aceitáveis do que outras. Estou falando especificamente da Jüdiche Expeditionskorps, da qual, você Devorah, é a garota-propaganda.
Debora Gröning ergueu a mão e a Reichsführerin fez um aceno de cabeça, autorizando-a a falar.
- Mas, Reichsführerin... o Corpo Expedicionário Judeu parte do pressuposto de que a guerra vai continuar, e pelo que acabou de dizer...
A Reichsführerin semicerrou os olhos.
- Garota, você é idiota? Pensou que a remoção dos judeus iria ocorrer depois do armistício? É óbvio que terá que ocorrer antes, ou não haverá acordo; e também vai depender muito do sucesso que vão obter no cumprimento do missão.
Foi a vez de Ermintrude Friedmann erguer a mão.
- Perdão, Reichsführerin, mas creio que não estou a par desse plano...
- Você não estava diretamente envolvida - redarguiu a Reichsführerin com um aceno de mão. - Mas o que precisa saber neste momento é o seguinte: vamos evacuar os judeus da Europa, de volta ao seu lar ancestral: a Palestina. Ou Israel, como creio que o chamavam antes. O problema é que, como você deve saber, a região está cheia de árabes e agora é controlada pelo Império Britânico. Basicamente, o Reich vai armar uma força expedicionária de judeus e usá-la para invadir a Palestina britânica. Em última análise, vai ser bom para nós e para os judeus: se obtiverem sucesso, poderão ficar com as suas terras sagradas, sob a proteção do Reich. E se falharem... bem, tiveram uma última oportunidade de provar sua utilidade.
A oportunidade dada aos judeus era inequívoca, bem o sabia Debora Gröning; afinal, a outra alternativa era a morte nos campos de concentração. E como estímulo adicional, o Reich estaria mantendo as famílias dos combatentes sob custódia. Eles tinham amplas razões para lutarem por algo muito mais concreto do que um governo que lhes virara as costas.
- Eu... creio que podemos começar a discutir sobre como as famílias dos expedicionários serão tratadas - admitiu Debora Gröning.
A Reichsführerin abriu um sorriso.
- Ótimo, Devorah. Eu sabia que você podia ser uma pessoa razoável...
- [29-10-2023]