PROSAS NO ALTO PURUS

PROSAS NO ALTO PURUS

Em plena selva amazônica ocidental, as terras banhadas pela calha do rio Purus são cobiçadas desde os primórdios do povo ameríndio, por lá habitavam os “huni kui”. Com o alargamento das fronteiras do extremo ocidente os seringueiros avançaram em busca do melhor látex, nessa disputa de terra eclodiu a revolução acreana, seguida pela questão peruana que culminou com a anexação do acre ao BRASIL. Essa tribo difundiu o intrigante “cipó das visões” ou “cipó dos espíritos”, que na selva leva o nome de “ayuasca”, os brancos o chamam de “Santo Daime”. Para saber mais sobre essa bebida é necessário ler o “Feiticeiro do alto Amazonas”. Nos idos de 1993 na cidade de Tefé- AM, o Partizano presenciou o efeito do chá desse cipó maldito; certa vez um garoto cambaleando descalço pelo meio da rua, chutou com toda sua força um tijolo enrolado em um pedaço de lona preta, ele prosseguiu andando com os dedos do pé sangrando para valer. Na manhã seguinte o homem uivava de dor com os dedos deformados e feridos. O garoto implorava por ajuda quando o Partizano lhe perguntou:

- O que houve contigo meu rapaz?

- Sob o efeito do ayuasca eu vi a lona preta se transformar num grande urubu. Respondeu ele.

Segundo relatos anteriores apenas os 3º sargentos eram escalados para essa missão nos confins da Amazônia ocidental. Numa dessa viagem de barco que durava cerca de oito dias subindo o Rio Purus, um jovem sargento misturou aguardente com o maldito chá até ficar ensandecido ao ponto de cair no rio durante a noite e desaparecer nas águas barrentas. Atualmente o comando escala um 2º sargento para liderar o grupo de militares destacados, apesar de quatro oficiais integrarem o grupo. Por ser experimentado nas lides da caserna e já resolvido em muitas situações da vida, o sargento adjunto tem com atribuição principal assessorar o jovem tenente e acalmar os animos para evitar maiores complicações. No alto Purus existe uma comunidade brasileira, isolada no coração da selva, um núcleo necessário para garantir a posse daquele rincão, a vila de Santa Rosa, que só pode ser alcançada de barco ou de avião. Homens do Exército eram destacados para guarnecer aquele posto avançado, a equipe era substituída a cada três meses, pois nesse solitário e inóspito lugar os dias eram quentes e as noites muito longas, não havia diversão para todos, havia poucas mulheres disponíveis, o cigarro e a bebida eram produtos escassos, e caros assim como outros gêneros da cesta básica, medicamentos etc.

O PROCESSO SELETIVO

A princípio um entre os 2º sargentos teria que deslocar-se para o Pelotão Especial de Fronteira (PEF) junto com a nova leva de homens renegados, que caso refugassem a missão seriam licenciados do serviço militar, despedidos etc. e tal. Na ausência de um voluntário a solução foi realizar um sorteio público, em anos anteriores existia uma roleta russa onde os escalados eram sempre desafetos de algum oficial superior ou de seus cupinxas. Infelizmente havia praças que colaboravam com o sistema em troca de favores (dispensa do serviço para frequentar curso superior, benefícios do sistema Unimed de saúde, gratuídade de TV a cabo, internet, preferência na aquisição de produtos em caso de licitação e outras do ramo). Alguns meses antes o comandante geral passou a perseguir um subtenente que impetrou ação na justiça federal denunciando algumas irregularidades na assistencia médica prestada aos familiares dos militares, devidos ao descaso do comando em relação a sua esposa que sofria de diabetes. Tudo isso desencadeou uma rigorosa apuração dos fatos e os militares que foram arrolados passaram a sofrer os efeitos da revanche, o que não se pode punir com o regulamento disciplinar, seria punido com o excesso de trabalho ou enviado ao destacamento de fronteira. Depois desse reboliço enfim chegou a hora de enviar mais um sargento para Santa Rosa do Purus, restava saber o nome da próxima vítima que dependendo de sua posição com o sistema, o militar poderia ter seu tempo prolongado na selva. O pessoal da saúde era substituído a cada quinze dias e os infantes de selva até cento e vinte dias no mínimo, o militar sabia do dia do embarque, mas o dia do retorno só o chefe. O comandante reuniu todos os sargentos habilitados no saguão, então foi empregado o parâmetro da antiguidade hierárquica; O Partizano era a bola da vez na retaliação do comando, mas estava em posição confortável, nem antigo, nem moderno. O coronel vendo que não o prejudicou nesse quesito, então o chefe decidiu mudar processo para o sorteio de nomes escritos em papeizinhos dobrados e dentro de um gorro de farda militar. Para surpresa dele o nome do Partizano foi sorteado em penúltimo para destacar na fronteira. Insatisfeito o chefe incluiu o quesito de ser especialista em selva (guerra na selva), novamente o Partizano se safou por ser guerreiro de selva mais antigo entre os sargentos e o terceiro mais antigo entre todos do batalhão. Um ano se passou até que na semana anterior ao embarque a esposa do Partizano baixou ao hospital e ele foi substituído por outro sargento. Nos dias que antecederam o vôo aconteceu de tudo, até parece que os céus estavam em desacordo com a viagem; primeiro não havia aeronave disponível, depois não houve suprimento de gasolina, depois o piloto foi acometido de uma terrível diarréia. Até que enfim a equipe decolou às sete horas e treze minutos do dia 29/11 em um avião do tipo “Caravan”, da força aérea, que comportava apenas sete passageiros, três tripulantes, mais 300 quilos de bagagem. Chegaram às oito horas e vinte e quatro minutos sem problema algum durante a viagem. Na bagagem uma velha antena parabólica desmontada de qual as grades do prato não se encaixavam, ainda usando arame para substituir os parafusos, isso deixou claro que outras antenas foram canibalizadas para se construir uma que funcionasse. O aparelho receptor ficou na capital para ser trazido na próxima leva. No vilarejo pequeno e humilde apenas a prefeitura e o PEF possuíam instalações de alvenaria, nesse quesito o pelotão de Santa Rosa se destacava sobre a paisagem pobre da vila. Enquanto a nova equipe carregava as mochilas, a equipe substituída rapidamente desocupou o local e embarcou na aeronave, apenas o comandante e o adjunto participaram da passagem do serviço e conferência do material.

Deus na sua santa bondade marcou a chegada com uma benção esplendorosa, nasceu um cabritinho lindo e forte, que recebeu o nome de “jerominho”, o xodó dos homens que cuidavam bem dos animais, alguns porcos que eram criados com fé, pois não havia alimentos para todos, os animais comiam os restos da alimentação dos homens, que ainda era dividido com spokinha e guardião, dois cães vira-latas que matariam de inveja qualquer pitbul ou rotewailer. Esses últimos animais faziam a vigilância noturna da área militar e podiam identificar um índio em meio a um grande grupo de pessoas a distância superior a cem metros, os cães não gostavam de índios, por razão desconhecida, o ataque canino era fatal aos nativos. Passado às formaturas rotineiras e tarefas diárias cumpridas, os homens eram liberados para sair à noite na vila, a caça de mulheres e bebidas alcoólicas para acalmar os ânimos, era inviável manter 40 jovens isolados do mundo real. Essa equipe foi escolhida pelo sargento Partizano, enviado para Santa Rosa pelo comandante do Batalhão por não conseguir puni-lo, um revanchismo velado para coibir a ato de lealdade a um companheiro que entrou em disputa com o chefe. O Partizano escolheu dois sargentos leais, dez cabos e setenta soldados de sua confiança, esse fator foi imprescindível para o bom andamento das atividades durante os dias que passaram destacados. Os três sargentos se revezavam na coordenação dos homens e dos trabalhos, principalmente à noite marcando até a entrada do último homem e nesse intervalo de tempo os militares que decidiram não sair ficavam conversando numa roda de tereré e ouvindo músicas para matar a saudade de casa. Um dos homens desabafando contou que certa vez vindo de uma missão em Porto Velho, após alguns de exercício um militar realizou um disparo acidental contra o pé de um companheiro, a arma foi recolhida para fazer parte do rol de provas do incidente, JHF foi incumbido de transportar a arma que foi colocada em um saco plástico então o pelotão partiu embarcado em viaturas de cinco toneladas até a sede do Batalhão de selva em Rio Branco no Acre, na chegada o comandante de pelotão pediu a pistola e indagou sobre o projétil que estava junto com arma, o sargento então respondeu que não recebeu objeto algum e como na duvida a palavra do tenente tem fé de oficio. Esse amigo sofreu com uma repreensão que prejudicou sua carreira, ele afirmou que tudo isso ocorreu para disfarçar o erro do tenente. Esse mesmo militar que já destacou em Santa Rosa outra vez, mandou mensagem via radio para o comandante do batalhão avisando que a fossa séptica poderia explodir a qualquer momento:

- Essa obra foi construída por um engenheiro militar, você não tem capacidade para avaliar se vai acontecer ou não. Retrucou o chefe

Quinze dias depois aconteceu o previsto, a fossa estourou e foi uma bagunça danada, então agora o sargento disse por telefone ao comandante pode despedir seu engenheiro. O chefe não sabia que o sargento era filho de mestre de obras e cresceu ajudando o pai nos trabalhos de alvenaria e no quartel por vários anos foi chefe do pelotão de obras do batalhão. Os oficiais não dominam a técnica apenas assinam ou concordam com as versões dos sargentos que realmente põe a mão na massa e não somente na caneta. Logo de manhã o Partizano partiu para uma corrida de 30 minutos para melhorar o preparo físico, no campo de pouso ele foi ultrapassado por um senhor de moto que vinha de uma fazenda das proximidades e a uma distância de duzentos metros era seguido por alguns cães.

Mais atrás vinha uma velha cadela com a língua para fora, seus peitos chupados balançavam ao galope, ela vinha cambaleante no encalço do seu dono, então o Partizano decidiu que não perderia na corrida para aquela matilha de caipiras. Chegaram juntos a periferia da vila. Por volta das nove horas um avião da FEB trouxe o receptor da antena SKY, até então restava apenas o DVD e uma velha caixa de som amplificada para promover algum entretenimento, não aconteceu nada demais desde que cinco nativos estupraram uma menor da vila. O cacique declarou que se os brancos não parassem de transar com suas “cunhãs”, daquele dia em diante todas as brancas seriam violadas sexualmente nos arredores. Acompanhado de dois cabos armados com 200 tiros de fuzil cada um, o Partizano chegou à tribo onde foi envolvido por uma multidão de selvagens. Então avisou ao chefe que caso levasse adiante aquela conversa suas malocas serias queimadas.

- Tuxaua branco pode ficar tranquilo que nada vai acontecer as meninas. Disse o chefe Kaxinawa

O Partizano encontrou o cão-vigia, um grande amigo, um cão velho e todo desengonçado com muitas cicatrizes por todo o corpo e que se deslocava lentamente pelo pátio do quartel, vivia por baixo das mesas do rancho esperando que caísse alguma migalha. O cão dominava todo o território compreendido entre a estrada e a margem do rio. O Partizano entendeu que erma iguais, combateram no passado e agora apenas vivem das glorias da história.

30/11um feroz latido avisou que cinco cães fugiam depois de enfrentar o velho guerreiro, que fazia companhia ao soldado que ficava de guarda a noite. No meio da madrugada chuvosa, o Partizano encontrou o guardião dormindo sobre uma mesa de madeira, seus olhos vermelhos lacrimejavam e o líquido escorria do seu muflo gelado, para os menos experientes era resfriado, mais para o caçador aquilo significa faro superior. Por volta das treze horas chegou a 3º sargento, única mulher do destacamento, auxiliar de saúde para prestar apoio ao pelotão, era uma loira de médio porte, mas parecia uma giganta diante das mulheres locais que são da tribo “pigméia”, todas já adultas e tem o tamanho de uma menina normal de doze anos, em todos os momentos olhos de rapina fitam qualquer fêmea a vista.

1º Dez um bolo foi preparado para a suposta vinda do comandante do batalhão, que ameaçou comemorar o seu aniversario com a tropa distante, mas não apareceu. Logo cedo o velho guardião tremia de frio em seu posto, o Partizano não o cobriu por falta de uma manta quente, mas o velho guerreiro não podia ser vencido por uma friagem. A turma que foi substituída deixou um desfalque de setecentos quilos de trigo que foram trocados por uma vaca que foi destinada para um churrasco oferecido a um mafioso da região. Esse trigo era cedido ao padeiro da cidade que fornecia o pão matinal em escambo há muitos tempos. O Partizano foi alertado para o tráfico de drogas, o monopólio da SKY, promiscuidade com as meninas da cidade e o uso indevido do serviço do posto telefônico que era gerenciado por um suposto homossexual, a tudo isso deveria combater.

02 Dez o fornecimento de pão foi suspenso até que fosse sanada a dívida de 250 quilos de trigo ao padeiro local, não havia recursos suficientes para suprir os dois meses que teriam que passar por ali, corriam boatos sobre o interesse do comando em abafar o caso, mas os homens não pensavam assim. Choveu durante todo o dia e o número de insetos triplicou e por isso a tropa testou vários tipos de repelentes para proteger as pessoas e instalações mais importantes. Para completar os problemas faltou energia elétrica à noite e só de manhã descobriram que um galho de arvore havia caído sobre os fios de alta tensão. Todos os homens estavam com cara de sono, pois foram dormir altas horas da madrugada conversando sobre assuntos variados da bíblia, assombração, possessão e santidade. Era notório grande interesse dos meninos que até então se diziam incrédulos, uns desviados da casa do Senhor e outros não possuíam o mínimo conhecimento sobre doutrina cristã. Dois irmãos tocaram violão e cantaram louvores até alta madrugada, quando o último se recolheu, os sargentos foram orientados a dormir de arma em punho, pois durante a conversa o Partizano percebeu que o guarda estava cochilando de vez em quando, o soldado trabalhou o dia todo com a roçadeira costal, não deveria estar de guarda e sim descansando. No próximo serviço um cão de guarda seria amarrado ao redor do soldado, pois um posto de guarda não era suficiente para barrar as vias de acesso vindas do rio e da selva, a proteção divina e o manto negro da noite protegiam a tropa dos perigos da selva. Com ajuda de Deus a antena SKY foi sintonizada proporcionando um fim de semana distraído, comendo o bolo que seria do coronel, mas findaram comemorando a matrícula do tenente no curso de comandos, um dos mais difíceis do Exército. O almoço aconteceu por volta das treze horas, as dezoito horas novamente ficaram conversando sobre o passado de vida devassa, religião, espíritos e comentando cada música que tocava cada um contava seus romances e seus desamores sofridos. No meio da noite um guerreiro chegou embriagado, vindo de uma casa profana denominada SPOKA PUTA, entrou cambaleante e calado, com marcas de violência da aventura amorosa pelas unhadas em suas costas. Madrugada adentro debateram sobre mensagens subliminares despertando a curiosidade dos homens para pesquisar sobre o assunto, a semente do evangelho foi plantada.

03 Dez, o dia amanheceu sem água, energia elétrica, a maior preocupação era a alimentação dos animais que não recebiam uma ração descente, apenas farelo de pão, restos de verduras, até então não encontraram alternativa satisfatória. o Partizano se esforçava para passar algumas técnicas rurais aos guerreiros “urbanos” que não apresentavam o menor tato no manejo de animal domésticos, no entanto havia muita resistência. Era notório o receio dos animais diante da farda rajada, talvez fosse a trauma de agressão da turma anterior. Um sargento contou que aos 16 anos de idade ganhou uma pulseira de prata de uma senhora, ela o presenteou como forma de compromisso sério, o romance acabou e o jovem se casou alguns meses depois, no entanto sempre mantinham encontros esporádicos. Nesse período seu pai ficou viúvo aos quarenta e oito anos e ingenuamente aplacava a solidão com a distinta senhora da mesma forma que o filho. A dona engravidou sem revelar a identidade do pai biológico, o sargento sempre que olhava para a pulseira de prata indagava ao destino por não saber se aquela criança era seu filho ou irmão. Nessa noite aconteceu o tão esperado festival de “dance”, um evento bem organizado com ingresso nominal e tudo mais, o Partizano preferiu não participar e ficou observando tudo do seu local preferido para ajudar passar a noite, enquanto isso outro guerreiro se aproximou contando que há muitos anos no velório de sua avó conheceu uma garota linda que o consolou por toda a noite, ficaram amigos, namoraram e se casaram então a família começou a aumentar e o rapaz teve que desempenhar trabalhos extras para melhorar o orçamento, no seu trabalho de motorista as vezes passava semanas sem aparecer em casa, a mulher começou a encrencar e acabaram se separando. O destino os uniu nove anos depois quando a outra avó faleceu e novamente a mulher consolou o ex-marido noite a fora.

Já era alta madrugada quando o Partizano observou um dos homens desafiando a todos os demais para uma disputa de flexão de braço. O rapaz bradou “comigo” e tomou a posição para o exercício, mas não esperava ser atacado por trás, o velho cão guardião montou sobre ele tentando copular ali mesmo, os homens haviam chegado do prostíbulo spoka puta, ainda estavam embriagados, o valentão foi obrigado a desistir da provocação e acabou sendo motivo de zoação da tropa. O raizeiro recebeu a condecoração máxima de selva, cujo símbolo era a onça de duas caras, apenas concedida aos homens de destaque. A façanha do guerreiro foi transar com uma índia velha, depois de tomar todas na praça ele a levou para um barraco a beira do rio. Após o ato sexual o guerreiro descansou em uma rede ao lado de sua amada, na alvorada um bebê acordou chorando, minutos depois outro garoto chamava pela mãe, no canto do barraco um menino de sete anos pedia farinha com leite de castanha, a escadinha foi aparecendo até que uma voz mais grave pediu silêncio. O guerreiro saltou da rede ao ver o filho mais velho da mulher que parecia mais um bárbaro a fim de matá-lo, o herói bateu em retirada, o índio partiu no seu encalço e somente desistiu da perseguição ao avistar o feroz cão guardião que veio salvar o soldado. Nessa mesma noite através do rádio internet a sargento de saúde descobriu que seu marido havia engravidado a ex-namorada, a mulher ficou louca por vingança e decidiu passar o pelotão inteiro entre as coxas.

04 Dez Logo de manhã os homens que retornavam após consumir toda a cerveja do bar e pediram permissão para tomar a pinga no interior do quartel.

- Sim desde que não haja confusão. Respondeu o Partizano.

Os guerreiros beberam até que ficar estendidos na calçada do tapiri, por volta das nove horas da manhã o Partizano percebeu que os animais ainda não haviam sido alimentados, mais uma vez os responsáveis pela tarefa não compareceram, então ele se deslocou até o barraco do índio kaxinawa que morava na periferia da vila:

- Kaxina! Por que você não tratou dos bichos? Perguntou o Adjunto.

- Ah sargento! hoje é domingo. Ele respondeu.

- Certo guerreiro! Vamos contar isso ao porco que grita de fome. Retrucou Kroomt.

O Adjunto acordou um homem de vergonha para ajudar a tratar os animais, no final da tarde foi até o ginásio de esportes para assistir um jogo de futsal, no retorno ele notou que os homens continuavam bebendo no bar de frente ao quartel, ao longe notou que um deles sorria muito com os olhos fechados, era o raizeiro que quando se embriagava tinha o costume de apagar o cigarro na pele do braço, ele já contava com sete cicatrizes no braço direito e agora acabara de fazer a sétima marca no braço esquerdo. Sem constrangê-lo o Adjunto apenas indicou a direção do alojamento, o ébrio cambaleou com as calças caindo, seus olhos quase não abriam quando o guerreiro entrou para dormir e amanheceu com febre e passando muito mal, a enfermeira deu-lhe uma injeção para aliviar suas dores. Ao meio-dia o guerreiro apresentou melhoras e novamente o Adjunto apenas indicou o caminho da prisão, após algumas horas na jaula o homem começou a reclamar, e a fiança foi a promessa de nunca mais se queimar. Um outro guerreiro estava ouvindo um CD do cantor Reginaldo Rossi onde repetia sempre a mesma música, por várias vezes:

- Essa música trás lembranças? Perguntou o Adjunto.

- Sim, mas um homem de verdade não pode chorar por uma mulher. Ele respondeu.

- Meu pai me ensinou três coisas: não chorar por mulher, beber com moderação, para não passar por palhaço e ter amor-próprio. Continuou dizendo.

- O velho foi soldado da borracha e deixou o Ceará, por amor e nunca mais voltou. Finalizou.

Um trecho da música dizia assim “sai da sua vida de cabeça erguida, eu só representava um cheque no final de mês”, o guerreiro estava constrangido por ter se separado da esposa a pouco tempo, no entanto ainda permaneciam amigos, pois ele prestava toda assistência possível.

05 Dez o dia iniciou rendoso com a tropa fazendo um treinamento físico puxado, muitas paredes lixadas, portas pintadas e para surpresa geral os cães de guarda (Spokinha e Guardião) não ofereceram resistência a aplicação de medicamentos e vitamina C via oral. A esposa do Partizano fez contato informando que estava sofrendo fortes dores musculares, algo parecido com fibromialgia, antes do embarque o Adjunto alegou esse motivo para que fosse substituído, porém o comando colocou a instituição acima das pessoas, muitas vezes ele planejou a abandonar aquele lugar deslocando por cem quilômetros pela trilha através selva até alcançar um vilarejo na rodovia transandina e dali partir para cuidar da esposa.

06 Dez, de manhã a aeronave trouxe a Tenente dentista que já destacou várias vezes por ali, o Tenente médico, que já chegou depressivo, mais uma equipe do batalhão de engenharia que veio montar os móveis das casas dos graduados. O médico não estava bem, pois o comando negou a autorização para se deslocar até Recife-PE para prestar assistência a sua mãe com câncer. Por volta das vinte e uma horas o forno da olaria da cidade desabou, os homens lutaram com bravura contra o fogo e o calor, enquanto os proprietários e funcionários da empresa apenas observavam a distância.

07 Dez a tropa realizou uma corrida longa conduzindo os cães pela coleira, os animais aguentaram muito bem o castigo e no final uma corrida livre para verificar o desempenho, os cães ainda chegaram à frente de muitos soldados. O avião búfalo da FAB trouxe um pequeno trator AGRALE para executar os trabalhos que antes eram feitos com o caminhão da COMARA, muito útil no transporte de moveis de madeira para as casas da vila militar. Ao chegar à pista de pouso a aeronave arremeteu para tentar um segundo pouso, o piloto tocou o solo reclamando que havia pessoas andando na pista e solicitou providências para próxima “perna” que seria rápida. Os homens descarregaram o material rapidamente e embarcaram o que coube na viatura, colocaram o restante da mobília á margem da pista para liberar a decolagem, porém não contavam que o piloto daria potência máxima nos motores com a aeronave freada. O sopro do motor arremessou tudo que estava aguardando o caminhão, geladeira, fogão e peças de cama levantaram vôo e um pedaço de madeira quase acertou o motorista do trator que se esquivou rapidamente, a peça atingiu apenas a carenagem do trator. Depois do almoço uma equipe deslocaria para a pista de pouso assim que o avião contactasse via rádio e sobrevoasse a base, conforme procedimento pré-estabelecido, por estranhar a demora do avião, a equipe partiu para o aeródromo e avistaram a aeronave estacionada no centro da área de pouso. Devido à chuva fina o piloto pousou na direção oposta do combinado, a tropa foi recebida com ofensas do comandante da aeronave. O chefe aviador despejou a mobília no piso enlameado e em seguida acionou o motor com a carga ainda sob das asas da aeronave, o sopro do motor espalhou o material no barro vermelho, os colchões encharcaram naquela chuva fina, com certeza jamais secariam totalmente no período chuvoso. A indignação dos aviadores foi tamanha que até abandonaram os civis que a tempos aguardavam o apoio da aeronave para serem transportados para Rio Branco, isso era rotineiro, as forças armadas sempre prestaram assistência aos moradores de regiões inóspitas. O Comandante do destacamento estava treinando para o curso de COMANDOS e procurava desafios para motivar os exercícios, então a tropa foi dividida equipes de natação, corrida e exercícios de solo. Desta maneira assim levavam o chefe a exaustão física enquanto a tropa se revezava no treinamento físico, já que nem todos estavam a fim de se matar nessa missão louca. A esposa do Partizano solicitou seu retorno para prestar-lhe assistência, já que ela apresentava vários problemas de saúde.

No dia 08 Dez choveu muito obrigando a tropa a realizar atividades internas nas instalações, com a graça de Deus logo de manhã chegou um nativo com 9 kg de peixe (branquinha) para trocar por alimentos (escambo) não perecíveis e com validade vencida.

No dia 09 Dez o Partizano teve que mediar um incidente entre a tropa e o comando, pois os homens não aceitavam a proposta de iniciar o expediente as 6:30 hs da manhã, e em represália a essa atitude do chefe os homens trabalharam com imprudência e desleixo. o Partizano foi informado que a tropa havia armado uma rebelião em protesto ao sistema de trabalho imposto pelo Comandante do PEF, durante a reunião um Cabo disse que não aceitava começar o expediente mais cedo enquanto o Tenente permanecia dormindo até as 7:30 hs. A missão do Adjunto era equilibrar os ânimos, não deixando ocorrer abusos dos dois lados, com o apoio dos dois sargentos, homens cuja lealdade transmitia confiança a tropa, fazendo sua verdadeira função que era atuar como elo entre o comando e a tropa. O Adjunto reuniu a tropa na sala de TV e foi falar com o comandante em particular para expor a situação, o Tenente aceitou a “Lei da selva” e a partir daquele dia o expediente iniciaria as 7:30hs para todos, com exceção aos cozinheiros. Uma forte chuva caiu sobre a cidade obrigando a tropa a realizar atividades de limpeza dos moveis e das casas, a noite logo após o jantar, a tropa se reuniu no saguão para contar histórias, sempre falando do amor de Jesus o Partizano ainda encontrava muita reação a palavra de Deus, a semente vai sendo plantada e um dia vai brotar.

No dia 10 Dez os homens se reuniram na sala de TV para assistir o canal pornográfico da antena SKY, mas a sargento de saúde insistia em ver novelas, a maioria venceu por votação, ela saiu furiosa da sala e foi paquerar o cozinheiro deixando marcas de chupadas no braço dele, na madrugada um sargento acordou o Adjunto sorrateiramente para mostrar a dita cuja transando com outro guardião sobre o balcão do refeitório. Os guerreiros destacados ali há mais tempo agiam com cautela diante de situações delicadas, não se manifestavam diante de casos de abusos, desonestidades e outros, pois existia uma chantagem relacionada à prorrogação do tempo do serviço, sempre ameaçando a continuidade do trabalho para o ano seguinte. A Força usava esse mecanismo para obter o silêncio da tropa, o homem que não tivesse posição se tornava um capacho na sociedade, para não perder o emprego os soldados assumiam atos irregulares cometidos por superiores hierárquicos para que estes não fossem prejudicados em suas carreiras.

No dia 11 Dez dois gringos chegaram a cidade pelo rio Purus e passaram o dia bisbilhotando pela vila, o Partizano enviou dois homens com traços europeus para coletar informes sobre os espanhóis que vieram de Puerto Esperanza no Peru, eram turistas visitando essa terra de ninguém onde se pode entrar e sair quando quiser não havia controle de fronteira, os poderosos que insistiam em manter um pelotão avançado não sabem que isso não resolve problemas, apenas garante a presença de brasileiros nessa terra de litígio. No início da noite o plano de alerta foi acionado pela falta de uma pistola 9mm, a tropa vasculhou todas as instalações por vários minutos, até a revelação de que tudo não passava de um ensaio e que a arma havia sido escondida de propósito para ver a reação. No meio da noite o Partizano foi acordado para prestar assistência a um guardião que exagerou na bebida, o pobre rapaz nunca havia bebido antes, depois de vomitar muito ele ficou desacordado por toda a manhã seguinte.

No dia 12 Dez logo de manhã o Partizano foi a escola dominical na Igreja Assembleia de Deus situada a margem do rio em um ponto alto da barranca onde um renque de grandes mangueiras enfeitava a paisagem e depois fez umas fotos da pista de pouso para registrar suas reais dimensões, para analisar as possibilidades de emprego de diversas aeronaves. A tropa passou o dia bebendo e entraram pela noite, inclusive utilizando uma casa da vila militar para simular uma discoteca com direito a jogo de luz, DVD, mulheres e tudo mais. Durante o culto noturno o Partizano observou silhuetas rápidas se deslocando pela penumbra que encobria as arvores, ele reconheceu seus homens através de suas formas e trejeitos no andar, imediatamente os chamou pelo nome, todos foram saindo da escuridão e se agrupando em frente a igreja de madeira e sob a luz de uma fraca lâmpada, os convidou para fazer parte da oração. Os homens se posicionaram nos últimos assentos, seus rostos eram duros e seus pensamentos estavam lá na boate chamada “CHALÉ”, que se localiza a uma centena de metros dali. O Partizano sabia que fora enviado para aquele lugar para permanecer noventa dias mesmo sabendo que sua esposa estava muito doente e que o comando não se importava com isso, então traçou quatro rotas de fuga para retornar a capital, ele comunicou ao Tenente comandante a intenção de abandonar o posto para prestar assistência a esposa e que esperava ação de comando para resolver essa situação.

No dia 13 Dez o Partizano finalizou a leitura do “feiticeiro do alto amazonas”, um livro que conta a história da tribo que descobriu o cipó dos espíritos ou cipó das visões, também conhecido por Santo Daime para os brancos e Ayuasca para os nativos. Iniciou a leitura da bíblia cristã e desde que se propôs a essa missão de uma leitura analítica do livro sagrado, o Adjunto teve o sono perturbado por maus sonhos, os ataques de sonambulismo retornaram, o fato de falar e andar dormindo preocupava os companheiros de alojamentos. Por incrível que pareça alguns homens se enrolavam em tarefas comuns; um não conseguia montar uma cama de madeira e outro deixou o carneirinho recém-nascido fugir para a selva, em contrapartida muitos guerreiros de fé não precisavam ouvir segunda ordem, eram homens que não hesitavam em agir em prol do grupo. Nesse mesmo dia a comunidade preparou uma despedida para o Soldado S1 Filho que cuidou sozinho das instalações da aeronáutica (Comara), um coquetel, um CD com fotos da vila e uma referência elogiosa ao companheiro que foi tão prestativo ao pelotão. O rapaz retornaria para Belém do Pará depois de um ano na selva e com os olhos marejados proferiu as seguintes palavras:

- Nunca fui homenageado, nem em meus aniversários, deixo o meu obrigado a todos os amigos.

Depois da festinha os homens meio ébrios viraram a noite conversando e contando histórias da caserna, casamentos, desamores, amores verdadeiros e filhos.

No dia 14 Dez de manhã Kroomt foi ao campo de pouso para recepcionar a comitiva da aeronáutica que chegou questionando as atividades:

- Por que vocês não melhoraram a parte erodida da pista de pouso? Indagou o oficial.

- Precisamos de um trator com lâmina para fazer o trabalho. Respondeu o Partizano.

- A erosão aconteceria novamente na estação chuvosa, pois os engenheiros não colocaram a tubulação para escoar água por baixo do aterro. Emendou o Partizano.

- Não há linha d’água no local. Afirmou um dos membros da comitiva.

- Então veremos. Retrucou o Adjunto, virando as costas e se retirando para o trator que os transportaria para a base de selva.

Na chegada da base o Partizano desembarcou primeiro, saltando da carreta e apesar de ter ciência que todos esperavam que ele colocasse uma escada para o chefe desembarcar, não o fez, e pode sentir a ira nos olhos da comitiva, “a selva cobra caro”, os comandantes precisavam sentir o pó da terra sobre seus sapatos lustrados, e saber o que se passava na ponta da vanguarda. Antes de partir para o campo de pouso o Partizano determinou que os colchões colocados no sol para secar e automaticamente deveriam ser recolhidos caso voltasse a chover, as 10hs ele reforçou as ordens vendo que se armava um forte temporal. Depois do almoço todos foram dormir deixando o material molhar novamente. Não lhe restou alternativa senão reunir o pessoal e aplicar um clássico esporro coletivo, inclusive com ameaça de licenciamento. O raizeiro que por 14 vezes apagou a brasa do cigarro na pele do antebraço, amanhecera com febre nessa terra inóspita, o médico em depressão profunda e o pior era a carência de meios de evacuação eficiente. Esse rito de autoflagelação era comum entre os guerreiros como prova de valentia perante seus companheiros. o Partizano apelou para um chá de ervas medicinais e orou pela cura daquele miserável. A Oficial dentista realizou uma inspeção dentaria em todos os militares e do por outro lado o Oficial médico, um nerd incompetente que passava o dia baixando música da internet era mais um menino mimado para o qual o Partizano não podia dispensar atenção exclusiva. Ele deveria prestar assistência a comunidade carente ao invés de passar o dia debruçado em um notebook, tomando tarja preta misturado com Santo Daime. Mais uma vez o Adjunto flagrou o mestre cuca entre as coxas da sargento de saúde que estava cumprindo sua missão de vingança contra o marido infiel. O cozinheiro era o mais jovem da equipe, virgem de sexo e bebida, o rapaz bebeu muito para expressar sua paixão pela sargento de saúde, sendo necessário medicá-lo para conter o vômito, em delírios o guardião balbuciava algumas palavras sobre o amor que sentia pela garota da saúde. Logo depois do almoço uma mensagem via rádio informava que o Paulão (comando do batalhão) estava a caminho, em poucos minutos os homens arrumaram tudo e toda a fronteira alertava sobre a visita, mas o chefe não deu as caras. Nesse dia a filha do Partizano completara doze anos e nem devia saber que o pai estava nessa terra de Malboro, a tropa virou a noite contando histórias militares e de caçadas perigosas que alguns já se meteram, os cães de guarda também participaram do futebol com bola de tênis de mesa.

No dia 15 Dez o Adjunto escalou uma equipe de caça para suprir a necessidade de carne, já que os gêneros não chegaram no prazo previsto, um homem armado de fuzil, um armado com rifle .22” e outro com uma escopeta 12” para defesa do grupo. Uma tensão imensa em toda a tropa que aguardava ansiosa o retorno dos amigos. Naquela selva eles estavam à mercê da proteção divina e de suas habilidades pessoais. Um soldado disse que quando criança saiu para caçar, quando abriu a culatra para trocar um cartucho, ele ouviu um som de galho se quebrando, então avistou uma onça pintada a menos de 10 metros, a malvada tomou posição de ataque abanando a calda como um gato pronto para dar o bote, o homem executou uma manobra rápida; carregou, fechou a culatra e disparou a arma, uma cartucheira .36“, cujo golpe cortava profundo sem dar chance para fera que tombou sem vida. O Partizano contou que presenciou duas voadeiras EPG se chocando de frente, era por voltas 17:30hs no rio Tefé, águas escuras e a penumbra da selva colaborava com clima de desastre, os homens foram arremessados nas águas negras, com equipamentos completos, em meio aquela confusão, ele fixou sua atenção em um militar que se destacava no grupo por ser gaúcho e não sabia nadar. Um sargento conseguiu puxar pela alça da pesada mochila que o levava para o fundo do rio como uma ancora. Os soldados nativos se safaram com facilidade, conseguindo nadar até a praia com fuzil e mochila sem maior problema. Em outra situação o piloto conduziu sua voadeira em alta velocidade e sem perceber chocou-se violentamente contra um banco de areia na margem do rio, o condutor foi arremessado em queda hollywoodiana, sendo resgatado ileso. O Comandante contou que se filho recém-nascido fora internado com infecção na bexiga e apresentou refluxo de urina para os rins, o FUSEX não cobriu o tratamento e a UNIMED apenas autorizava internação em enfermaria. O tenente pagou por fora para ter acesso a um apartamento, tudo foi resolvido e o garoto ficou com apenas 25% de capacidade renal.

Os caçadores retornaram por volta da 20hs com apenas uma queixada e um jabuti, muito pouco para uma jornada tão longa, o Adjunto tomou conhecimento que antes de retornar ao PEF, os homens deixaram os melhores animais abatidos em suas casas, era sabido que a escassez de alimentos rondava as famílias dos militares que moravam na vila. A quantidade de carne não era o caso, e sim o temor de perder dois fuzis e um trator que os homens utilizavam para alcançar um local isolado e distante da povoação. Não havia muito que fazer a noite, pois a SKY não apresentava sinal, a internet fora do ar, então só nos restou fazer uma roda de perguntas e respostas sobre assuntos bíblicos.

No dia 16 Dez logo de manhã aconteceu um treinamento físico exagerado, que deixou os homens em marasmo total pelo resto do dia. O Partizano chamou um dos companheiros para dar uma volta pela vila em busca de uma ave “maracanã” prometida por um nativo, mas encontrou o cidadão totalmente embriagado e não quis incomodá-lo. Retornando ao PEF ele pode observar que estavam totalmente isolados do mundo, já que até o rádio VHF parou de funcionar; uma situação difícil, pois eram necessárias quatro horas de voadeira com motor de 40cc até Puerto Esperanza no Peru, e quinze horas rio abaixo até Sena Madureira, que distava 140km de Rio Branco do Acre pela rodovia. O médico passava o dia sem ação e sem assunto, era uma pena que o garoto que só conhecia livros e bancos de escola não conseguia se misturar com a ralé para ganhar muita experiência com a população carente. Os homens ansiavam por um momento de conversa com o Doutor, que deveria trazer uma sensação de paz e tranqüilidade, por incrível que pareça ele era o que mais precisa de ajuda, o coitado nem sabia andar direito. Quando o médico ligava o notebook toda a internet do PEF caia, e imediatamente os homens reagiam, então o Adjunto tomou a iniciativa de desligar o cabo de rede do doutor; a net era a única diversão para os 70 soldados, 10 cabos, 3 sargentos e 3 tenentes, homens que decidiram suportar a vila nos confins do Brasil e que tinha apenas 11 mulheres disponíveis para dividir com a população masculina.

O médico ao sentir que fora boicotado saiu do esconderijo furioso, com as bochechas inchadas e a ira por trás das lentes dos seus óculos escuros era aparente, parecia estar em transe e exigiu que o cabo fosse recolocado. O Adjunto não cedeu a sua tentativa, pois era preciso criar meios de entretenimento para manter os homens tranqüilos neste isolamento e acima de tudo não perder o controle. A dentista da equipe estava ali por perseguição, pois era casada com um sargento e passava por vários constrangimentos no dia a dia, eles não podiam ficar juntos nas festas realizadas no clube dos oficiais, cada um devia frequentar o seu círculo hierárquico. Quando se deslocam para o trabalho no mesmo veículo, um dos dois desembarcava alguns metros antes de chegar ao quartel.

Mais uma vez adentraram a noite falando de satanismo e o foco foi o livro “mensageiro da luz”, escrito por um ex-membro de uma seita que se converteu ao cristianismo. Os homens se interessavam pela origem do espiritismo, mórmons, do são Cipriano, o “capa de aço”; os homens da equipe não fugiam do assunto quando se tratava de viver uma nova vida. Um Cabo contou que morava na cidade de Brasiléia-AC, seu pai bebia muito e sua mãe não suportando aquela situação, deu a criança para a avó materna criar e depois o garoto foi morar com uma tia que era mãe solteira. Algum tempo depois a tia iniciou um relacionamento com um homem que não possuía recurso algum, a mulher edificou e estruturou a vida do vagabundo dando-lhe uma lanchonete completa. O tio passou a perseguir o garoto por sentir ciúmes da tia e da prima soltando piadinhas para ofender o sobrinho que cuidava dos animais domésticos e ainda tinha a incumbência de lavar diariamente a moto do dito cujo e preparar o material utilizado na lanchonete. Certo dia o cidadão chegou bêbado e atacou o garoto com uma faca, este se defendeu com uma ripa de madeira do quintal e a coisa não ficou pior porque a tia chegou logo para apartar a briga. O falso tio ficou três dias sem aparecer em casa e no quarto dia adentrou a casa dizendo:

- Esse vagabundo tem que ir embora daqui.

- Você quem vai embora porque ele é meu parente. Respondeu a tia.

O homem vazou de casa e sua linda lanchonete faliu lentamente, então o Cabo foi convocado para servir ao exército e sua prima começou a namorar com um vagabundo e mais tarde trouxe o homem para morar casa, sempre causando desgaste entre familiares e vizinhos, ao perceber que a tia protegia o genro, o então soldado decidiu sair de casa e uma opção foi destacar em Santa Rosa do Purus.

- Sargento, eu vim para ficar um ano aqui para esquecer a vontade de dar uma facada naquele safado. Finalizou com os olhos marejados.

No dia 17 Dez o auxiliar de informática, morador da vila pediu autorização para visitar seu filho que nascera com apenas 25% da massa cefálica, era necessário dispensar muita atenção ao garoto que possuía a idade mental de um recém-nascido. Esse homem era suspeito de praticar pequenos furtos no interior do PEF e muitos homens já haviam provado o amor de sua mulher, enquanto ele se preocupava em malhar o fisico e consertar computadores. Um soldado contou ao Adjunto que certa vez foi ao médico do quartel porque estava se sentindo muito mal; o médico não diagnosticou problema algum e receitou o clássico AASS, não satisfeito o soldado pediu uma autorização para realizar um teste de malária em clínica de fora; o médico o esculachou dizendo:

-Você está acochambrando soldado.

Então muito irritado o guerreiro voltou para o alojamento e todos perceberam que o companheiro estava furioso, até tremia de raiva; afirmou várias vezes:

- Estou com vontade de esfaquear aquele filho da puta, ele não sabe o que é ser humano.

Vendo as cicatrizes na mão do Partizano um dos homens contou que certa vez durante uma patrulha de reconhecimento dos marcos delimitadores da área do PEF, a equipe realizou a mesma rota várias vezes, em numa parada para descansar um homem se preocupou em afiar seu facão com um esmeril até virar uma navalha. Durante a caminhada o rapaz apoiou o facão no barranco para atravessar um pequeno riacho, a tática não funcionou e a mão do guerreiro deslizou pela lâmina afiada até o fim e muito sangue jorrou molhando o chão da selva, como seqüelas os dedos da mão ficaram rígidos eternamente. Um militar de Minas Gerais devido aos constantes problemas no seu casamento, certo dia resolveu embriagar a esposa e saiu de casa deixando aberta a válvula do botijão de gás para provocar a morte dela. O rapaz retornou depois de quatro horas para conferir se ela já estava morta, porém já era noite quando ele acionou o interruptor para acender a luz, o rapaz não esperava que a faísca pudesse causar tão forte explosão e causar a morte dos dois.

O irmão do prefeito de Santa Rosa do Purus acompanhado de um amigo ficou perdido na selva, vários grupos de busca foram enviados para resgatar a dupla, depois de vários dias de procura, inclusive com emprego de helicóptero da polícia militar, o amigo foi encontrado numa praia bastante abatido, com ferimentos, apresentando sinais de desidratação o que não permitiria mais uma noite na selva. Enquanto o irmão do prefeito foi encontrado em uma aldeia próxima e aparentava não ter sofrido desgaste algum, estava bem-vestido e jogava futebol quando foi encontrado. Muitos afirmavam que a operação foi uma armação do cidadão para fazer contato com os traficantes peruanos.

No dia 18 Dez o comandante do PEF decidiu visitar a cidade Puerto Esperanza no Peru, que estava situada a três horas subindo o rio Purus, tudo começou errado; o motor não queria funcionar, então o Partizano descobriu que faltava uma peça, foi mais difícil ainda colocar o barco na água, pois o nível do rio baixou cerca de oito metros do normal. Com auxílio do trator até bem próximo da barranca, empregando uma manobra de força com alguns cabos a voadeira deslizou pela parede lamacenta até tocar na água, um esforço em vão, pois o motor não funcionou e a viagem foi adiada para o próximo dia.

No dia 19 Dez um soldado acordou o Adjunto às quatro horas da manhã para ir à igreja e pela primeira vez ele participou de uma consagração, cinqüenta minutos de oração na posição ajoelhada e com a cabeça encostada em um banco de madeira, o Partizano passou o tempo todo se contorcendo pelas fortes dores no joelho, mas não desistiu. De manhã aconteceu uma reunião com o pessoal para tentar descobrir quem furtou dez reais, um espelho e uma faca, o que resultou em desconfiança entre os soldados. No fim da tarde chegou o motor da polícia federal (15HP), muito pequeno para empurrara uma voadeira EPG.

No dia 20 Dez a equipe partiu rumo as terras peruanas subindo o rio onde avistaram várias tribos em suas margens, cruzaram por muitas embarcações de baixo calado que se alagam facilmente pela marola do motor de popa, então a ordem era ultrapassar devagar e na diagonal para não anular a força dos motores rabetas. O oficial médico, um nerd, que nos acompanhava, ia fotografando o tempo todo, se movendo perigosamente no interior da embarcação e por várias vezes o Partizano solicitou ao Comandante que o orientasse para permanecer imóvel na sua posição. Até que o piloto da embarcação, um soldado nativo kaxinawa, reclamou da atitude do doutor, então enfurecido o Adjunto o puxou pelos ombros:

- O senhor sabe nadar tenente? Gritou no ouvido dele.

- Sei não! Respondeu o médico.

- Então se senta aí, se o barco vai afundar, vou ter que salvar sua vida. Finalizou o Adjunto.

Depois de três horas e meia a o barco foi ancorado em um rebocador de um brasileiro que trabalhava com madeira extraída em terras peruanas. Um breve tour pela cidade que erguia no coração da selva, contava com restaurantes e campo de pouso asfaltado, uma emissora de rádio e uma praça de dar show em muita cidade de grande porte. Puerto Esperanza se dividia em cidade baixa e cidade alta, muitos brasileiros e espanhóis moravam ali, um reduto de homossexuais que sustentavam o lema local “Tierra de Hombres e de machos”. Um lugar ermo que só pode ser alcançado de avião ou barco e que a maioria da população é pendulante vinda de Pucalpa e Cuzco para trabalhar. Depois de almoçar carne de veado com salada e sob forte chuva a equipe partiu feroz para a cidade baixa com a intenção de gastar apenas duas horas de “baixada”, ledo engano, pois durante a tarde o céu chuvoso projetava a sombra das arvores sobre o rio camuflando obstaculos (Troncos submersos, bancos de areia) que poderiam quebrar a hélice do motor que já havia sofrido três panes e por sorte o piloto era experiente na arte da navegação e evitou à deriva. O Partizano comprou um macaco bigodeiro por dez soles e o alojou na curva do seu cotovelo tentando escondê-lo da chuva fria que caia intensamente, graças a Deus chegaram ao porto do PEF, em segurança.

No dia 21 Dez chegou um barco com suprimentos e material de construção, todos os homens foram empregados na operação de descarregamento, uma equipe passava do barco para micro trator e para o caminhão da COMARA para transportar os gêneros do porto da cidade a uma distância de 1 km até o PEF. Outra equipe descarrega rapidamente o material no portão e a terceira equipe carregava para depósito do almoxarifado, onde a quarta equipe classificava por tipo e categoria. Um guardião aos prantos confessou que estava com grandes saudades de sua mãe que o criou sozinha, pois o pai não o reconheceu como filho, a mãe nunca pediu pensão alimentícia e não permitiu que os dois se encontrassem. O pai era fazendeiro em Rio Branco do Acre, os meio-irmãos de outro casamento desfrutavam de todo conforto possível, enquanto o rapaz vivia do suor do trabalho para não deixar que seu filho recém-nascido seja privado da atenção e educação necessária:

- Não quero vê-lo nunca na minha frente. Afirmou com voz trêmula:

Outro companheiro casou-se com dezoito anos e sua esposa com apenas quinze anos, tiveram dois filhos e naquele momento estavam separados, pois ele não aceitava ficar em segundo plano, não concordava com a maneira dela se vestir, sua preguiça doméstica e falta de higiene pessoal. Ele veio destacar naquela selva para fugir de tudo isso, e estava namorando a menina mais considerada da vila e pretendia desposá-la. A sua digníssima não cuidava do asseio corporal e deixava as crianças sujas e peladas o dia inteiro, a casa vivia cheia de irmãos, primos e parentes que somente colaboraram para destruição do lar. Por várias vezes o Adjunto tentou convencê-lo a pensar mais sobre o assunto, mas o garoto estava decidido a ficar com a namorada de infância que não pretendia perdê-la novamente.

Um tal de cabo margarida quando bebia se tornava agressivo, passava vários dias sem aparecer em casa, mesmo assim sua esposa o honrava. Certa vez ele comprou um revólver calibre .22” e pediu uma bala emprestada a um amigo da polícia militar e ao recebê-la colocou rapidamente no tambor da arma e realizou um disparo no estomago do PM, que mesmo ferido sacou um .38 e disparou duas vezes em pontos vitais do cidadão, provocando um encontro prematuro com o criador.

No dia 22 Dez de manhã apesar da chuva densa que caia, um piloto louco conseguiu pousar a pequena aeronave que trouxe o novo Comandante dos próximos dois anos. Apesar de muito jovem o chefe contava com a simpatia dos homens, que não se sentiam liderados pelo chefe anterior que nem participou da ceia do Natal junto da tropa. O novo comandante era o mais jovem da corporação e já demonstrava valores de um verdadeiro lider, um chefe acessivel e bem aceito pela tropa destacada. Na festividade do ano novo o jovem tenente foi tentado de todas as formas por uma garota que havia brigado com o namorado e estava atirando para todos os lados, ela trajava uma microssaia que deixava aparecer sua calcinha branca em todas as posições que ela tomava. Sempre fitando os olhos do comandante e instigando o rapaz que desviava o olhar. Percebendo a situação, o Adjunto convidou o chefe para dar uma volta pelo pátio para expelir os pensamentos impuros.

No dia 23 Dez o Partizano se preparou para ir à igreja e foi surpreendido por uma forte chuva, aguardou uns instantes e mesmo assim as forças ocultas não o impediram de ir para o templo, debaixo de chuva fina ele se deslocava saltando entre as poças de água e procurando pontos secos para pisar naquela estrada escura e barrenta. Chegando próximo ao rio um cãozinho branco e pequeno parecia estar com frio e o esperava no centro da estrada, ao se aproximar do animal o Partizano viu que seus olhos pareciam duas bolas de fogo, imaginou que estivesse endemoniado e ultrapassou sem mais conversa, mas de repente saltou para frente ao sentir uma abocanhada na perna, o animal foi veloz e astuto no ataque. o Partizano se safou com sorte, pois estava usando uma calça jeans de tecido grosso e de boca larga. Os dentes do cachorrinho apenas perfuraram o pano e depois o cão se afastou sem sucesso e o Partizano ficou parado na chuva olhando e repreendendo aquela força maligna. Depois do culto ele fez o caminho de volta e encontrou o bichinho dormindo em um banco de madeira molhado que ficava na barranca do rio, então se sentou próximo e disse

- Sei que você não queria fazer isso, você foi usado para me ferir.

No dia 25 Dez de manhã enquanto aguardava sua vez na fila da barbearia ou Kroomt ouviu um velho dizer que havia sido convidado para um almoço na casa de um amigo, mas recusou porque o amigo tinha um costume feio de embriagar as pessoas e depois de tudo deflorava o companheiro de cachaça. Ninguém participava de suas festas porque o malvado já fez várias vítimas no povoado. Outro velho contava para todos ali presentes, que sempre antes de sair para uma boa caçada passava o cano do rifle nas partes íntimas da esposa para dar sorte no disparo, e nunca retornou de uma caçada sem ter logrado êxito.

No dia 26 Dez aconteceu a visita do comandante geral, que conhecia o Adjunto de outro quartel onde serviram juntos, enquanto o chefe ainda era um capitão, os dois caminharam pela vila relembrando as façanhas realizadas a mais de quinze anos atrás na fronteira oeste do pantanal mato-grossense. Em seguida, após expor o problema de saúde da esposa o Partizano obteve autorizou para retornar à capital, logo que o novo comandante estivesse a par de toda situação do PEF.

No dia 27 Dez o Partizano arrumou as coisas e se preparou para partir dali em um barco de pesca que desceria o rio Purus, era a única chance de ir para casa nos próximos quinze dias, ele entrou na embarcação e encontrou os marujos dormindo em redes sobre as cargas. O comandante levantou a coberta antes de dizer que somente zarparia na outra manhã quando melhorasse da ressaca do Natal. o Partizano retornou ao PEF esperando o relógio caminhar e na área cercada próxima ao alojamento ouviu latidos, então presenciou uma cena de cinema; um cachorrinho defendia ferozmente um osso sob suas patas, cercado por um bando de urubus que desenrolava uma incansavelmente estratégia; um distraia o cãozinho e os demais investiam sobre o osso, havia luta, mordida, bicada e assim a tarde passou. Um guerreiro contou que sentia saudades de sua mãe, ela era viúva e casou-se novamente, mas agora estava preocupado com recente desaparecimento do padrasto, o soldado afirmou que somente foi voluntário para servir nesse lugar para fugir do matrimônio forçado, e que não suportava mais a pressão da noiva. Seus olhos marejados brilhavam na noite escura e sutilmente o rapaz enxugou o rosto tentando esconder as lágrimas. O Partizano o convidou para ir à igreja, o rapaz concordou e ao término do culto disse que foi o melhor natal de seus vinte anos de idade. No meio da madrugada um soldado bradou “olha o jacaré”, todos formaram um círculo em torno do animal que por engano saiu do rio e atraído pelas luzes veio parar no pátio, onde o cozinheiro agora sorria por ter conseguido “comida”. Rapidamente dois homens saltaram dominando o bicho que acabou na caixa d’água, onde aguardava a hora do abate.

No dia 28 Dez o Partizano agarrou suas mochilas e partiu em direção ao porto com intenção de embarcar, no caminho dois soldados insistiram em carregar as pesadas mochilas, ambos colocaram as mochilas a tiracolo para caminhar uns trezentos metros, o Partizano percebeu a pressão nas jugulares que estavam saltadas no pescoço deles. Então sugeriu que dividissem o peso em três pontos de apoio, com voz rouca eles recusaram:

- Negativo chefe, o senhor não vai carregar peso hoje. Disseram os ébrios.

Ao chegar à barranca ainda coberta pela cerração, o Partizano encontrou o comandante do barco que chegava de uma noitada no velho Chalé bar, disse assim:

- Está muito cedo, vamos dormir um pouco e logo vamos descer o rio.

o Partizano esperou sentado no banco de madeira no alto da barranca em companhia dos dois carregadores bêbados e depois de alguns minutos presenciou um dos homens tombando para trás estrangulado pelo peso da mochila. O outro avisou que ia descer a barranca para colocar a mochila dentro do barco, o Partizano concordou com aceno de cabeça. Como todos os rios amazônicos o Purus apresenta barrancas altas e escorregadias, para alcançar os barcos os marujos usam pranchões de madeira que exigem certa destreza para ultrapassá-los; o guerreiro cambaleou, mas, não caiu e conseguiu subir na embarcação. O tempo passou e preocupado com o rapaz que não retornava o Partizano foi verificar o acontecido, então encontrou o rapaz deitado no assoalho do barco sobre a mochila que carregava, uma cena hilária que ele registrou com várias poses para não passar em branco. Em seguida acordou o garoto que tentou subir rastejando e se agarrando na grama que cobria a lama da barranca, desta vez não foi diferente com o outro amigo acometido de uma forte dor de barriga e teve que correr para chegar a tempo ao banheiro. As Nove horas o barco pesqueiro desceu o rio Purus com vinte pessoas a bordo; uma cozinheira, cinco pescadores, um policial que traficante de aves raras, um pastor evangélico e sua esposa com cinco filhos, o pior é que não havia banheiro no barco. O capitão atrelou dois barcos para economizar combustível e poupar os motores durante a descida no rio que fazia curvas sinuosas. Por volta das vinte horas um forte estrondo balançou as redes, o piloto disse que não foi banco de areia nem barranca, mas não soube explicar a rachadura na proa do barco. Os homens ainda estavam sonolentos, sob efeito de bebidas alcoólicas, o comandante determinou que ancorassem para dormir um pouco.

No dia 29 Dez no novo deslocamento um cabo de atrelamento se partiu desencadeando uma correria danada entre os tripulantes que contornaram com rapidez a situação. o Partizano percebeu que os motores de rabeta B18 estavam trabalhando com sobrecarga, que para descer o rio não era necessária tanta potência, o barco poderia deslizar pela correnteza normal do rio. O comandante mandou desligar dois motores desregulados para evitar consumo de óleo diesel e nesse caso ficariam à deriva nesse lugar desabitado. Na tarde do segundo dia a água potável acabou e todos bebiam a água barrenta do rio sem cerimônia, o Partizano temendo doenças tropicais passou a tomar a água fervida que saia do resfriamento do motor misturada com creme dental. Chegando à cidade de Manoel Urbano onde depois de subir uma longa escadaria, conseguiram na delegacia local um galão de água limpa e óleo diesel para chegar ao destino. Continuando a viagem passaram por uma fazenda localizada bem distante da margem do rio, onde morava o tal Nonato que vivia com quatro mulheres na mesma casa, todos os dias no fim da tarde, ele aplicava uma surra fenomenal em uma delas, fazendo assim com que elas convivessem em harmonia.

No dia 30 Dez a equipe vivia bêbada e suja de graxa, mas eram homens bons na labuta que somente precisam de apoio para recuperar a dignidade; entre eles um garoto que executava todas as tarefas da atividade pesqueira, era o filho do comandante que agia com autoridade sobre os demais, um garoto de doze anos que conhecia todos os procedimentos da arte náutica e da pescaria, não solicitava nada, quando necessário emitia ordens. Na madrugada caiu um temporal violento que os obrigou a baixar as lonas laterais e aportar na barranca para dormir, já que não havia possibilidade de prosseguir com a visibilidade reduzida. Por volta das vinte e duas horas o barco entrou na calha do rio Iaco que banha o município de Sena Madureira -AC. Ao longe o Partizano avistou uma luz de lanterna quebrada de um veículo, era sua esposa com seu velho Polo 1.8 M.I. que o aguardava, ele sacou da mochila uma farda camuflada e ofereceu ao comandante como pagamento pela viagem.

- Você adivinhou meu pensamento. Ele respondeu num sorriso.

O piloto foi presenteado com vinte fitas cassete, pois ninguém aguentava mais ouvir Sandro Lucio depois de quatro dias.