1502, Tormenta em Alto-mar
Capítulo de um dos meus livros "Mil Anos, O Pacto" postado para leitura no Clube de Autores como Frank P Andrew.
A esquadra do capitão-mor Gadea Guillén De Alvar, quase quinze dias após terem ultrapassado a altura de o arquipélago da Ilha da Madeira e o dos Açores, depararam-se com uma incrível calmaria. Na quietude de a atroz solidão do oceano, os sete na-vios bastante afastados um dos outros, aguardavam à deriva ventos propícios à navegação. Fazia-se o silêncio, um cavo si-lêncio mais além do que mortal. Os homens a bordo, fastios pela modorra por não fazerem quase nada durante seis dias e seis noites sob uma impotente agonia, no entardecer do sétimo dia, todos os de bordo da frota de Gadea, perpetravam um sono mórbido. O mestre da nau capitânia Conceição, que sem des-canso ou queixa alguma, passava o tempo que lhe fosse possível doar, permanecendo atento e em pé de guarda ao lado onde mui-tos dormiam deitados, sentados ou do jeito que se pudesse em qualquer canto, do imundo convés, sem nunca afastar os olhos do horizonte pelado de nuvens. Porém ao avistar ao longe a aproximação de uma tremenda e larga escuridão provocada por neblina tão negra quanto às noites nos oceanos sem a brilhante luz da Lua e das estrelas, às pressas, dava o alarme badalando com muita ferocidade o sino plantado no castelo de popa, des-pertando com brusquidão a tripulação, os soldados e passageiros da nau capitânia Conceição.
Gadea que não dormiu quase nada aqueles tormentosos dias, pois nunca enfrentara situação como a que estavam sofrendo, encontrava-se preocupada com a moral da tripulação e passagei-ros, estudando as cartas náuticas na sua ancha bancada tão bem trabalhada pelo mestre marceneiro, o artesão da nau Conceição. O sino badalava alto e Gadea assustara-se pela desvairada vio-lência do estridulante som da enorme campana.
Romulo descansava despreocupado, pois em realidade a capi-tã não mais deixou que ele saísse do seu lado. Gostara de como o havia instruído na arte do amor e, de como ele aprendera as lições tão rapidamente sem nenhum desvio previamente autori-zado por ela.
— O que é que está acontecendo e por que tamanha balbúr-dia? — Gadea quis saber do mestre que permanecera quase to-dos os dias e noites em estado de prontidão ao apresentar-se frente a ele.
— Olhe para o ocidente, capitã, ali um pouco mais a sudoes-te. O que vêm a ser aquilo?
— Nossa; o que é que nós temos nas nossas fuças por aque-las bandas? — observou com admiração. Não conseguia adivi-nhar o que de tão aterrorizante estava se aproximando da sua esquadra. — Dá-me cá a tua luneta.
— Em sua mão, capitã — disse o mestre, de supetão. — Nem desconfio o que possa essa coisa vir a ser, capitã. Ou é a ira de Deus ou é a luxúria do Diabo. — Desabrochou o mestre impensadamente sua voz de trovão.
— Fecha essa desdentada merda de boca, mestre, pois já nos encontramos encrencados o bastante, além de, aperreados com a maldita e entediante calmaria. A nossa viagem já está mais do que atrasada e prejudicada por isso.
— E vai se atrasar ainda mais, capitã! — afirmou o imediato Conrado que, se mantinha ao lado de eles dois, de olhar fixo no horizonte de boca fechada até aquele exato momento.
— Deixa de também ser agourento e vá chamar imediata-mente o sinaleiro Romulo. Ele se encontra descansando na mi-nha cabine.
Em minutos:
— O que deseja de mim, capitã? — perguntou Romulo, ago-ra sim alarmado de vez ao ver a escuridão dos diabos que, a “bons e nobres ventos” se aproximava deles numa velocidade desmedida. Velocidade de arrepiar os esqueletos de todos os mortos. Os de eles mesmo e, os daqueles que, indubitavelmente ainda, “navegariam” rumo a perdição. Para o Inferno em com-panhia da “senhora” dona morte.
— Romulo, vá até o castelo de proa e transmita à caravela Santa Clara o seguinte. — Capitão Alonso Del Toro ordena aos outros navios para que durante a tempestade que está se apro-ximando da gente, se mantenham bem afastados uns dos outros. Isso é imperativo de se fazer. Não será de o meu gosto saber de alguma caravela se chocando com outra. — Anda rápido, ho-mem.
— Assim será feito, capitã!
— Aniceto Conrado, vá ordenar ao Calisto, ao Hipólito e ao timoneiro para que mantenham a nau sempre de frente para a tempestade, de a proa na direção das gigantescas ondas que sem dúvida alguma teremos que enfrentar. Outra coisa, “plante” alguns marinheiros nas portas dos camarotes onde estão alojadas as mulheres com ordens para que não as deixem sair por decreto algum. Depois vá até o porão onde está o material de reparos urgentes e recolha cordas para que os homens que permanece-rem ao sabor dos ventos e da chuva da tempestade no convés se amarrem a elas a fim de não serem lançados ao mar aberto e revoltoso. Vá depressa; leve consigo também alguma ajuda. Vou permanecer na minha cabine trabalhando no que se poderá fazer para salvar-nos. Na tua volta peça para que, imediatamente re-colham e amarrem da melhor maneira possível e com firmeza todo o velame. Quero os trinqueiros Telesforo e o Zoilo junto dos marinheiros que trabalham com o velame, eles também devem ajudar a fazer esse trabalho. Com a ajuda de os dois tudo dará certo! Ordene isso!
Às 18h45min daquele “santo” e tenebroso escurecer, os ven-tos e a tormenta antes de a escuridão os cobrir por completo, açoitava toda a frota sem temor ou remorso algum. O sota-piloto lutava na roda do enorme timão com a ajuda do timoneiro para manter a nau como o ordenado pela capitã Gadea. Por di-versas vezes, Calisto teve de ir a ajudar os homens amarrados à maquinaria do timão da nau Conceição para que os dois não fossem, mesmo que amarrados levados aos trompaços ao mar, devido à força dinâmica das águas transmitida desde o leme de ló até o timão, se apresentarem poderosíssima.
Às 19h30min a escuridão já lhes caía em cima como à ce-gueira de um gato de olhos furados depois de uma valente rinha com um terrível inimigo e, a tempestade abatia os sete navios como se fossem reses a caminho do matadouro, provocando o pânico a todos os embarcados da frota.
Na nau capitânia Conceição os gritos eram de terror e de angústia, assim como nas demais caravelas. A chuva fortíssima unia-se maritalmente as gigantescas ondas geradas pelos fortís-simos ventos no sentido Leste-Oeste, que, atravessavam o tom-badilho sobre o convés superior e toda a nau como avantesmas assustadoras, de lado a lado, inundando de água salgada e água doce, pela chuva violentíssima mudando de estado a toda hora. E isso a todos os navios da frota comandada pela capitã Gadea Guillén De Alvar desde a nau capitânia Conceição.
Os redemoinhos gerados em conluio com os fortes ventos desde o profundo oceano faziam balouçar todos os navios da esquadra com se os mesmos fossem os barquinhos construídos em cascas de nozes que as crianças costumavam, numa guerra de mentirinha, brincarem. O mestre de ordens já havia autoriza-do para que as bombas fossem acionadas pelos grumetes e de que, fossem mantidas funcionando retirando a água que se fazia nos porões sem nenhuma interrupção.
Tudo na frota era o caos.
A essa altura, alguns marinheiros, também tiveram de ir aju-dar o Calisto o Hipólito e o timoneiro. O poder do mar era do-minador e absoluto. Lutava-se contra a ira Deus e de a sanha de morte do insaciável Diabo, ou, até quem é que poderia afirma-lo: a de os Dois poderosos ao mesmo tempo também lutando entre Si. Qual de os Dois sairia vencedor por luta tão desigual?
O mastro principal da nau capitânia Conceição por enquanto aguentava firme a disputa de Deus contra Satanás e contra eles mesmo ou, talvez a de Aquele que estivesse, por momentos, levando a inglória vantagem naquela safarrascada. O que pode-ria vir a ser, quem venceria a batalha final para que, aqueles que morressem leva-los aos Céus ou ao Inferno. Nas desmedidas subidas da proa aos céus escuros, e até mesmo as grandiosas e estrondosas descidas até o inferno do mar agitado, o terror de todos, marinheiros ou não, era imensurável. Uma das bombas da nau falhou e muitos marinheiros tiveram de ir retirar a água do fundo do casco aos baldes numa fila de mais de trinta homens até o convés para joga-la de volta ao mar. Inúmeros alimentos foram perdidos indo parar também nos baldes para fora dos po-rões e, a seguir, para fora do navio; para o mar.
Por felicidade, a água potável estava bem armazenada e amarrada com segurança nos enormes tonéis de carvalho.
Contudo, duas das caravelas não tiveram sorte, a Virgen San-ta e a Mi Compañera, ambas acabaram naufragando durante o ardido “calor” da tempestade. Ninguém de as duas naves pôde salvar-se depois de o abalroamento da caravela Virgen Santa pela Mi Compañera. A Virgen Santa teve o mastro principal par-tido quase na sua base com a força da violentíssima pancada, caiu em pé, arrebentando o convés na direção do casco da em-barcação fazendo um enorme rombo no mesmo. A água do mar não teve piedade de ninguém ou de coisa alguma. O Diabo agira por conta de Ele mesmo. Fizera com perfeição a sua parte, a própria sangria. A apelação a Deus através de orações de todos os da frota não surtira o efeito desejado.
Mas não mesmo.
Já, a caravela Mi Compañera, depois do violentíssimo encon-tro com a Virgen Santa, adernando a estibordo, de pouco em pouco ia ficando de cabeça para baixo até soçobrar por comple-to, também sem a mínima chance de à sobrevivência de alguma alma, pecadora ou não. Desde o infinito do céu caíam fulminan-tes raios que, por sorte ou não, por instantes iluminavam a com-pleta escuridão, dando por momentos, pequenos relances de onde os do convés poderiam encontra-se. Por uma excepcional sorte nenhum raio atingiu os navios à deriva. Quando os primei-ros raios de luz do dia se fizeram presente, a tormenta aos pou-cos ia dissipando-se.
Por fim, chegou à luz acalorada de o Sol com ventos mode-rados, ainda na direção Leste-Oeste.
— Imediato, mande fazer a contagem dos homens. Já verifi-quei as cabines das mulheres, nenhuma baixa, o que isso é muito bom. Romulo peça para que alguém te ajude a posicionar-te no observatório do mastro principal para ver se você consegue en-xergar os demais navios da esquadra. Se avistados, que te infor-mem as baixas. Isso por se por ventura houve alguma, assim como se perdemos algum navio; espero que não! Aniceto, quan-do avistares o marinheiro Pepe, que é o mais instruído da nau, diga-lhe para que se dirija a mim na cabine imediatamente. — Gadea exigiu o cumprimento das ordens de todos mais do que depressa depois de o que passaram no mar, mas não em desespe-ro.
Já na cabine:
— Às suas ordens, capitã, deseja falar comigo? — perguntou o marinheiro Pepe, preocupado como todo mundo se encontrava na nau capitânia Conceição.
— Pepe, leve alguns homens para os porões com você a fim de verificar o estado do casco da nau. Depois me informe da situação, e o quanto antes melhor. Vamos tomar rumo avante em pouquíssimas horas.
Mais tarde junto a roda do leme:
— Piloto, desejo saber o mais rápido possível onde nós nos encontramos, ou melhor, exatamente o lugar onde nós viemos parar quando da calmaria passamos a tempestade. Da nossa po-sição exata no oceano! Tomara que não estejamos de volta às cercanias dos Açores ou da Ilha da Madeira. Seria um atraso descomunal, uma perda de tempo brutal e desnecessário. Se isso aconteceu e, espero que não, por falta de víveres teremos que nos dirigir a Lisboa para o reabastecimento e uma nova partida.
— Assim que escurecer e, se a noite se tornar clara, com a luz das estrelas, em pouco tempo estarei apto a informar nossa posição exata neste imenso oceano, capitã. Posso de imediato ir olhar às suas cartas náuticas?
— Estão abertas em cima da bancada junto com os instru-mentos de navegação, pode ir vê-los.
— Obrigado, capitã!
Agradeceu e saiu de perto de todos os que se encontravam ao seu lado com exagerada rapidez.
— Capitã Gadea, perdemos dois navios — anunciava Romu-lo De Toledo antes de a capitã retornar ao camarote, — nin-guém se salvou; foram às caravelas Virgen Santa e a Mi Compa-ñera que naufragaram após colidirem na escuridão da tormenta. Coisa alguma foi possível fazer para salvar qualquer marinheiro que fosse. As demais caravelas estavam longe demais dos navios acidentados. Só puderam testemunhar o que ocorreu devido às luzes das explosões constantes dos raios caindo do céu na água. Se não fossem a luminosidade das explosões dos raios caídos, testemunha alguma haveria para contar história.
Romulo De Toledo, informava a desgraceira antes de descer da plataforma de observação instalada no mastro principal. Um dos marinheiros ajudara-o a descer em segurança do mastro por uma corda amarrada na cintura até o convés.
— Que pena. . . sinto muito. . . — observou Gadea com sin-ceridade. Seria essa a sua realidade? — Romulo, vá ver se o pilo-to Calixto que está no meu camarote verificando as cartas náuti-cas necessita de alguma ajuda para o que eu pedi que ele fizesse.
Sem abrir mais a boca, Gadea dando meia-volta dirigiu-se a passos largos para ver como andava o ânimo dos seus subordi-nados e demais passageiros. Mais tarde se dirigiria para o seu alojamento descansar um pouco até que à noite oferece-se às fuças, na torcida de que fosse a mais clara noite de toda sua vi-da, na esperança de ser informada onde se encontravam no iso-lamento do imenso oceano, com certa precisão. Aonde exata-mente foram parar depois de cessada a ira de Deus e, ou a ousa-dia do Diabo, tentando adiantar-se ao Criador para leva-los ao Inferno para se divertir quando Ele por ali se encontrasse com as almas que conseguisse, de a pequena frota em luta arrebanhar para Si.
Frank P Andrew
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