Uma Noite, uma História - reeditado
Não foi preciso caminhar muito para encontrar o vilarejo que eu vinha procurando. Minhas botas enlameadas eram o maior sinal do quanto já tinha andado. Agora que o sol baixara um pouco, diminuindo o frio intenso, removi o casaco e o joguei sobre o ombro. Atravessara boa parte de um terreno alagado pelas recentes chuvas e seguia agora por uma estrada asfaltada. Por mais de duas horas nenhuma casa, nenhum animal ou outro ser vivente cruzara o meu caminho. Havia tido meu último contato com pessoas na noite anterior quando me hospedei em casa de Valeriana.
Finalmente avistei ainda, como um ponto distante e diminuto, o que se assemelhava a um povoado. Os dois lados da estrada davam pouco sinal de vida, a exceção de arbustos ressequidos e, aqui e ali, sinais de mata verde rasteira; o cenário começava a adquirir a partir daquele trecho um pouco mais de vida. Já podia ver os telhados das casas enfileiradas de aspecto muito pobre dominando a paisagem. À medida que eu ia descendo a visão se ampliava para mais longe. De lá para adiante havia movimento; a estrada cruzava com outra muito mais larga onde já carruagens se entrecruzavam repletas de passageiros. Bastava-me, porém, o pequeno povoado que se aproximava onde pretendia descansar para seguir viagem.
Era uma aldeia; o movimento, tão diverso de onde eu tinha estado, parecia animador. Mais de perto se podia distinguir melhor uma casinha de outra pelas diferenças da decoração frontal. Algumas tinham quintal onde crianças corriam soltas, perseguidas por cães, porcos e galinhas e pareciam transmitir melhores sensações. Outras, se não fossem os jardins frontais ou os muros coloridos, dir-se-ia abandonadas, tão silenciosas e solitárias se mostravam. Ruazinhas de terra separavam as residências. Um cheiro de curral, um mofo de estrebaria era trazido pelo ar frio. Carroças empilhavam-se num enorme pátio; o chão estava úmido da última chuva, pequenas poças d’água se formavam no topo dos veículos cobertos. O chão estava tomado de folhas secas, caídas recentemente das árvores e trazidas até ali pela ventania; os tonéis de água acumulavam essas folhas.
Vasos de flores enfileirados, apetrechos de jardinagem rente às paredes úmidas, montículos de terra para além de um cercado de arame; enxadas, baldes, mangueira de rega, caixas com mudas haviam sido largados depois que sol da tarde começou a se despedir. O grande portão de madeira estava aberto fazendo-me, no meio daquela visão, notar um tanque ao lado da estufa de plantas. A sede que já sentia há horas me fez atravessá-lo e provar um pouco do líquido precioso
- Boa tarde! Em que posso ser útil? - disse a voz nas minhas costas. Um homem quase velho, chapéu de palha, afinava varetas de bambu, sentado a um caixote ao canto do muro; ele aproveitava a sombra já quase inexistentente. Tirei o meu chapéu e sorri ao cumprimentá-lo, pedindo desculpas pela intromissão.
- O senhor não tem do que se desculpar; isto aqui é para os hóspedes - disse, também tirando o chapéu e recolocando-o em seguida. Cofiou a barba branca e continuou o que vinha fazendo
- Então é uma hospedaria? - perguntei, sem conseguir esconder minha curiosidade. - Encontrei tudo tão silencioso e sem movimento de gente.
- Na verdade, não é por enquanto. Mas, terei o prazer de receber e hospedar o meu primeiro cliente.
Combinamos o valor, ele explicou o que tinha para me oferecer e logo aceitei, mesmo porque o cansaço e a fome tiravam-me o ânimo de procurar qualquer coisa em outra parte. Ele gritou por um nome que não consegui compreender e apareceu na varanda uma moça vinda de dentro da casa. Apresentou-me como sua filha, uma morena, bastante nova, cheia de timidez e com um sorriso encantador, embora não fosse de todo bonita. Acompanhando-a, alcançamos um corredor cheio de cômodos e entramos num dos primeiros. Não era grande, mas gostei da limpeza e da ventilação, pois uma grande janela deixava penetrar um ar fresco, além de proporcionar uma ampla visão do exterior. Depois de um banho quente que me revigorou e uma sopa grossa e reforçada com carne e legumes me dispus a sair e conversar com o meu anfitrião. A história que me contou não saiu mais de minha memória desde o dia em que visitei aquele povoado e ali me hospedei.
Rudolf era o nome do meu anfitrião.
A agricultura não estava no seu sangue, mas para sobreviver à fome teve que recorrer a ela como um único meio ao seu dispor. À medida que me contava sua história e manipulava as varetas de bambu para sustentação dos pés de tomate que já começavam a florescer além do cercado, eu reparava nas mãos calosas e na pela tostada pelo sol de sua lavoura. Para educar Quévia, agora eu entendia o nome de sua menina, após a morte da mulher, contou com a ajuda da força de paz e proteção aos reformados de guerra. Mais de quinze anos já nos distanciava da segunda grande guerra, mas os momentos que viveu deixaram marcas profundas em seu jeito de ser.
- Os trabalhos no front de batalha - me dizia - além de limpar as armas, transportar as munições e arrumar os acampamentos também incluíam enterrar os companheiros mortos no último combate. As forças de Hitler haviam entrado em Moscou na noite anterior. Conseguimos empurrar boa parte dos inimigos para a entrada do deserto, mas eram em grande número e suas armas muito mais precisas e poderosas. Nossas baixas aumentavam a cada dia e eu já achava que íamos nos entregar e teríamos feito isto não fosse a inteligência do nosso comandante. As noites frias eram insuportáveis, obuses cruzavam o céu constantemente e, tirando as trincheiras que nos protegiam, não contávamos com mais nada além da sorte. E foi ela que nos salvou a todos.
“Depois de uma noite de trégua, antes de amanhecer o dia, nos apressamos em resgatar e sepultar os corpos dos companheiros. Encontramos, para nossa grande surpresa, um soldado inimigo morto entre os nossos; não tínhamos ideia de como teria chegado até ali. Pelas marcas que tinha parecia ter travado uma batalha corpo a corpo ou teria sido surpreendido ao tentar alguma incursão em nosso território. Ninguém sabia dizer o que pode ter acontecido, o que nos fez concluir que o que lhe matou também acabou morrendo. Por sugestão do capitão, para que tivéssemos uma ideia precisa da força do inimigo deveríamos fazer o que tentou fazer o alemão, ou seja, chegar próximo deles e estudá-los. Mas faríamos diferente, enviaríamos um dos soldados, vestido no uniforme alemão para imiscuir-se como espião e voltar em segurança trazendo informações que nos permitisse um ataque certeiro. Mas acabou sendo eu o escolhido por causa da minha semelhança com o morto e por saber falar a língua do inimigo. Sondamos então uma estratégia ao final da qual eu me encontraria do lado de lá da linha de combate.
“Eles eram em muito maior número e estavam muito mais preparados. Se continuássemos aquele combate certamente seriamos massacrados em pouco tempo. Felizmente não haveria ataque àquela noite. As ordens eram no sentido de que fosse aguardado o comando da base para um ataque surpresa. Durante a guarda noturna andei pelo acampamento verificando cada item. Ocupavam uma grande área. Eles não tinham ideia da quantidade dos nossos homens e da força de nossa munição como agora tínhamos da deles. Os tanques estavam posicionados para o ataque seguinte. As trincheiras eram muitas e montadas estrategicamente. Dezenas de soldados estiravam-se sobre a terra fofa, alguns tentando conciliar o sono sem sucesso, outros já haviam desistido de dormir, uns fumavam e eu sentia o cheiro da droga utilizada para mantê-los em alerta. Os que tentavam conciliar o sono usavam mochilas ou mesmo suas pesadas armas para travesseiro. As caixas de munições, alvo da minha visita e do nosso plano, estavam a um canto do acampamento onde dormia o capitão. Minha dificuldade maior seria distraí-lo a fim de me apossar do explosivo próximo de sua mesa de trabalho. Havia duas caixas de metal com alça que identifiquei como sendo as dinamites de que iria precisar.
“Aproximei-me alegando um ferimento que havia simulado e que estava passando mal. Ele então chamou um dos soldados da guarda e ordenou que me examinasse no aposento contíguo que servia de enfermaria. Deu-me medicamento e deixou-me em repouso. Era tudo o que eu queria. Uma hora o capitão teria que adormecer. E foi o que aconteceu. Com toda cautela peguei as caixas com as dinamites e, por trás do acampamento, na área mais escura, comecei o trabalho. O cansaço havia levado ao sono a maior parte do contingente, deixando só mesmo acordados os soldados responsáveis pela guarda. Espalhei os fios por todo o perímetro da guarnição e dei-me por satisfeito com o meu trabalho. Para retornar acheguei-me a um dos soldados, alegando que me afastaria um pouco para satisfazer uma necessidade fisiológica.
“Com a detonação mandamos para os ares noventa por cento do regimento inimigo e dos restantes fizemos prisioneiros. Estava vencida aquela batalha e fui recebido com festa e honrarias.
Porém, o que parecia o término dos meus sofrimentos foi apenas o começo deles. Ao fim da guerra voltei para minha casa ao norte de Moscou e para meu antigo trabalho na estrada de ferro do meu velho pai. Os anos se passaram, eu casei e tive filhos, enfim constituí uma família. Com a expansão da estrada de ferro houve entrada de mão de obra, pois havia muito trabalho a ser feito. E foi aí que o fatídico aconteceu. Um dos funcionários admitidos era um imigrante alemão e havia estado naquela batalha em que eu tomara parte, era um dos sobreviventes da explosão que exterminara todo o seu regimento. Eu não fazia ideia de quem ele era; raramente cruzávamos um com o outro, pois nossas áreas de trabalho eram distintas e afastadas. Nem soube como ele me reconheceu. Mas o certo é que me reconheceu e nós estávamos a seis meses de estourar a segunda grande guerra.
“Só sei que, ao retornar de uma viagem de duas semanas na Turquia, pois tínhamos negócios com empresas de lá, já em plena guerra, não encontrei minha família. Os soldados do Terceiro Reich invadiram todas as casas de minha vizinhança a procura de judeus que sabiam existir por ali vindos da Polônia em fuga. Minha mulher, minha adorada esposa e Macha, minha caçula foram aprisionadas e levadas para os campos de concentração. E tudo isto por vingança do homem que me reconhecera anos após aquela batalha. Só não pegaram Quévia porque estava em um hospital para tratamento da tuberculose. Mas eu era o principal procurado; não era Judeu, mas pelo que fiz na guerra. Se não tivesse ido à Turquia o senhor não ficaria sabendo dessa história e teria que procurar outro lugar para passar a noite de hoje. Não pude sequer retornar a Moscou. Um amigo, consternado com o meu sofrimento, conseguiu levar para Turquia minha adorada Quévia, a única que me restou dessa tragédia inesquecível. Nunca mais soube de Macha e de minha querida esposa, mas não é desconhecido de ninguém o que foi feito dos Judeus naqueles campos.
"Então a esperança que me resta é que tenham tido uma morte tranquila e sem sofrimento. Sei que tudo contribuía para o contrario, mas nunca perco a fé em meu Deus misericordioso.
E ele seguiu em seu trabalho com as varetas. Tive uma noite de sono tranquilo e acordei revigorado para seguir viagem. Mas, custei a dormir porque a história do velho não me saía da cabeça.